faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

domingo, 28 de dezembro de 2008

... o céu será o limite, o mar chamam-lhe da China, a terra é o Vietnam, os pés são meus.
(e nada disto é ficção!)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Histórias ante(s)passadas - na prisão - 11A

Na organização do tempo da sala, o Viriato Camilo sugeriu informação sobre o coro da Academia de Amadores de Música. O cancioneiro popular. As "heróicas".
Foram horas intensas. Com aulas práticas. Porque cantávamos. Nem sempre bem. Ou quase nunca bem (então eu!)… Apesar dos esforços do exigente Viriato.
Foi ali que descobri o Zé Gomes Ferreira.
Nesse entretempo, nasceu a Susana. A filha mais nova da Teresa e do Viriato.
Horas de alegria, de ansiedade, de sofrimento. Porque, nas condições finais da gravidez, com a Teresa numa angústia e numa excitada “roda-vida”, o parto foi muito complicado e fecharam-se as fontanelas da Susana (se isto que escrevo tem alguma coisa de científico nas relações causa-efeito…).
Para a Susana escrevera o Fernando Lopes Graça, que já era padrinho da Sílvia, a peça “para uma criança que vai nascer”.
A evolução da situação foi uma sucessão de choques que começámos por acompanhar. Ali. Impotentes. Procurando ser solidários. Foi um enorme choque, e uma vida e uma família toda a viver anos e anos esse grave problema. Com um cuidado e um carinho que acompanhei. Fica um pensamento muito solidário para a Teresa e a Sílvia, uma vez que o Viriato Camilo já há alguns anos morreu.

Ainda contaria, até para não acabar assim, que foi nessa sala que o Viriato nos falou a todos da Prelo Editora, e que eu comecei a entusiasmar-me com aquela coisa das editar livros. Até porque, nesse ano, uma edição da Prelo – o Matai-vos uns aos outros – recebera o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores, e o autor, o Jorge Reis, escreveu um discurso que foi lido no jantar de entrega do prémio, e que foi lido por nós naquela sala da cadeia.
A entrega de um prémio a um livro, num jantar, com o autor exilado em Paris e o editor preso pela PIDE no Aljube. Que tempos aqueles…
Mas… mas na “sala dos operados”, foi curta a estadia. Foi um intervalo. De trânsito para Caxias.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Historias ante(s)passadas (na prisao) - 11A

Tudo organizado naquela sala. Entao o Maia Rebelo - esqueçamos o avô poeta conhecido pelas ameijooas -, como bom engenheiro, fazia questao de ter o tempo todo aproveitado. Acordar, ginastica, estudo, convivio, repouso, leitura, tudo à hora ou ao minuto. E insistia na necessidade de todos nos -os outros três - fazermos como ele.
Tudo certo. era mesmo necessario estarmos organizados.
So que havia um pequeno problema. O Alvaro, grande, desajeitado, muito nervoso e mexido, programava tudo excelentemente no papel. O pior era a pratica.
Começava todos os dias com um quarto de hora de atraso, e os atrasos iam-se somando ao longo do dia. De tal forma que ele chegava ao fim do dia em completo desespero.
Mas garantindo que, no dia seguinte, ia ser de um rigor absolutamente engenheiro.
Grande amigo!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 10A

Naquela sala – dos “operados” – a vida já estava organizada. E eu integrei-me bem. E depressa.
O Fernando Rodrigues era “um senhor”. Tisiologista de reconhecidíssima competência, era um homem muito afável, que se via que estava a sofrer, depois do que passara nos interrogatórios, Por muitas razões, até familiares. Dentro de si, um turbilhão sob a aparência calma que não escondia o sofrimento. Disso não vou falar.
Falo, sim, de ter então sabido que Fernando Rodrigues tinha casa e consultório com frente para o Jardim da Parada. Em Campo de Ourique. Para onde dava também a minha varanda. E, no prédio ao lado do dele, morava o Noales. Que “brinde” para os pides! Um desses criminosos oficiais, instalado num banco do aprazível jardim, podia vigiar, ao mesmo tempo (e decerto por turnos), três portas de entrada de casa de três suspeitos. Ou mais do que suspeitos porque houvera quem se encarregara de dar informações sobre as nossas pessoas à “instituição”. Mas também não é disso que vou falar.
Nalguns momentos de descontracção, raros, o Fernando Rodrigues contava que, nos dias de calor, fazia consultas com as janelas abertas e perguntava como é que lhe era possível ser médico e sério com um vendedor ambulante, desses de grande lábia e altos berros, no jardim abaixo das janelas abertas a fazer propaganda do que vendia, uma pomada milagrosa, persistindo na científica informação que lhe entrava pelo consultório dentro:

“O dente não dói porque o dente é osso e o osso não dói; a “engiva” e não dói porque a “engiva” é músculo e o músculo não dói; o que dói é o micróbio… e para o micróbio tenho aqui esta pomadinha milagrosa…”
Com aquela concorrência, o cientista sentia-se perturbado e via-se aflito para fazer, com seriedade, o seu trabalho!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

As últimas folhas...

Antes dos ramos nus e secos, onde restam presos pedaços apodrecidos de fruta não colhida, neste final de outono ainda há folhas que resistem, teimando em vestir as árvores. Merecem o nosso olhar e que se registe a sua perene idade.Numa outra árvore, talvez mais exposta. talvez mais frágil, algunas poucas folhas prendem-se aos ramos como se à vida se prendessem. Como se a vida prendessem.

E uma, lá bem no alto, é o símbolo, o estandarte, a bandeira resistente. Contra as núvens carregadas de chuva. Uma folha, uma só, que a chuva que cair, ou o vento que soprar, irá atirar por terra. Até à primavera que virá como se adivinha nuns botões que já se mostram.

Esta...

... só de comunista!

Em aspalavrassaoarmas.blogspot.com !!!
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Já estou "augadinho"...

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 9A

Quando veio a ordem “arrume as suas coisas para mudar de sala”, senti que entrara noutra fase daquele período da minha vida. Depois dos “curros”, dos interrogatórios, da “enfermaria geral”, mudar de sala era a… estabilidade. Deixava a transitoriedade.
No entanto, a mudança foi pequena. Sai da sala grande e, no mesmo corredor, passei para um quarto ao lado, conhecido pela “sala dos operados”, pois era para onde iam os doentes depois de sujeitos a intervenção cirúrgica quando aquele andar era dependência hospitalar das prisões. Independentemente das implícitas conotações, a “sala dos operados” teria sido aquilo que, há pouco tempo, vim a conhecer como “sala de recobro”.

Os que iam para ali deviam ser os “seleccionados” para ir a julgamento. E estavam lá três. Num assarapantamento normal, entrei num espaço reduzido e já habitado por três “operados”.
Começámos pelas apresentações habituais, que iam muito para além das formais. Não nos conhecíamos, embora talvez os nossos nomes não fossem estranhos entre si.
Os nomes… Foi logo o primeiro quiproquó. Já lá vou…
Eu disse quem era, a profissão, que vinha ali do lado, num resumo resumidíssimo do resumo; depois (não sei se foi a ordem…), Viriato Camilo, desenhador de arquitectura, editor, cineclubista,; a seguir (teria sido?), Fernando Rodrigues, médico, tisiologista, IANT, um “senhor”; por último (talvez…) Álvaro Bulhão Pato de Maia Rebelo, engenheiro, grande, caloroso…
E veio o tal quiproquó. Inevitável. “Bulhão Pato?”. “Sim! era meu avô…”. “… o das amêijoas?”. Irritação: “… o poeta, o meu avô era poeta, as amêijoas foram uma graça …”. “Pois… mas são bem boas…”. Irritação: “… os versos são bem melhores…”. Timidez: “… não conheço… desculpe…”.
Não se pode dizer que tenhamos começado bem. Mas, depois, melhorámos muito. E o querido camarada Álvaro Maia Rebelo foi um bom companheiro e amigo naquela sala e em Caxias, para onde fomos transferidos mais tarde. E também cá fora, sempre grande, sempre caloroso.
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Mas, sobre a “sala dos operados” há mais estórias.

Diálogo entre suicidas (salvos sejam!)

