faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Intervalo (nas ficções) com extractos de um quase-diário

27.09.2007

(…)

Já que me contei a estória do almoço com o senhorio João, vou publicá-la no ficções do cordel.
Depois do “a falta que me fazem aqueles 50 paus”, da estória recebida do/dedicada ao Eduardo.
E começarei por alterar a cronologia.
Começarei por aqui.
Por esta decisão.
E só depois entrarei na “ordem”… cronológica.

(…)

25.09.2007

(…)

E dei um salto ao senhor Juan Ribeiro Allen, o melhor senhorio de Lisboa!
Não foi um almoço, foi uma festa!
Amanhã, conto… se contar.

&-----&-----&

(…)

26.09.2007

(…)

O almoço… pois… o almoço de ontem com o sr. Juan Ribeiro Allen… conto, não conto?..., acho que vale a pena contar assim a modos de “ainda dizem que não há almoços grátis”.
O sr. João (assim é mais fácil em vez do dito sr. Juan Ribeiro Allen) é o proprietário de uma tasca tasca na Rua dos Remolares, ali ao Cais do Sodré, e há 30 anos, mais precisamente há 29 anos, comprou os prédios que recebi por herança do meu pai e vendi, por tuta-e-meia, para pagar as dívidas que recebi por herança do meu pai (deve ter ficado ela por ela…) e me demitir das funções de senhorio, de que não queria tomar posse.
Desta operação patrimonial/financeira resultou o ter ficado a minha mãe como locatária, isto é, inquilina, do rés-do-chão direito onde ela vivia desde 1939, e eu desde esse ano até me fazer a outras residências… mas sempre com porto de retorno ali ou por ali.
E fui pagando a pequena renda, sabendo das visitas simpáticas a minha mãe do sr. João, ou do senhorio João (fica assim), sempre parecendo quase envergonhado por estar a receber rendas da velha senhora (e ex-senhoria, diga-se de passagem, que aquele património vinha da ascendência materna).
Até à minha ida para as "Europas", tudo corria bem, tirando o envelhecimento da casa (e não só!), as obras a fazer por fazer, ou feitas com grande atraso.
Ora essa ida (com idas e vindas semanais) mudou muita coisa nos meus já deficientes procedimentos administrativos.
O que sei, ou do que me lembro, é que, a partir aí de metade dessa estadia de ida e volta, atrasos na recepção do correio e outras contingências, começaram a engulhar os pagamentos da renda ao senhorio João.
Sem intenção…
E usei o expediente da transferência bancária, que faz com que a gente nem note que está a pagar coisas e mais coisas num sem fim de coisas.
As coisas, estas das rendas, pareciam nos carris, mas num Janeiro qualquer veio a indicação da correcção indexada da renda, que eu deveria comunicar ao banco, meteram-se outras coisas – elas são tantas… – e esta ficou por fazer.
O que sei, mas não bem ao certo, é que, a partir de nem sei quando – mais uma coisa que não sei… –, comecei a sentir que estava em falta com o senhorio João.
Entretanto, sabia, por portas travessas, que o senhorio João parecia ter a intenção de não levantar qualquer questão enquanto a minha mãe fosse viva.
Entretanto, a inexorável roda do tempo rodou – assim é que se escreve! –, a minha mãe veio da sua Rua do Sol ao Rato para o Vilar dos Prazeres em trânsito tranquilo, sereno, acompanhado, para o cemitério da Atouguia, e o caso do senhorio João foi sendo esquecido ou tirado das coisas a ter de lembrar.
Com a morte da minha mãe, aos 96 anos!, o caso da casa da rua do sol tornou-se caso que não podia ser mais adiado.
A Zé meteu-se no caso da casa e, no meio das muitas coisas que tenho para resolver, resolveu ela resolver esta.
Tirou-se de lá o que havia a tirar (toneladas de papéis), deitou-se fora muita coisa (toneladas de papéis), fez-se uma limpeza à casa, que ficou em condições – mais ou menos – de ser entregue a quem de direito (e euros) senhorio é.
Entretanto, e tantos entretantos há, passaram dias, talvez semanas e meses, e, pelas mesmas portas travessas, é-me dito que o senhorio João tinha andado lá pelo prédio que é dele, a dizer que ia fazer obras e que queria falar comigo para se resolver o caso da casa.
Fui à agenda antiga, tentei telefonar para os números que lá tinha, e nenhum deles respondia.
Entretanto – mais um – renovavam-se recados de que o senhorio João queria falar comigo e de que estaria ligeiramente aborrecido por eu não o contactar.
O que não era verdade… nas minhas intenções.
Em resumo, depois de muitas tentativas, lá o apanhei e, muito simpaticamente esclarecida a dificuldade de contactos com as férias (dele) na Galiza, em Pontevedra e outras deslocações galegas, marcámos um encontro, para ontem, na Adega dos Canários,
E foi a essa que fui ontem e aconteceu o que conto hoje.
Convidei o R. a vir comigo, não porque precisasse de guarda-costas ou testemunhas, mas porque ele estava com vontade de almoçar comigo no intervalo da audição da Conferência, e assim se conciliava tudo.
Confesso, de novo, que ia um tanto ou quanto Egas Moniz com o baraço ao pescoço, embora a recepção telefónica tivesse sido animadora relativamente ao ambiente.
Bom, fui recebido simpaticamente, e senti ter tido um excelente impacto a minha disposição de almoçar naquela tasca tasca, onde o senhorio João, fluente no galaico-português, de avental aos quadrados, também serve à mesa, com a equipa familiar a trabalhar e uma caboverdeana na cozinha e para o que for preciso.
Fez questão em nos apresentar os petiscos da casa, que ele-próprio nos serviu abundantemente, e mais abundantemente nos ia trocando os copos vazios pelos copos cheios de tinto que trazia para mesa.
Sobre o caso da casa… nada, e quando eu interrompia aquele vai-vem dizendo “senhor João temos de falar…”, ele passava “señor Riveiro, tenemos tiempo, bamos tomar um cafécito despois… gosta destas bifanas?”
E foram as bifanas, depois da sopa suculenta, e dos filetes de bacalhau, e ainda veio a carne assada e o presunto (em vez da fruta), e – sempre – os copos cheios de tinto.
Até que chegou a hora de eu pedir a conta, e de ter tido uma resposta meio risonha meio indignada “non paga nada!”, e eu a protestar sem qualquer força ou eficácia e a concluir “então vamos ao cafécito (que nunca tomo mas desta vez tomei), que ao menos esse pago eu”
Mas não paguei nada, que ele não deixou.
Ou então foi o dono do café em frente que não quis receber, depois de termos conversado animadamente sobre as belezas e o palhete de Ourém e as memórias que tenho da Casa de Arcos de Valdevez, de onde é este outro proprietário, não de tasca tasca mas de tasca café.
Finalmente, consegui chegar ao ponto da ordem de trabalhos, o caso da casa.
Que o senhorio João rapidamente esgotou com uma pergunta: “O señor Riveiro quier la casa? se não la quier, me dê la xabe...”.
“’tá bem”, disse eu, “mas temos contas para fazer, devo-lhe rendas e vai haver despesas com tirar restos de coisas que ainda lá estão e limpeza…”.
“Quier ainda alguma coisa de lá?... se não quier, está tudo certo, não hay más contas para hacer.” e, perante a minha estupefacta satisfação e protesto, “volte sempre e traga a sua senhora".
E assim foi.

