De vez em quando, escrevo como se o que estivesse a ser escrito fosse para ser lido pelo meu pai. Já disse isto… talvez até aqui… Como, em certas ocasiões, e sobretudo cá pelo Zambujal, tenho vontade de conversar com ele, de lhe contar, a ele, o que me está a acontecer e como vão as coisas. E sinto a sua falta. Não a de há 30 anos, desde que morreu, mas a de sempre. Porque, ao fim e ao cabo, parece que nunca conversámos com quem – e o que – devíamos ter conversado.
Emigrante em Lisboa, partiu deste Zambujal rumo ao “comércio da capital”, depois de “estágio” na “Aldeia” (a "Vila" era lá no alto, nos Castelos), tinha princípios arreigados. Que se resumiam a trabalhar muito e a ser honesto, a não enganar os outros, a cumprir os compromissos, a falar verdade. Seu filho único, quis que crescesse com essa “cartilha” (ou “código”).
Não que fosse um homem sem mácula. Longe disso. E nessas regras que me queria inculcar abria excepções para si, como no caso dos “outros” a não enganar não incluir a “outra” que era a minha mãe… Choca-me, hoje, o que tarde me comecei a aperceber e a tomar consciência: uma perspectiva de vida maculada de machismo. Mas não o culpo, nem o condeno. Transportamos séculos de séculos de relações de que só lentamente nos libertamos.
Mas – então? –, há ou não estória para contar?
Há.
Não que fosse um homem sem mácula. Longe disso. E nessas regras que me queria inculcar abria excepções para si, como no caso dos “outros” a não enganar não incluir a “outra” que era a minha mãe… Choca-me, hoje, o que tarde me comecei a aperceber e a tomar consciência: uma perspectiva de vida maculada de machismo. Mas não o culpo, nem o condeno. Transportamos séculos de séculos de relações de que só lentamente nos libertamos.
Mas – então? –, há ou não estória para contar?
Há.
Além de ter, ali a espreitar-me, uma “pasta de mostruário” para o caso de eu chumbar mais que um ano escolar, logo que aprendi a fazer contas, fui “promovido” a seu ajudante. Enquanto “aviava encomendas”, ia-me ditando e eu passava as guias de remessa ou as facturas e fazia as continhas todas. Habituei-me, aliás, a fazer cálculos "de cabeça” com grande rapidez, e fico escandalizado quando vejo que hoje, para se somar 2 + 2, se usam máquinas de calcular… E também comecei a acumular dúvidas que mais tarde Bento de Jesus Caraça , no seu livro, me explicou, sobre o sistema decimal e as dúzias e as grosas. Mas a estória – finalmente! – é sobre resmas, que são do sistema decimal (100 cadernos, ou 20 “mãos” ou 500 folhas).
Num concurso para o fornecimento a serviço do Estado de resmas de papel para máquina de escrever, o meu pai concorreu por sugestão de um amigo. Fez-se a proposta – eu participei nos cálculos – e esse amigo veio “ajudar”, dizendo quais as da concorrência e propôs que o meu pai substituísse a dele por uma de mais baixo preço. O meu pai disse-lhe que era impossível, que assim perdia dinheiro, mas o outro argumentou que seria fácil se, em vez das 500 folhas, cada resma levasse só 400 ou pouco mais. E acrescentava que ninguém iria contar – isso assegurava ele, que estava "por dentro"! –, que era o que os outros faziam, e mais... que depois havia lucros a repartir entre eles os dois!
O meu pai quase o expulsou de casa, acho que além do concurso perdeu um amigo, e fez do caso um “conto moral”, à Eric Rohmer.
Num concurso para o fornecimento a serviço do Estado de resmas de papel para máquina de escrever, o meu pai concorreu por sugestão de um amigo. Fez-se a proposta – eu participei nos cálculos – e esse amigo veio “ajudar”, dizendo quais as da concorrência e propôs que o meu pai substituísse a dele por uma de mais baixo preço. O meu pai disse-lhe que era impossível, que assim perdia dinheiro, mas o outro argumentou que seria fácil se, em vez das 500 folhas, cada resma levasse só 400 ou pouco mais. E acrescentava que ninguém iria contar – isso assegurava ele, que estava "por dentro"! –, que era o que os outros faziam, e mais... que depois havia lucros a repartir entre eles os dois!
O meu pai quase o expulsou de casa, acho que além do concurso perdeu um amigo, e fez do caso um “conto moral”, à Eric Rohmer.
5 comentários:
Sérgio, é caso para dizer: com amigos desses quem precisa de inimigos.
Campaniça
E o Eric Rohmer bem podia fazer um belo filme da tua história!
(A foto, é a tua foto de que mais gosto)
Pois andei hoje por aqui e a deliciar-me, ainda que não tenha deixado pegadas senão neste último post. Fica à guisa de resumo. Aprecio este género de histórias e nelas encontro coisas semelhantes que também vivi em tempos ante(s)passados. E acrescento que a frase "Porque, ao fim e ao cabo, parece que nunca conversámos com quem – e o que – devíamos ter conversado." me fez pensar. Pois é, acho que acontece a todos e traz um certo amargo, não direi de boca mas de alma.
Gosto mesmo destas leituras.
E uma questão de coluna. Na vertical, sempre. Que eu tanto aprecio...
São também estes exemplos que nos formam, que fazem de nós o que hoje somos (com mais uns pozinhos...)
Curioso, depois de reler o meu comentário, lembrei-me que tenho irmãos, e que parte do comentário não é aplicável. Olhos para as mãos em cima do teclado e de cinco dedos tenho-os todos diferentes...
Um abraço
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