Diz um (o M) em maisangular (isto sem a devida autorização para transcrever...):
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M sentia-se pleno, cheio. De repente tão cheio que precisou de alguns minutos sentado naquele banco virado ao rio antes de olhar à sua volta. O mundo pareceu-lhe fora de si, tão estranhamente fora de si que quase não respirava. Não se mexia, sentia-se tão sensível e atento que o mais pequeno gesto o transtornava. Respirava devagar, sentiu o peito subir, tão cheio de vida que a muito custo segurou as lágrimas que o surpreenderam. Há muito, muito tempo que não chorava. Para dizer a verdade não consta que M tivesse alguma vez chorado. No dia em que nasceu a mãe chorou por ele. O médico quando o viu, pálido e sem reacção, considerou-o morto. Mas não estava, cresceu e depois de todos estes anos forçosamente vividos estava decidido a validar o diagnóstico do médico. Matar-se-ia com força e sem hesitações. Mas... Mas... caralhosefoda o mas! No momento em que o desgraçado suicida se acerca de tamanha resolução é abalroado por uma coisa tão pequena quanto fodida... uma pontada de vida. Uma filha da puta de uma pontada de vida. Se o médico o visse agora naquele banco virado ao rio, talvez dissesse.. o Sr está com uma pontada de vida aguda. É grave! Tenha cuidado, se não tomar as devidas precauções ainda acaba por gostar de cá andar. Tome soda caustica e vá a banhos. Atire-se de uma ponte, meta-se à frente de um comboio que isso passa-lhe. Mas cuidado, o caso é sério!
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Responde-lhe o outro, este de aqui, de antes de...:
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Boa, M!
Diria mesmo... muito boa, companheiro!
Uma pontada de vida?! Sofro disso há quase 73 anos... espero que seja incurável... até não ter cura!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 8A

Uma última (talvez…) da “enfermaria geral”.
Naquela “leva”, diria mesmo verdadeira hecatombe, a PIDE tinha duas “escolhas”: os que apenas ficavam fichados para eventuais efeitos futuros e os que “iam dentro”; destes, os que “iam dentro” para dentro ficarem e os que “iam dentro” para apanharem um susto e o transmitirem a amigos e conhecidos. Isto digo eu, a esta distância e juntando pontas… e acrescento que a “selecção” não seria rígida e, no decurso da “operação”, a PIDE teria ido buscar alguns que era para não “irem dentro”, teriam ficado dentro uns que era só para apanharem um susto, teriam saído mais depressa que o projectado outros que teriam sido “recuperados” e “merecedores” de tal mudança nas intenções que para eles haveria.
Entre os (talvez) “escolhidos” pela PIDE para um susto de uns diazitos de prisão (de detenção, se faz favor…) estava um jovem técnico das Nações Unidas a trabalhar no estrangeiro que, embora conhecedor do vendaval que por cá andava, resolveu, quase em desafio, "vir à terra”, o que a PIDE terá achado descaramento demasiado, pelo que o “colheu” directamente do aeroporto para a sala da “enfermaria geral”.
Entrado naquele local de trânsito, já noite dentro, ficou eufórico ao ver amigos em quem inteiramente confiava, que tiveram de o chamar à parte para o pôr ao corrente da situação e dar-lhe a conhecer que as coisas não estavam nada fáceis e que havia ali… alguns “casos”, se é que não éramos todos e cada um, incluindo ele, um “caso”. Passou-lhe a euforia…
E teve, chamado à razão, uma reacção à sua maneira. De manhã, para se preparar (dizia ele), começou a fazer, em largas passadas, os cerca de 15 metros do comprimento da sala, e a dizer, baixinho mas suficientemente audível, sobretudo quando passava perto de algumas orelhas, “quem fala na PIDE é cabrão, quem fala na PIDE é cabrão…”.
Tremendo castigo para quem viera dos interrogatórios a justificar o seu comportamento com “está tudo perdido… não vale a pena qualquer resistência ou sacrifício… só há que confirmar tudo o que eles já sabem…” e que, facilmente se descobrira, fora mais fácil presa dos esbirros por estes terem usado o seu recente casamento com uma jovem, muito mais nova que ele, para o ... "recuperar" com a promessa de rápido regresso para junto da jovem e sozinha esposa.

Estas estórias não são só divertidas. São de vida vivida!

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 7A

Durante algum tempo fomos apenas três os residentes da "enfermaria geral". Não foi mais que uns dias, mas o tempo tinha, ali, outra dimensão.
O "outro" era um homem pequeno, muito pequeno, quase nada. Funcionário público, chefe de secção do Ministério das Finanças, dera o seu contributo, estimável como todos, para a luta mas aquele vendaval que levara a tantas prisões apanhara-o, e as suas raízes foram arrancadas pondo-o a flutuar, à deriva, ao sabor do vento. E disto não digo mais que, aqui, é para contar estórias...
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À medida que a sala ia sendo povoada, e as famílias iam mostrando todo o apoio e solidariedade, tornou-se necessário organizar a nossa vida. Distribuiram-se tarefas e responsabilidades.
"Ele", o chefe de secção do MF, foi nomeado uxeiro, isto é, encarregado da gestão da "cantina", mesa onde se arrumava o que as famílias, com sacrifício e amor, nos iam fazendo chegar, depois de passar pelos carcereiros. Eram "mimos" para sentirmos o seu apoio, tão necessário.
Mas o uxeiro tomara o encargo muito a peito e estabelecera normas rígidas. Uma delas a de só se poder consumir o recém-chegado depois de consumido o que já chegara antes. Começou por ser aceite como boa norma, mas à medida que os dias corriam e traziam mais "hóspedes", tornou-se frequente comermos coisas já velhas, algumas em duvidoso prazo de validade, enquanto, ao lado, outras fesquinhas e apetitosas esparavam estarem em igual estado de velhice e decomposição para, então, serem consumidas. Os resmungos e os protestos batiam no muro da intransigência do responsável pela "uxaria".
Até que, uma noite, o Areosa e eu, cama ao lado de cama, nas nossas conversas antes de adormecer, fizemos o "ponto da situação" e resolvemos uma acção directa. Com a argumentação de que não era justo que as nossas famílias nos estivessem a mandar aqueles "mimos", alguns decerto com grande sacrifício, e que tão mal os tratássemos até deixando alguns apodrecer, levantámo-nos e pé ante pé fizemos uma ceiazita com as primícias que nos tinham sido enviadas.
Na manhã seguinte, descoberto a "crime" na inventariação do uxeiro-mor (e único), foi convocado por ele um "tribunal" para julgamento dos réus que tinham confessado e justificado aquela gravíssima infracção às normas ditatorialmente impostas.
Fomos absolvidos e o uxeiro demitido.
Fim da estória,

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 6A

Se havia “trânsito” na “enfermaria geral”, quer de entradas e saídas, quer ao longo do comprimento da sala, havia, também, os que se julgavam um pouco como os “residentes do lugar”. Pelo menos eu assim os via porque, quando lá cheguei, encontrei aqueles dois perdidos no espaço imenso (vinha, de há séculos atrás, de um cubículo com um metro e dez por um metro e setenta, e da passagem sem tempo por dias e noites no “inferno” da tortura do sono… mas adiante).
Um, era alto, enorme – ao tamanho da sala –, aviador trazido de Angola pela revolta e recusa de ser obrigado a lançar napalm contra homens em greve na “baixa de Cassange”; outro, era miúdo, pequeno, pequeno, pequeno, em quase nada se tornara.
Com o primeiro, criança grande, houve empatia imediata, como que um regresso à Humanidade, que depois se transformou em amizade e acerto de posições logo logo de luta.
Muito conversámos e há pormenores que têm de vir para estas estórias.
Mostrava-me ele, o Zé Maria Ervedosa, os seus poemas, alguns de grande qualidade, falava-me com enorme ternura do seu amor, da sua Alma encontrada em Alexandria, via-se que tinha grande necessidade e gosto de conversar e conviver. E contou-me que, quando chegou à sala, o primeiro e sozinho naquela imens(ol)idão, estabelecera uma relação de simpatia com o servente de escala ao andar, com quem conversava no umbral da porta enquanto os guardas andavam por outras vigilâncias. Quando tinham de interromper as falas sobre vidas e situações tão diferentes, contou-me ele que o Martins, assim se chamava o servente, lhe dizia “que pensa o senhor major?, quando o fecho aí dentro, fico eu fechado aqui no corredor…”.
E o Zé Maria ainda me contava que, nesse tempo sem medida, a sua imaginação construíra vários planos de fuga, mas nenhum concretizável porque em nenhum conseguira eliminar um acto indispensável: pôr o Martins a dormir, tirá-lo do caminho da fuga. Confessava que “... além de muito me custar fazer mal ao servente… depois, quando viessem os carcereiros e descobrissem que tinha havido alguma facilitação da sua parte, mesmo que involuntária, que consequências iria ter para o pobre homem... ainda por cima com um "galo" ou a cabeça partida?!”.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Histórias ant(s)passadas (na prisão) - 5A