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Despi a túnica, guardei o baraço, metemo-nos num táxi e voltámos ao Hotel Roma para continuar na audição.
Táxi que o R. fez questão de pagar, verdadeiramente satisfeito com o que tinha partilhado comigo e ligeiramente eufórico (ligeiramente eufóricos estávamos os dois, mas só ligeiramente e em recuperação rápida porque havia trabalho, depois de tantos copos de tinto e apesar de termos recusado os amigável e insistentemente oferecidos bagacitos...).
Saiu-me barata a festa, quer dizer, o almoço... e tudo o resto.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 9 e último

Um grande silêncio caiu no grupo quando o Eduardo acabou de contar.

Talvez no resto do café continuasse o barulho habitual, de conversas, de chávenas que se tocam, de colheres a mexer o açúcar, de bolas de bilhar que, lá ao longe, se entrechocam. Talvez… mas as duas mesas perto da janela pareciam impenetráveis a todo o ruído.

Um incalculável tempo passou até o silêncio ser quebrado. E foi quebrado por ele, pelo Eduardo, como quem sacode o que está pensando, ou o arruma muito bem muito dentro de si.

“Vocês nem calculam a falta que me fazem, hoje, estes 50 paus…”. E riu-se. Triste.

“Deixa lá… hoje pagamos-te nós o café!”, disse um, por todos e como se a voz viesse daquela cadeira vazia, onde o ausente teria sorrido se tivesse ouvido.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 8

Aquele sábado, de Janeiro de 2003, aquele dia em que estava reunida a tertúlia, era o primeiro último sábado de um mês, desde há mais de trinta anos, em que o Eduardo não recebera o envelope com o “salário” que o avô decidira pagar-lhe para assinalar que ele dera um passo para ser um homem.