Na sala enorme, no último andar do Aljube, a que ficou dado o nome de enfermaria geral por em tempos o ter sido, iam chegando e saindo novos “hóspedes” naquele começo de verão de 1963.
A “colheita” tinha sido farta.
Aviadores, funcionários públicos, economistas, engenheiros, bancários, médicos, investigadores, estivadores, vendedores ambulantes. Um corropio! Era assim a modos de um lugar de “trânsito” antes dos interrogatórios na António Maria Cardoso, para uns, e de pausa nos ou de regresso dos interrogatórios, para outros.
Depois da honra de termos tido um Carlos Darwin entre os nomes de registo, e de ele nos ter bem explicado que nem era o “original” nem o filho dele mesmo, e que, por isso, estava ali por engano, o vendedor ambulante, que com ele teria vindo na “leva” lá da Outra Banda, teve uma reacção curiosa.
Era um homem atarracado, pernas arqueadas, de andar bamboleante como se carregasse sempre grandes pesos. De tanto os ter carregado, as suas costas, o seu corpo, o seu andar, tinham-se moldado ao ofício. Calado, durante os primeiros tempos apenas parecia querer ouvir, ouvir todos e tudo. Parecia um pouco surpreendido, perplexo.
E um dia, não me lembro se ao segundo ou terceiro da estadia, mas depois de ouvir o Carlos Darwin insistir nos enganos, acompanhou as suas longas e lentas passeatas ao comprimento da sala, no espaço entre as camas, com um resmungar, tipo cantilena. Dizia ele: “Já percebi, já percebi! A gente estamos cá todos por engano! Todos por engano!”
E andou assim horas.
Até que chegou a sua vez do “prepare-se para ir à polícia”.
Foi.
E não voltou. Parece que, depois de uns bons “apertos”, o puseram em liberdade. Estaria cá por engano?!... Sabia lá ele alguma coisa daqueles jornais em papel fininho que lhe tinham encontrado no meio da mercadoria! Ele nem sabia ler…

terça-feira, 18 de novembro de 2008

20. o Suicida pediu:
  • "Façam-me um bonito enterro!"

21. o Suicida, por fim, suspirou:

  • "Pronto... já não tenho tempo para mais nada."

22. o Suicida perguntou (no último minuto):

  • "Que horas vão deixar de ser?"
  • "O quê?! Já?!" (e saiu, a correr, para um encontro que tinha marcado!)

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... e chega de suicida!, embora ainda tivessem ficado umas tantas por transcrever e outras tantas por inventar. Mas tudo tem de ter um fim...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Antes de...

18. o Suicida escreveu (preto no branco):
  • "Não faço testamento."

19. o Suicida pensou logo logo em escrever (vermelho na parede... se tivesse tempo):

  • "Não fiz testamento!"

Histórias ante(s)passadas - hors-séries

Depois das estórias de prisão já contadas e antes das que vêm a caminho, apeteceu-me publicar esta foto, comigo atrás de grades... mas na Bodeguita del Médio, em Havana, num intervalo de sessões de uma visita de solidariedade, em que estive na delegação portuguesa (com o general Vasco Gonçalves e outros amigos) há quase 15 anos, enquanto me preparavam (mais um) mojito.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Antes de...

17. o Suicida confessou-se ao padre e exigiu:
  • "Sim, senhor prior… Rezo isso tudo mas quero passaporte e visto para o céu!"

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O suicida anda inquieto (porque será?) e foi dar uma volta por outro blog... tive de o ir lá buscar, com os comentários e tudo.

SR

domingo, 9 de novembro de 2008

Antes de...

16. o Suicida olhou à volta e sorriu (triste):
  • "Vou desta para melhor..."

(Com tanta vida à roda (ou nesta roda-viva) até me tenho esquecido do "suicída" e das suas muitas frases na gaveta... É o que dá!)

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 4A

Esta melhor se chamaria história de para-prisão ou de pós-prisão. Mas é, isso sim, uma estória do tempo do fascismo. E do dia 7 de Novembro que é hoje.
Vai para 50 anos (ou já 60?) um preso político em Peniche e a sua companheira resolveram formalizar perante a sociedade a sua relação, Até por causa da questão das visitas. E escolheram o dia 7 de Novembro para se casarem. Por ser um “dia especial”. Que passou a ser, para eles, um “dia especial” por dois motivos.
Anos depois, com o Gabriel, assim era o seu nome, fora da cadeia, com um grupo de amigos, entre os quais, bem mais jovem, me vi generosamente incluído, começou a festejar-se o 7 de Novembro de uma maneira, digamos, curiosa. Reservava-se uma mesa no Restaurante-Cervejaria Amazonas, ali ao Arco Cego, e lá íamos comemorar a data. Mas não íamos só nós. Numa mesa, ou em mesas próximas, a PIDE colocava alguns dos seus identificáveis agentes para acompanharem aquela comemoração. E fazerem relatórios com os nomes dos presentes e com o que fosse dito.
É dos momentos de gozo que guardo nas minhas recordações. Que, como é inevitável, se vão ficcionando.
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Juntávamo-nos, com alguma incontida alegria por nos juntarmos. Nos abraços, nos beijos, nos parabéns por estarmos no dia 7 de Novembro. E a festejá-lo.
Os pides, mal disfarçadamente atentos, a registarem (o atraso tecnológico deveria impedir a gravação à distância e outras modernices). E não seria muito fácil porque uma das razões da comemorações era tratada em voz baixa e codificadamente como, por exemplo, tratando personagens como tio Vladimiro ou como avô Carlos. Que não tinham podido estar no casamento por uma questão de datas… Outubro até foi em Novembro!
Mas quando mais gozo tínhamos era na altura dos discursos. Levantava-se um de nós, e quando os desgraçados dos pides pensavam ter a vida facilitada com matéria para contar aos chefes, saia um discurso em que o tema recorrente era o facto, glosado à maneira do orador (ou dos oradores), de na noite do casamento que se celebrava, o noivo ter dormido ao lado do padrinho Joaquim Campino, e a noiva ter dormido com a madrinha Luzia Campino, havendo sempre pormenores para actualizar sobre aquela estranha noite de núpcias.
As gargalhadas saltavam, e tudo terminava sempre com um viva o dia 7 de Novembro!
Que assim se festejava no tempo do fascismo. E não só assim.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Pinça mentes

  • Haver ou não haver intervenção do Estado that is the question?
  • Mas qual Estado, de que Estado e em que estado?
  • Antigamente, pressupunha-se que a intervenção do Estado fosse na "economia real", investindo, criando riqueza, tomando rédeas nas mãos, e alguns teimavam (e teimam!) em dizer que deveriam ser alavancas para que o interesse colectivo prevalecesse (mas para isso o Estado deveria ser outro, ao serviço de outros).
  • Agora, a intervenção do Estado quer-se confinar a não interferir na "economia real" para além do projectado (ao serviço de quem?) e que tão vilipendiado é (ó! dra. Manuela!... ao que se "presidente da oposição" obriga); eles-governo injectam capital se e quando necessário, capitalizam o capital privado, para que se recupere da desastrosa (dizem uns...) gestão privada, e eles-privados é que o gerem, privadamente, como o têm feito (tão mal para todos, tão bem para cada vez menos!!!).

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 3A

Mas não foi só o Seabra Diniz e o Orlando de Carvalho. Outros nomes muito ilustres passaram pela sala “enfermaria geral” do último andar do Aljube. Alguns que, hoje, talvez nem queiram que se saiba que lá estiveram…
Mas há um nome ilustre, histórico, que por lá passou e merece referência, queira ele ou não.
Um dia, estávamos nós, os que já lá estavam, a preencher o tempo quando a porta se abriu e, naquele vaivém a que nos íamos habituando, um guarda e o servente Martins introduziram na sala um homem alto, assaranpatado e de aspecto modesto mas bem parecido (pelo menos é assim que me lembro dele, porque nunca mais o vi ou alguma coisa soube dele… e já lá vão mais de 45 anos!).
Deu-se logo aquele movimento ondulatório de alguns de nós, qual comissão de recepção, para junto do noviço – cá por coisas que noutros locais e oportunidades se explicam –, e ele começou a contar a sua história: era da Cova da Piedade, tinha um filho que “andava nessas coisas da política”, e a PIDE fora lá a casa buscar o rapaz e, como não o encontrara – parece que fugira a tempo –, trouxera-o a ele, ao pai…
Mas como, mas porquê? De tanta história que íamos ouvindo, aquela era talvez a mais estranha… trazerem o pai por não terem encontrado o filho?!
É que temos o mesmo nome, disse ele. Chamamo-nos os dois Carlos Darwin!
E assim tivemos na sala “enfermaria geral” do Aljube, e durante uns dias, o senhor Carlos Darwin!
Que honra… e que maior seria se a PIDE não tivesse encontrado, também, o pai do mais novo (pelo menos então) Carlos Darwin, e tivesse a PIDE ido por aí fora, no recuo dos anos e dos séculos, até encontrar o mais velho e verdadeiramente Charles (Carlos) Darwin, que teria vindo, decerto, muito animar os tempos de (in)formação cultural que estávamos a procurar criar naquela sala.

domingo, 2 de novembro de 2008

Antes de...

15. o Suicida para a (prestes a ficar) viuva:
  • "Vamos dar as últimas?"

sábado, 1 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 2A

Entre as “novidades” com que quase todos os dias a PIDE nos brindava, a chegada do Orlando Carvalho e do Seabra Diniz foi das mais curiosas. Se o Seabra Diniz nos pôs a fazer exercícios de descontracção e a sentir pesado o que pesado estava, o Orlando Carvalho veio aligeirar a nossa vida de encarcerados.
Era um homem alto, de grande presença e alguma pose, que veio a morrer em 1966, de desastre de automóvel, e já fui, em liberdade, ao Alto de S. João, ao seu enterro.
Impressionaram-nos os seus pijamas de seda que pouco tinham a ver com a sala do Aljube que a todos nos albergava, e o modo como se vestia num movimento quase ballético para não beliscar os impecáveis vincos das calças.
A sua clientela era “do fino”, sobretudo damas, esposas de ministros e também de outros dignitários como indignos dirigentes da instituição que nos prendia a torturava. Donas que até exigiam consultas ali numa sala da cadeia. As suas doençazinhas podiam lá esperar que o dr. Orlando resolvesse os seus problemas com os respectivos maridos… Umas coisitas relacionadas com uns dinheiros e outras ajudas à resistência, ao Partido Comunista e às “vítimas do fascismo”.
Foi imediatamente desarranchado e as suas refeições passaram a vir de uma casa "chique”, julgo que da Benard. Era cada banquete!...

Todos nós beneficiávamos das opíparas refeições, e não esqueço o verdadeiro ritual de que o Ervedosa rodeou a degustação de um copo de vinho com marca e ano que lhe coube daquela partilha, e de que estava mais que saudoso!
Mas hilariante foi o caso de, estando o Orlando numa das suas consultas, o guarda nos ter entregue um almoço que, além do vinho e da requintada sobremesa, foi decidido que seria, após minuciosa observação, de lampreia. O que levou alguns ao delírio gastronómico. Estreia absoluta de lampreia e logo de baptizada “lampreia à Aljube”.
Afinal… viemos a saber, no dia seguinte, que tínhamos comido “arroz de cabidela”, de galinha, claro! Apenas. E se estava bom!... a saber a lampreia.

Antes de...

14. o Suicida rezou:
  • "... e que Deus se perdõe."

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Reti(ra)do de algures...

Amar os outros
mesmo quando e onde a raiva
Amar-te
mesmo quando e onde o ódio
Amar-te (cretcheu, dizem em crioulo) e aos outros
mesmo quando e onde o amor é esmagado
Amar
mesmo quando e onde a luta
Sobre tudo amar e lutar
quando e onde
e enquanto
e sempre!
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(depois de lido um poema do José Craveirinha no Cravo de Abril)

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 1A

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Éramos para aí uma dúzia na chamada enfermaria geral do Aljube. Havia alguma flutuação. Entradas, saídas, idas para interrogatório com regresso incerto.
A mais recente novidade fora a vinda de dois médicos de grande prestígio: Orlando Carvalho e Seabra Diniz. Um, neurologista com grande saída na “alta sociedade”, outro, psiquiatra de muito renome.
Na sua integração no grupo, o Seabra Diniz começou a tentar incutir-nos o hábito de fazermos uns exercícios de descontracção e auto-controlo que ele praticava que ele praticava em todas as circunstâncias (até nos interrogatórios). Consistiam numa série de frases que nos dizíamos a nós mesmos, se possível deitados e em posição de total abandono.
Não sei se me lembro de todas as frases, mas ainda agora repito algumas… e com resultados positivos. “Sinto o braço direito mais quente”, “sinto o braço direito mais pesado”, “a respiração é profunda e prolongada”, “o coração bate calmo e regular”, sinto a testa fria”, “a zona do plexo solar está fresco”...
Convenceu-nos facilmente e, quando possível, deitávamo-nos nas camas alinhadas contra a parede e, sob o seu manso comando íamos dizendo as frases. E sentíamos o braço mais quente e mais pesado (para os canhotos seria o esquerdo), depois o resto do corpo, a cabeça fria, respirámos calma e repousadamente, o coração batia compassadamente. Tudo!
Até que um novo “habitante” veio perturbar um pouco o que estava ser uma quase rotina. Era um estivador, não percebeu aquilo dos plexos solares, riu-se daquelas coisas, resistiu um bocado a entrar no grupo, até que se decidiu. E, depois de alguns dias – poucos – de observação, também se deitou na sua cama e começou a dizer as frases. Baixo e para dentro de si.
Eis senão quando, com todos concentradíssimos nos exercícios, ouve-se a sua voz, cava e rouca, dizer alto e bom som: “sinto os colhões muito pesados”.
Foi gargalhada geral, claro.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Antes de...

10. o Suicida avisou:
  • "Não digam que não avisei."

11. o Suicida confessou:

  • "Tenho medo de ter coragem!"

12. o Suicida confessou:

  • "Tenho medo de não ter coragem!"

13. o Suicida confessou:

  • "Tenho medo!"

Antes de...

7. o Suicida temeu-se:
  • "Vamos lá a ver se isto não doi..."

8. o Suicida ironizou:

  • "Vamos lá a ver se não escapo desta..."

9. o Suicida pré-viu, preveniu e corrigiu:

  • "Vamos lá a ver... coisa nenhuma."

terça-feira, 28 de outubro de 2008

La paz, que es lucha encendida,
vuelo para una paloma,
sol y tierra, sin herida.

Rafael Alberti
1990

Camarada e amigo de um dia

Porque a Maria me fez chorar.
E cantar. E contar:

Um dia, nesses tempos em que Portugal foi futuro, Paco Ibañez foi convidado (convocado!) a vir a Portugal participar numa iniciativa do CPPC.
Fiquei com a tarefa de o receber e acompanhar.
Lembro-me que de onde e em que voo chegaria, foi a primeira questão a que ninguém me soube responder. Nem havia tempo, nestes tempos, para essas minudências. Que eu me desenrascasse!
Desenrasquei-me. Usei conhecimentos na TAP e no aeroporto e, nesses tempos de companheirismo e solidariedade, foi possível saber que aquele passageiro vinha no voo de Paris que chegava às tantas horas à Portela. E lá estive eu, à espera de um homem com uma guitarra como bagagem.
Era grande o homem e grande foi o abraço. Tudo simples como as coisas mais complicadas.
Levei-o quase directo para o São Luís (ou foi no Trindade?). A iniciativa correu muito bem. Casa cheia, grande entusiasmo e um Paco Ibañez como nós, igualzinho a nós, a cantar e a fazer-nos cantar.
Acabada a sessão, um grupo (que se acuse se houver quem me leia e tenha ido…) foi cear a uma tasca ali nas traseiras da Avenida de Roma. Em convívio vivo e alegre e pela madrugada dentro. Outras voltas demos por lugares amigos e camaradas.
O Paco foi dormir as escassas hora que havia ainda para dormir a minha casa na Rua do Sol ao Rato, num quarto que por lá havia e onde tanta gente dormiu nesses tempos.
De manhã, numa manhã solarenta de Lisboa – ah!, como era linda Lisboa nesses tempos –, passeámos pela cidade e aportámos no pátio da cervejaria da Trindade para o almoço, antes de ter de o levar ao aeroporto. Conversámos animadamente, de memórias comuns, de amigos comuns, da sua carpintaria em Paris, dos futuros por que lutávamos, entre cervejas e percebes (acho que foram percebes) antes dos inevitáveis bifes.
Levei-o ao aeroporto. Um segundo abraço, igual ao primeiro mas diferente. Tão camarada como o primeiro, de amigos o segundo.
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Nunca mais o vi. Poucos dias (ou meses, ou anos) depois, neste intervalo de 3 décadas, telefonei-lhe e abraçámo-nos pelo telefone. Depois… nunca mais. Tenho a certeza que ele, mesmo que não me reconheça, se lembrará daquele fim de tarde e noite e manhã da sessão da Paz num Portugal em revolução e de um amigo que o acompanhou.

Antes de

6. o Suicida vangloriou-se:
  • "Q'é lá isso?... o ponto final é comigo!"

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Antes de...

5. o Suicida blasfemou:
  • "Dizem que me deste a vida... mas sou eu que m'a tiro!"
    (e atirou-se!)

domingo, 26 de outubro de 2008

Um exemplo!