À guisa de curiosidade, o Eduardo ainda contou que nem ele nem ninguém encontrou, em lado algum dos sítios onde o avô guardava as suas coisas, mais quaisquer notas de cinquenta escudos.

Ele bem procurara! Aquelas teriam sido as duas últimas.

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 7

Durante o ano de 2002, até ao último sábado de Novembro, foram doze as notas, metidas em envelopes com o nome do Eduardo escrito em letra de cursivo, que o avô lhe deu.

No mês anterior, em Dezembro, naquele Natal, o avô chamou-o ao quarto onde estava acamado já há dias – “… que cara é essa, rapaz?… isto não é morte d’homem…”, sorrindo como se apenas tivesse dito uma graça –, e entregou-lhe, às escondidas de todos, o último envelope com o nome dele, escrito com letra trémula mas ainda bem legível no frontespício, e duas notas de cinquenta escudos dentro.

O Eduardo saíra do quarto com lágrimas nos olhos.

Fora, talvez, o último gesto que o avô fizera antes de morrer.
.
Assim o contou.

Intervalo para... começar o dia

E assim começa o dia…

Alguma movimentação me despertou ou espertinou.
Apalpo o espaço ao lado e confirmo que ela já se levantou.
São horas!
A noite foi mal dormida
e a manhã mal acordada
(agora é que se estava bem…)
Dificilmente, abro os olhos
e os olhos dificilmente se mantém abertos.
Parecem estar com areia, e "lacrimijam",
antes de eu o fazer por onde e onde o devo fazer.
Os ossos resistem a tomar posição diurna e erecta
(à noite é outra coisa…)
e doem como se fossem todos iguais aos do joelho esquerdo
(ah! este joelho esquerdo…)
O nariz, por dentro,
é mais uma “aldeia dos macacos” no jardim zoológico.
Com uma mão, coço o nariz, por fora,
e a barba e o cabelo e a cabeça
enquanto a outra coça outras partes
(lá para baixo…)
Arrasto os pés que me arrastam o resto do corpo.
Vou buscar o pão lá fora e apanho com o frescor da manhã.
.
Ela já come o seu iogurte
e começou a leitura matinal das leituras atrasadas
Bom dia!
(receio uma espécie de lá começas tu...)
Não!, veio um olá, amor!
(bom!, isto está a ficar melhor…)
Ora vamos lá a tomar um pequeno-almoço a dois.
Já leste isto aqui?, pergunta ela
Ainda não!, é giro?, resposta e réplica
É!, deves ler… tréplica e convite.
Dormiste bem?,
Nem por isso, e tu?,
Assim assim.

E assim (assim assim) começa o dia.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 6

O que se podia fazer com 50 paus naquela altura, há mais de trinta anos… E ele ainda só a chegar aos 10 anos!

Lembrava-se que aquele dinheiro lhe dava para comprar dois livros. Aliás, como o avô, no mês seguinte, ao fazer o que passou a chamar “pagamento de salário”, chegara a insinuar. Embora sem nada insistir, ou sequer aconselhar, mas só a título de exemplificação como se podiam gastar 50 escudos...

Mas o mais importante, para ele Eduardo, é que, durante mais de trinta anos, todos os meses, o avô, no último sábado de cada mês, lhe entregava um envelope com uma nota de cinquenta lá dentro.

Em determinado momento, adaptando-se ao evoluir social, mas não à inflação!..., por Julho e Dezembro as notas eram em duplicado.

Nesses dois meses eram duas notas de cinquenta escudos que estavam dentro do envelope. A título de subsídio de férias e de subsídio de natal, dissera-lhe o avô na primeira vez que fez, piscando-lhe o olho e dizendo-lhe que assim o dispensava de ir fazer queixa ao sindicato por o patronato não respeitar as conquistas de Abril…

Era quase um ritual. No último sábado de cada mês, exceptuando em Dezembro em que a entrega do envelope era por altura do Natal, mas sempre antes.

Quando o euro entrara nas nossas vidas portuguesas, e o escudo delas saiu, no ano anterior, em 2002, as coisas poderiam ter-se complicado. Mas não.
.
Ao que parecia, o avô tinha guardado um stock inesgotável de notas de cinquenta escudos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 5

O Eduardo respirou fundo, guardou o lenço, e recomeçou.

Primeiro com alguma insegurança, depois como quem desfia um conto.

Quando ele fizera a quarta classe, já lá iam uns bons trinta, quase quarenta anos, e tivera distinção, a família resolvera fazer-lhe uma festa.