Acabo de receber, de um camarada, este comentário a um dos meus posts:

"Há pouco, fazendo zapping na tv, acabei por cair nos comentários do prof. sabe tudo, Marcelo, que sabendo tudo foge de tudo que o responsabilize, que teve a ousadia de dizer que de todos os líderes partidários só Louçã falou da crise internacional. Não sei se devo classificá-lo como distraido ou desonesto. Na passada 5ª Feira houve um debate em Lisboa em que tu participaste assim como o Sec. Geral do PCP Jerónimo de Sousa. Na próxima 2ª Feira reune o CC do PCP para discutir a crise. Que outro partido político se preocupou em discutir a crise, as suas causas e consequências. Já agora aproveito para te dizer que com o Pedro Carvalho estive em dois debates na Póvoa de Varzim e em Vila do Conde sobre a crise, neste fim de semana, com excelente participação quer em quantidade quer em conteúdo, promovidos pelas respectivas comissões concelhias do PCP. Quem não discute? Certamente os outros. Nós há muito, mesmo há muito, vinhamos alertando para a situação que está a ocorrer. Mas que interessa isso aos comentadores pagos para venderem o peixe que lhes encomendam.
26/10/08 22:57
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Reproduzo o comentário, transformando-o em post. Com um abraço para o autor. Amanhã lho darei na reunião do CC sobre a crise... que nós não discutimos!

Antes de...

o Suicida hesitou:
  • "Ponho gravata ou vou assim?"

sábado, 25 de outubro de 2008

Antes de...

3. o Suicida lamentou-se:
  • "Não se pode ter descanso nesta vida!"

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Antes de...

2. o Suicida protestou:

  • "Porra! Não me deixaram viver..."

Antes de...

1. o Suicida justificou-se:

  • "Estou cansado de tantos sonos provisórios!"

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Para a cronyca






















Fomos até onde tem fim a terra
acima das terras que portuguesas são.
Andámos pela Galiza
pelos caminhos ditos de Santiago
de San Cibram fizemos porto e ponte
em A Corunha acostámos e ouvimos sagas de gente nossa
bordejámos a Costa da Morte
subimos às rias altas
descemos pelas rias bajas.
Se saímos de Portugal foi como se de Portugal não tivéssemos saído
voltámos pelo Minho como se no Minho tivéssemos sempre estado.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Poema em dó

Todos prós (confiança!) & nenhumzinho contra

Eram quatro senhores
muito senhores,
muito senhores de si
e uma senhora,
muito senhora,
muito senhora em mi.

E muitos senhores,
e algumas senhoras,
tudo senhores (e algumas senhoras)
bem arreados e comportados
para assistir e aplaudir.

Eram quatro senhores
para nos devolverem,
não o dinheiro – não, esse, não! –
mas a confiança;
não o dinheiro,
que, esse, não sendo deles, deles é como se fosse,
todo, todinho, e mais algum que o Estado injecte.
Para nos devolverem a confiança
que parece andar perdida de nós,
de quem o dinheiro é, como se não fosse,
e que eles – os senhores – gerem e digerem.

Eram quatro senhores
(muito engravatados, muito emproados)
e uma senhora
(muito emplumada, muito produzida)
com confiança para darem (?) e venderem(-se)
e nós, nós, confiantes nos meliantes!,
a termos de pagar – outra vez – o que é nosso.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Na mesa ao lado...

Na mesa ao lado, "ela", toda produzida e sericoteques, diz - palradora que era... e com voz gritada - "... lembro-me, quando eu era menina...".
Antes de ouvir o resto, o que não quis (diga-se de passagem), apeteceu-me interromper "Ih! há quanto tempo!...".
Qual seria a reacção?

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Qual o mais devoto?


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(Obrigado, Manel!)

Títulos para umas cenas baris...

'Tás c'a bolha?
Olhó balão... e a resistência dos materiais.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Manhã de outono, solarenga e frescota















Estou triste e pensativo!

Procuro cá dentro de casa o sol da manhã,

que lá fora está frescote.

E a donaminha p'ra Lisboa...
A travessa da janela e a sua sombra

servem-me de óculos escuros!

E por aqui anda "o barbas" donomeu à roda de mim...













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Além da tristeza (é mais nostalgia...)

também estou preocupado.

"O barbas" conversa comigo sobre essas coisas da crise financeira.

Mas é tudo muito complicado para gato...

que fará para humano!

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Com bicho...

Estou a acabar de comer uma das últimas maçãs colhidas de uma das árvores aqui do quintal. Uma maçã com bicho. Que o teve tendo o dito deixado marcas, como os buracos por onde teria entrado e saído.
Soube-me bem. Soube-me a maçã!
Não foi um desses produtos assépticos, luzidios, embrulhados em plástico ou "solofane" ou lá o que é, que a nada cheiram, a nada sabem, que nada são a não ser... um produto. E que, nalguns casos, vêm da África do Sul para serem vendidos na carismática "Praça da Fruta das Caldas da Raínha"!
Vivam as maçãs com bicho!

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Papéis velhos...

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A Cabo-Verde,
aos caboverdeanos

No fundo de umas calças velhas rotas encontrei uma pequena lâmina. Daquelas que servem para fazer barbas nas manhãs endorminhadas. Mas esta não. Esta é uma lâmina suja de terra e que guarda um cheiro lembrança a flor e fruto.
Do fundo de umas calças velhas rotas veio esta ferrugenta lâmina lembrança de vida e de convívio em manhã folga de cooperante da cooperação de todos os dias. Uma lâmina ferrugenta que cortou plástico negro invólucro de raízes de árvores a plantar e fazer crescer. Para chamarem a chuva que – disseram-me – ainda este ano não veio.
Em mim desceram mais fundo as raízes da vontade de ser útil. De dar préstimo a esta lâmina ferrugenta e terra e árvores para trazerem chuva onde se vive seca, e as secas são memória e foram fome e fomes.
No bolso deste meu casaco de trazer pelas Lisboas e Europas guardo uma lâmina insólita, ferrugenta e terra e árvores para nascerem e serem esperança de chuva.

22.03.1982
(há quase 29 anos!)

sábado, 27 de setembro de 2008

A propósito...

... a propósito de uma coisa acabadinha de ler:

a escola de hoje é diferente da de ontem (veja-se o "Magalhofa").

Ah! poizé...
como a escola de ontem era diferente da de anteontem e como a de anteontem era diferente da de trans-anteontem. E como a escola de hoje é diferente da de amanhã.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A galinha, o ovo, o quintal, os vizinhos... e a amizade

Quantos "posts" por fazer!


Discurso sobre "materialismo histórico"

Minhas senhoras e meus senhores,

Não vou, evidentemente, esgotar-me de esclarecimento em esclarecimento até ao esclarecimento final…
A série sobre “materialismo histórico” em anónimo do século xxi surgiu de uma proposta-desafio que veio ao encontro de um procedimento pessoal já velho de muitas décadas, e que muito gostaria de ir apurando: observar a realidade que vivo, e nela intervir, escorado numa perspectiva global - quer no espaço quer no tempo - sempre em revisita. Isto é, procurar descortinar os caboucos e as dinâmicas em cada facto observado e vivido, para que a intervenção possa ser de acordo com o que desejo e defendo. Errando aqui, corrigindo ali. Sempre com os outros. Os que já viveram e os que me são contemporâneos.
Se não “fechamos para congresso” – fórmula que muito me agrada porque a vida e a luta não param para que congressemos – não podemos deixar de fazer o vai-vem da História para confrontar o que estamos fazendo com os caminhos feitos e as dinâmicas detectáveis.
Nesta série, sinto-me a fazer, de novo, uma viagem sempre repetida e sempre nova. E não será ela que me impedirá de intervir, com o instrumental que, pela viagem, mais actualizado e adequado quero que esteja. Se o consigo ou não é outra questão...
Não abordo lucro, especulação, financeirização, transnacionalização, e etc. sem a permanente revisita dos mecanismos da exploração, da mais-valia, sem o “mercado mundial” do Manifesto e o imperialismo leniniano, sem o voltar à circulação e o regresso à origem dos circuitos e às (sem) razões das injecções monetárias, sem o capital a perder rosto, e como o vai perdendo enquanto ganha personagens-vedetas em ideologia doentiamente individualista. Sempre na busca de o que fazer em respostas colectivas.
Nesta viagem continuarei sem deixar de estar onde estou. E intervindo em cada gesto e minuto deste tempo.
Tenho dito e obrigado pela atenção.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Gosto deste! Assim, tal-e-qual

(De uma entrevista qualquer num jornal inquiridor:
«Mas estarão os comunistas dispostos
a aceitar a alternância no poder?»)

«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar o tédio,
um senhor de sonho espesso.

Como se fosse possível!
- ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.

José Gomes Ferreira
Obrigado, Fernando Samuel,
no cravodeabril.blogspot.com

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Histórias ante(s)passadas - 37

As estórias ante(s)passadas são... saudades. E delas sinto saudades. É o chamado jogo de espelhos ou "matrioskas". E há que tempos que não trazia aqui nenhuma dessas recordações e saudades que em mim vivem. E que acordam de vez em quando.
Foi o caso de, nas "grandes operações" de limpeza de papéis - há sempre operações com tal propósito, mas acontece que é cada vez mais frequente a necessidade de... "grandes operações" - em que andamos, do meio de papéis avulsos me saltou esta fotografia:
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Fiquei a olhar para ela, embevecido, trabalho parado, eu como pasmado. A minha tia Ermelinda e o meu tio Cardoso do lado direito da minha avó Damásia e, do lado esquerdo, os meus pais.
Até que a voz da consciência (também lhe chamo assim...) veio de lá do fundo (de onde?...) com um imperativo então?! paraste?
Retomei a faina - que remédio!-, mas separei a fotografia para com ela me encontrar aqui no sossego da secretária. E aqui estou, depois de a ter scaneado e preparado para o "post".
Talvez mais interessante, para mim, claro, e que poderá assemelhar-se a estória, de faccionada, é o verso da foto: Caneças, 5 de Abril 1931 Domingo de Páscoa. A lápis e com a letra da minha avó de que tão bem me lembro.
Ainda não eram casados aqueles dois casais que o viriam a ser no dia 10 de Junho de 1933, e foi decerto um passeio aos "saloios", em que evidentemente não era consentido que fossem sozinhos os namorados, engravatados eles (e de chapéu e lencinho no bolso) e bem enfarpeladas elas. No domingo de Páscoa, 3 dias depois da Judite, a mais novinha, a minha mãezinha ter feito 21 aninhos!
Como eu me lembro deste passeio... em que estava a começar a ser projecto de vida (vejam como "ele" se chega para "ela", e o olharzinho d'"ela"...)!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Títulos honoríficos

Cá o rapaz tinha um título honorífico de que muito se orgulhava: metalúrgico honoris causa.
Acabo de receber, de um camarada que leu o meu livro, um outro título que não menos me orgulha: militante de paredes de vidro.
Fica aqui para nós. Neste blog quase íntimo.
Aliás, tinha no meu pequeno caderno de apontamentos (ou a ponte mentos), datado de 14.09.2008:
  • Ter honras por aquilo que se foi? Nunca!
  • Ter honras por aquilo que se é, ou que se pensa que se é, ou que outros julgam que se é? Um pouco...
  • Ter honras por aquilo que se faz? Todas!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Uma outra estória da Festa

Hesitei. Conto, não conto, ou rio-me só cá comigo? Conto! Aí vai.
Entre as 16 e as 18 horas estive na “Festa do Livro” na apresentação do meu livro e a autografá-lo. Depois, bebi umas cervejas, comi uma bifana, andei um pouco (pouco!) pela Festa, e depressa se fez tempo para estar, antes das 21 horas, no auditório do “Pavilhão Central” para um debate sobre a crise do capitalismo.
Dei o meu primeiro contributo, e fui bebendo água enquanto os outros camaradas falavam. Animei na parte final, sai relativamente satisfeito do auditório e ainda porque muito bem acompanhado. Percorremos, amigos em fraternidade, o caminho até aos nossos portos de arribação e recuperação de forças – primeiro, o meu em Santarém, depois, o dele em Coimbra.
No percurso, fui vivendo com alguma excitação encontros ocasionais – com alunas, com alunas de há quase 30 anos! –, e pedidos de autógrafos nos livros comprados e à procura do autor. Mais umas imperiais, mais umas conversas, e a necessidade de ir arranjar espaço para novas imperiais.
Sai de Coimbra, atravessei a rampa relvada de corpos em pousio, uns solitários, outros em grupo e conversa, outros aos pares e beijinhos. Cheguei aos sanitários, perfilei-me na fila, esperei a minha vez. Que chegou. Fiz o que ali me levara, dei meia volta e quando comecei a abotoar os botões destes jeans de botões, e a fazer a fila em sentido contrário, com a intenção de passar por onde a minha mãezinha dizia que os meninos deviam ir depois de fazer xi-xi, eis que fui abalroado. “Ah, g’anda Sérgio! Estava mesmo à tua procura…”.
E aquele homem, que vinha, ele, a começar os preparativos para fazer o que eu acabara de fazer (as calças dele tinham fecho de correr), começou a vasculhar na mochila e sacou de lá de dentro o meu livro. “Dá-me aí um autógrafo, comprei-o agora mesmo… sou o Amílcar… lembras-te?… dos Purrianos… toma lá a esferográfica.” Peguei na esferográfica dele (na esferográfica!), com algum constrangimento porque estávamos a provocar um ajuntamento, melhor, dois ajuntamentos – um a entrar, à minha frente, outro a sair, atrás de mim –, escrevi a dedicatória (Para o Amílcar “purriano” com um abraço e tal…) enquanto ia dizendo “Ó Amílcar, ‘tás porreiro, pá?… então não me lembro… temos é de nos apressar…”
É que os ajuntamentos estavam a tornar-se caóticos, naquele estreito corredor para aliviar pressões de bexiga nos sítios indicados pela organização. Mas, curiosamente, assistia-se com paciência e bonomia àquela cena. E que cena!: dois gajos – um já aliviado, outro ainda não – a abraçarem-se, e um deles a escrever num livro que o outro lhe apresentara de esferográfica em punho. Tudo isto no espaço que era aquele, no tempo de segundos que, em certos momentos de aperto, parecem horas.
Quando me encontrei cá for, ao ar livre, sorri e suspirei. Duplamente aliviado.
Ah!, e acabei por não fazer aquilo que a minha mãezinha me ensinou que os meninos têm de fazer depois de fazer xi-xi. Também, por uma vez…

Só nesta Festa! Que não há Festa como esta!

Esta parece mesmo ficção...

Na sexta-feira da Festa do avante!, logo depois de almoço.
Com o cartão de serviço, entrei no recinto e conduzi o carro até à "Festa do Livro" para descarregar uns exemplares.
Estava nessa tarefa - atarefado - quando um homem que vinha subindo a larga avenida central, entre a azáfama dos últimos acabamentos, se me dirigiu.
"O senhor fazfavor..."
Pousei os livros que carregava no descarrego, olhei-o: idade acima da média, de fato e gravata, penteado abrilhantinado, um ar sub-urbano.
"Diga, diga" (estranhando aquele tratamento, ali...)
" Faz-me o favor de me dizer onde é que é a Festa do avante!?"
Olhei-o espantado. Seria um camarada a gozar comigo?
"Mas... ó homem, você está na Festa do avante!... é aqui."
"Ah, é? Pois... mas onde é que se pode dançar? Sabe?, dar assim uns passitos de dança..."
Que é que lhe havia de dizer? Perante o ar de quem espera mesmo resposta, cheio de seriedade e de boa fé, ainda lhe disse "ah!, isso só logo à noite... e tem de procurar...".
Agradeceu-me com uma mesura, e continuou a subir a avenida, logo ali a desembocar no "espaço internacional".
Antes de voltar a pegar nos livros por descarregar, demorei algum tempo a recuperar da surpresa.
Esta Festa!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Num mundo outro

Num mundo outro.
Melhor porque mais humano,
porque construído sobre trabalho e solidariedade.
Um mundo de gente,
diferente o mundo,
diferentes as gentes.
Por isso,
vi umas coisas que não queria ter visto.
Por isso,
ouvi umas coisas que não queria ter ouvido.
Por isso,
aconteceram umas coisas que, para mim, não deviam ter acontecido.
(... diferentes são as gentes!)
Mas o que vimos, ouvimos e aconteceu
foi a FESTA!
Porque a construímos
porque a fizemos,
porque a queremos nossa
e de todos,
e não deixaremos que a destruam!
E queremo-la assim,
nossa mas aberta,
aberta mas com gente dentro,
gentes diferentes mas gente.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

"Com uma imensa alegria"

Como todas as manhãs.

Como todas as manhãs, aqui me sento. Esperando o acordar da vida. E das memórias. Da lembrança do escrito de ontem. Irresistível. Sobre esta pedra–mãe. Vista do outro lado.
Mas é daqui, aqui sentado, que mais vezes a vejo. Tantas e tantas vezes – quase sempre… – sem a ver. Como se fizesse parte de mim. Do que fui. Do que sou.
Teve por companhia tábuas de solho, que com ela casavam, agora são quadrados de tijoleira que se ajustam aos seus irregulares contornos.

Sempre se saiu da Casa pisando esta pedra, soleira de todas as portas. No começo de tudo, com serventia para os currais e para o forno, com pés descalços afagando-a, fazendo-a assim, macia e acolhedora, ou com botas cardadas, agredindo-a sem que ela se queixasse. Agora, ali está, a ser Casa, no seu terceiro século. Vivendo connosco a nossa passagem por aqui.

Levanto os olhos.
É ao atirar a vista e o pensamento pelos verdes lá de fora que eles, os olhos e a memória vivida, se prendem a esta pedra.

Esta é a pedra, o assentamento de tudo que é esta Casa.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Esta é a pedra

Esta é a pedra!

Esta é a pedra-mãe desta Casa.
Sobre ela se construiu a Casa, e é o que resta do que foi a Casa. Como era.
Agora, nesta manhã, nela se espreguiça a sombra das ripas da janela, trazida pelo sol ainda nascente.

Por esta pedra, soleira de todas as portas, sempre se entrou para a Casa, sempre se saiu da Casa.
No começo de tudo, com serventia para os currais e para o forno, para se ir dar a comida ao gado, para fazer uma merendeira; para se sair a labutar na fazenda, enxada às costas, para a ela se regressar, corpo cansado, ao som das avé-marias.
Quanto pé descalço a pisou, a afeiçoou!
Teve por companhia tábuas de solho, que com ela se juntavam, agora são quadrados de tijoleira que se ajustam aos seus irregulares contornos.
A porta já não é a da fundação, de madeira robusta e gateira para os gatos virem caçar os ratos que abundavam; as paredes foram rebocadas e parecem, por isso, outra coisa que não o que foram.

Esta é a pedra! Não a bíblica mas o assentamento de tudo que é esta Casa. Aqui nasceu meu pai. Aqui, naturalmente, morro aos poucos, um dia de cada vez, vivendo a alegria de estar vivo e de saber porquê e porquê com quem.

Nesta pedra gosto de me sentar, a atirar a vista e o pensamento pelos verdes lá de fora e dos longes.
Desta Casa gosto de falar. E sou feliz por não ser só eu, e haver quem o faça de outra maneira, com outros olhos, com outro sentir igual ao meu. Com o igual sentir que há um encanto, uma magia, uma ternura. Um estar bem.

Esta é a pedra!

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Brevíssimas reflexões à margem de coisas lidas

Se alguém está inquieto/a "pelos valores da liberdade e da justiça", estando (ou parecendo estar) indiferente à luta contra o que faz esta sociedade (este mundo prostituto) um "edifício" construído sobre a falta de liberdade e de justiça, ou é ignorante, ou é hipócrita , ou está a tentar não perder um lugarzinho no céu.
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A inovação - a novidade - não se procura, encontra-se, encontra-se ao correr da escrita que não pretende, à partida, ser inovadora - novidade -, ou não se encontra...

Aqui, na mesa ao lado

Aqui, na mesa ao lado, três,
à vez,
só falam negociês.
Nem dos filhos ou das mulheres,
(nem de gajas…),
nem de futebol,
nem de Jogos Olímpicos,
nem de jogos sem serem olímpicos,
nem de olímpicos sem serem jogos
nem de comida,
nem de bebida.
Nada de ócios,
só negócios!

Compro a tanto
vendo a tanto mais tanto

e, na opinião deste, o produto
logo o lucro na daquele,
e reage aqueleoutro
nem te conto
quanto fazem de desconto!,
até porque no mercado
o preço está marcado,
pois... com tanto imposto a pagar,
o que é preciso é facturar!

(embora por fora!, diz o outro)

Não há amigos,
nem parceiros, nem companheiros,
só há sócios, clientes e (indi)gentes

São jovens (ou têm a aparência)
E ouço-os, talvez com falta de decência,
e se, indecente, interviesse com o já escrito
ou apenas com um dito,
já sei que me diriam que estão a tratar da vida
e – afirmariam! – do futuro dos filhos queridos
… de que só então se lembrariam.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Daniel Filipe - Pátria, Lugar de exílio - 1


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VII


Je dis à tous ceux que j'aime
Même si je ne les ai vus qu'une seule fois
Je dis tu à tous ceux qui j'aiment
Même si je ne les connais pas

Pelas tuas razóes
Prevert
e por outras...... também
trato por tu a quem amo
mesmo que seja o nosso primeiro encontro
e nunca mais...... talvez
nos voltemos a ver

Viajantes clandestinos
na pátria dominada em forma de navio
amamo-nos mesmo sem nos conhecermos
tratamo-nos por tu
tratamos por tu os que se amam
tratamos-te por tu...... a ti Prevert
sob a forma de poema
desta pátria-navio
o nosso amor visado pela Censura

Daniel Filipe

Daniel Filipe a aplaudir a entrega de uma taça
ao capitão da equipa de "solteiros" da Siderurgia Nacional
(o que poderia ter sido uma ilustração
de 50 anos de economia e militância)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Amor de uma noite

Tinha sido muito desagradável a conversa. Tensa e triste. O desencontro era evidente e irreparável.
Ele não abdicava da luta e dos seus riscos, ela (“não te chegou?”) não aguentava mais, e ia-se embora (“não vou voltar a sofrer o que me fizeste sofrer!”). Triste. Se quiseres, quando quiseres… sabes onde me encontrar, e como recomeçarmos”. Da irritação, das vozes em falsete, tinham passado à tristeza. Ainda afloraram um beijo.
Ele ficou na casa vazia. Vazio. Sem pensar. Deixando correr o tempo. Que somou horas.
Depois, sacudiu o torpor e saiu. Andou pelas ruas da noite até se ver a entrar num antigo poiso, o Ritz Clube. Subiu as escadas automatamente, sentou-se a uma mesa a beber uma cerveja, alheio ao que e a quem o rodeava. Assistiu, como se estivesse, sonâmbulo, num passado de há alguns anos, ao “strip-tease” feito pela mesma mulher, ainda mais envelhecida, que terminava o seu número com um archote a chamuscar-lhe os poucos pêlos ainda não queimados.
Saiu tal como entrara. Meteu-se num táxi que o levou a casa. À porta de casa. Hesitou. Voltar ao quarto agora vazio?
Ao ver o carro estacionado, resolveu adiar aquele regresso. Deu umas voltas e, com alguma surpresa, viu-se a passar à porta do Ritz e, logo logo ali, um lugar para estacionar.
Subiu, de novo, as escadas que quase todas e todos desciam. Chegou-se ao bar, pediu uma cerveja, e voltou-se para a sala fincando os cotovelos no balcão.
Uma mulher levantou-se da mesa onde estava, sozinha, num espaço a esvaziar-se, e aproximou-se. Estendeu-lhe a mão e pediu ajuda para subir para o banco alto. “Obrigada… tinha o pressentimento que ias voltar. Até recusei alguns clientes à tua espera…”. “… à minha espera?!”. “Sim. Há pouco, aí há uma hora, vi-te tão triste, tão desamparado, que decidi, sei lá porquê…, que a noite seria contigo. Queres vir?”. "Mas… onde?”. “Anda!”.
Foram. Para o quarto alugado onde ela vivia. Na Rua do Passadiço e onde (sublinhou!) não levava “clientes”.
Fizeram amor com “carácter de urgência. Conversaram sobre as vidas até o sono a vencer.
Já manhã adiantada, ele despediu-se dela com um beijo que não a acordou, e foi trabalhar.
Foi há tantos anos (décadas!) e nunca esqueceu aquela noite. E aquela mulher. Que nunca mais viu (ou com quem se teria cruzado na rua sem a ver), de quem nem sabia o nome a não ser este: mulher.

Esta estória é, toda ela, ficção (e do cordel). Toda… menos o Ritz, menos o espectáculo de “strip-tease”, menos a mulher, menos a Rua do Passadiço, menos (quase) tudo.

iconoclastias - 9

- Então adeus.
- ... aDeus!
- ... até ao meu regresso...
- ... que Deus o acompanhe...
- ... vale mais só que mal acompanhado...
- ... ai!... Virgem Santíssima...
- 'inda o é?

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

iconoclastias - 8

- V. que lê o Expresso viu a entrevista à Lili Caneças?
- Li, antes de adormecer…
- … e não lhe tirou o sono?
- Não… porquê?
- É que aquilo é um escândalo.
- Não achei nada de mais. Ri-me, e até achei piada aquela da dama ter sempre pago o 13º mês e o subsídio de férias às empregadas (bom exemplo, bom exemplo)… lá que a fulana é uma mitómana é evidente...
- … mitómana? aquilo é mas é um escândalo, uma imoralidade…
- … já vi pior em entrevistas…
-… pois eu não me lembro… num jornal desta credibilidade ou em livros?
- Pois, pois, em livros… então no que respeita a mitómanas (mitoirmãs) lembro o livro das “Duas entrevistas com a Irmã Lúcia”
-… hereje!
-… qual quê?! Iconoclas tias!

iconoclastias - 7

- ... nem ao menos um Padre Nosso?
- ... nada!... nem uma avémariazita...
- Que Deus lhe perdõe...
- Amen!

domingo, 24 de agosto de 2008

iconoclastias - 6

- Mas não acredita mesmo?
-... em quê?

sábado, 23 de agosto de 2008

iconoclastias - 5

- Então... (ar compungido, muito compungido)
- É verdade... descobriram-me um sacana de um cancro no cólon...
- Onde?!
- ... no intestino. Mas vamos dar cabo dele...
- Deus queira, Deus queira...
- ... e o médico ajude, não é?!

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

iconoclastias - 4

- ... não me diga... mas você é baptizado...
- Eu!?... fui, fui, baptizaram-me...
- Ah!... graças a Deus...
- Não foi, não!... foi graças aos meus padrinhos que eram dessas coisas!

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Histórias ante(s)passadas - 36

Um estória que ficou por contar. Como as cerejas que vêm umas a seguir às outras e, por vezes, uma parece que ficou para trás.
Andava eu no Pedro Nunes, então chamado Liceu Normal por nele se fazer, também (ao que julgo) a formação de professores, e que era um liceu “de elite” pela proximidade da Estrela e da Lapa, bairros de gente ligada aos meios políticos e económicos.
Era o liceu que nos convinha, por ser perto de casa, para onde ia a pé e muito facilmente (lembro-me das indicações do caminho a tomar para atravessar o mínimo de ruas possível, e as menos frequentadas por automóveis, então raros: subir a Rua do Sol, virar na Rua da Páscoa, atravessar a Rua da Arrábida, etc.). Mas também sabíamos que havia alguma selecção nas admissões.
Eu lá andava com “filhos de algo” e outros que nem por isso (tous les enfants sont fils de quelq’un, não é verdade Brel?), e do menino na escola da garotada do bairro popular passara a ser o garoto do bairro popular no liceu dos meninos. A fazer a aprendizagem das diferenças sociais, até chegar ao conhecimento da História, isto é, da luta de classes.
Acontece que um dia, não sei como, me vejo numa sala de aula em que, em complemento da cadeira de Religião e Moral, se fazia uma espécie de catequese, com prelecções e rezas pelo meio.
Eu estava estranho àquilo que ali se passava, e observava tudo procurando não “dar nas vistas”. Mas dei! No final, o padre que dirigia a aula, ou lá o que era, reteve-me e perguntou-me se eu sabia rezar. Claro que disse que não. “Nem um padre nosso ou uma avé Maria?”, “Não, senhor professor!”, “Prior, prior…, temos de ver isso… como é que te chamas?", “Sérgio, s’tor, perdão s’prior”, “És baptizado?”, “Acho que sim…”, “Temos de ver isso…onde é que moras, os teus pais vão à missa?, claro que não!, têm telefone?”...
E eu lá fui respondendo ao interrogatório e, quando cheguei a casa, ao fim do dia, contei aos meus pais. Preocupação. Disfarçada, mas preocupação.
Dias depois, o meu pai foi “convidado” a ir ao liceu. Sei que foi. Sei que se conteve para não partir a loiça toda. Lá terá dado as suas razões, e tudo continuou como dantes. Na aparência. E fez-me a recomendação de evitar ir a “coisas daquelas”… a não ser que eu quisesse, claro.

Diálogos (re)correntes - 7

(com ar pensativo, concentrado) - … tenho de ir tomar…
(interrompendo e metendo-se na conversa do outro “para dentro de si”) - … pois, pois, não te esqueças de tomar o medicamento…
- ... não é isso…
- ... ah!, não?
- Não. Estava a lembrar-me de ir tomar uma nota, num daqueles meus papelinhos de lembranças…
- Ah!... e sobre quê, pode saber-se?
- … não me esquecer de tomar o medicamento.

iconoclastias - 3

- ... estou a ver... saí-se ao quilómetro 115 da A1, passa-se a rotunda sul de Fátima... mas olha lá, não há maneira de chegar a tua casa sem passar por Fátima?
- Há, há!... graças a deus!
- Ainda bem, assim fugo ao trânsito e não tenho de dizer adeus à virgem... Ora diz lá...
- ... sais em Torres Novas, ou então em Leiria... são mais uns quilometrozitos... eu prefiro Leiria porque assim não perco o quilómetro 110 e a vista dos Castelos.
- Manias tuas!...
- Crenças, crenças!

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Histórias ante(s)passadas - 35

Passemos, então, aos fornecedores e representantes.
Uma verdadeira escola. De tudo.
A “casa comercial” do meu pai representava artigos de papelaria e correlativos, de diversa proveniência. Por isso, o meu pai estava muito relacionado com empresas do Norte, como a Vieira Araújo, (julgo que) & Companhia, Lª (Viarco), fabricante de lápis, pastas… e chapéus. Lembro-me de termos sido recebidos, familiarmente, em casa do senhor que dera o nome (e o resto) à empresa, com grande hospitalidade.
Mas, entretanto, um dos seus vendedores, com quem o meu pai tinha relações de amizade, Mário Lino, estabeleceu-se (naquele tempo não se falava em empreendedorismo e era bem mais são) e o agente comercial Joaquim Ribeiro passou a representar os produtos Molin. Acompanhei, miúdo atento, tudo isto e, não sei porquê, “cai nas graças” de Mário Lino e família, que até me levaram a passar na sua casa no Porto (na Rua do Almada) alguns dias que não esquecerei, Também porque, talvez para tentar compensar a hospitalidade, não tinha ainda 10 anos, quis fazer o mesmo que fazia em Lisboa: “ajudar”. E não é que teria ajudado mesmo num problema de importação de rolamentos, com a designação alfandegária de “acessórios de peças”?! Ficou na (minha) história…
Entre as recordações, lembro que nas suas idas a Lisboa, Mário Lino nos convidava a irmos ao cine-teatro Ginásio ver filmes da Marika Rök, artista emblemática da Alemanha nazi. Hoje, desconfio das simpatias que então haveria por aquele lugar e filmes… Simpatias que meu pai nunca partilhou, ele que assinou as listas do MUD e teve alguns problemas por ser ”oposicionista" (ou "não afecto ao regime" como escrevia a PIDE nas fichas) e pelo seu anti-clericalismo. Noutra estória contarei um.
Só mais uma referência com nome. Quando Américo Barbosa criou a sua empresa, a Âmbar, que veio a atingir dimensão apreciável (Complexo Industrial Gráfico, SA) houve negociações (a que assisti, como “colaborador”) para que meu pai o representasse.
Mas o meu pai era pouco de exclusividades, até porque acarinhava muito os seus próprios produtos. Blocos e papel de carta Ourém (claro!, com os castelos), blocos Miúdo e papel de carta Sergito, com a minha fotografia (a que está ali em cima) estampada.
Já fui marca! Há uns 60 anos…

iconoclastias - 2

- ... ó menino, essa palavra lá em cima, isso das ico-não-sei-quê-das-tias tem alguma coisa a (ha)ver com aquele dichote malcriado, asneirento, c'os meninos dizem da (ai, Jesus santíssemo...) ... da... "coisa" das tias?
- ... mais ou menos, mais ou menos, ó ti'Maria...
- ... ai menino, benz'ó Deus...

terça-feira, 19 de agosto de 2008

iconoclastias - 1

- Ah!... mora em Fátima... e é crente?, é devoto da Virgem?...
- Eu?!... deus me livre...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Pequena crónica nocturna

Há pouco, ao jantar, ainda nos rimos com gosto.
Rimos… porque o jantar deixou de ser uma refeição em que abundem outros gostos. A partir de certa idade há que ser comedidos, isto é, atentos às comidinhas e, ao jantar, uma sopinha, umas coisas levezinhas para acompanhar uma fatia de pão, uma lasca de queijo, uma frutita e mais nada. É assim…
Acontece que, há pouco, ao abrir uma daquelas embalagens que se compram nas hiper-superfícies em finíssimas fatias, numa, de marca portuguesa ("nobre"),
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emperrámos com o nome do produto Naturissimos, que serviu de conversa-comentário, mas só para começo porque logo a especificação nos fez rir: Fiambre da Perna Extra. Só podia ser de animal macho e de que raio de sítio do animal se fora fazer o fiambre…
Embalados, íamos passar à outra embalagem, mas ainda vimos que este primeiro fornecedor, português e “nobre”, não só escolhera aquela parte da morfologia do bicho para fazer o fiambre como nos oferecia um novo prazer... Sim, senhor, muito sugestivo!
A outra embalagem era de presunto fabricado em empresa alemã, explicando tudo em português impecável, sobretudo que o dito presunto fora salgado à mão e, tão embalados estávamos com as mensagens das embalagens, que lemos que esse trabalho, à mão!, fora de 14 semanas de masturbação… quando deveríamos ter lido 14 semanas de maturação. E garanto que não somos lá excessivamente virados para a malandrice, nem sofremos daquelas obsessões que teriam apoquentado o senhor Freud e seus continuadores, seus discípulos e pacientes. Mas os homens e as mulheres não são de pau, e que rimos com gosto rimos.