A mãe fez-lhe um almoço de sopa de camarão e lulas recheadas, que eram os seus pratos preferidos, e ainda preparou o melhor arroz doce que alguma vez tinha comido ou viria a comer – e se a senhora tinha fama de fazer bom arroz doce… –, o pai ofereceu-lhe uma caneta e fez uma espécie de discurso solene, apelando à responsabilidade de quem iria, agora, decidir qual seria a sua vida, toda a gente quis mostrar quanto aquele exame, e aquela distinção, era importante, não só para ele, mas para cada um e para todos.

Só o avô se mantivera calado.

Ao almoço e toda a tarde, estivera observando, sorrindo, não fazendo comentários, embora se visse que não estava de acordo com tudo o que ia sendo dito, nem com todas a coisas que iam sendo feitas.

Quase ao chegar da noite, acalmada a euforia pelos “belos resultados do menino” – como começou a dizer quando chamou o Eduardo à parte –, o avô provocou uma conversa séria com o miúdo que era o Eduardo, uma conversa “de homem para homem”.

Procurando corrigir alguns dos erros e excessos que, a seu juízo, se tinham ditos e cometido, quis explicar ao Eduardo que o que ele fizera fora bonito mas que não fora nada de assim tão excepcional e merecedor de tanta festa e de tantos elogios.

Aliás, sublinhara-lhe que esses bons resultados escolares eram mérito seu, mas deviam-se, também e talvez ainda mais, ao ambiente familiar, a ajudas dos pais – a mãe até era professora primária… –, a ter livros e hábitos de leitura na sua vida. O que, lembrava-lhe, não era o caso da maioria dos seus colegas, pelo que os meninos que, sem as ajudas que ele tivera, tinham tido tão bons resultados como os seus, também mereceriam a festa e as prendas que ele tinha tido, mas que as famílias não lhes teriam podido dar.

O Eduardo ouviu, atento, aquelas falas do avô, reviu o que sabia dos colegas de que lhe falara sem que os conhecesse como ele próprio os conhecia, e tomou consciência – sabia-o hoje – de que o avô tinha razão.

De qualquer modo, o avô acrescentara que estava muito contente com ele, que os resultados que obtivera, e a maneira como o via crescer, como o sentia estar a tornar-se um homem, lhe davam uma grande alegria.

E acrescentara, ainda, a jeito de esclarecimento e complemento, umas palavras que o Eduardo nunca mais esqueceria e recordou para os amigos:

“Olha, rapaz – vou passar a chamar rapaz ao meu menino que foste até agora –, estou muito contente porque passaste um exame para homem. Vais no caminho para lá chegar.

Ora uma das coisas que um homem deve ter é alguma independência económica, poder escolher sem que sejam os outros a escolher por ele. A partir de hoje vou dar-te, todos os meses, 50 escudos para tu gastares como quiseres. É uma mesada. Talvez daqui a uns anitos passe a semanada… É um salário! Gasta esses 50 paus como quiseres, e não sintas obrigação de prestar contas de como os gastaste a quem quer que seja… a não ser a ti próprio!”

Disfarçando a emoção, metera-lhe na mão um envelope com o nome dele manuscrito, e com uma nota de 50 escudos dentro, dera-lhe um cachação e dissera-lhe para ir ter com os outros que, distraídos, nem teriam dado por aquela fuga de avô e neto ao convívio familiar.

50 escudos! Uma fortuna naquele tempo.

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 4

Até que no último sábado de Janeiro, os amigos notaram algo diferente no Eduardo, que fora o primeiro a chegar.

Não que não estivesse a participar, que não entrasse nas conversas. Mas o seu ar era triste, muito triste, uma nuvem parecia cobrir-lhe o olhar, habitualmente vivo e claro.

Começaram por lhe perguntar pela saúde e tiveram a resposta de que a epidemia de gripe de que tanto se falava, e que provocara baixas na tertúlia, não entrara naquele corpo compacto e resistente a todos os vírus.

Mas, apesar de ele fazer um esforço que não podia esconder para participar como sempre nas conversas, era notório que havia ali qualquer coisa que fazia do Eduardo um homem diferente do habitual.

Os amigos continham a vontade de lhe perguntar o que se passava e esperavam que o dique se abrisse.

E o dique abriu, primeiro com uma lágrima irreprimível e disfarçada nas costas da mão, depois com uma torrente soluçada.

“Desculpem lá, desculpem lá… já passa…”, fungou ruidosamente, limpou as lágrimas num lenço enorme que tirou do bolso, sorriu, abriu a cara e atirou um enigmático “desculpem lá… tudo isto por causa de cinquenta paus… nunca um dinheiro me fez tanta falta… e são só vinte e cinco cêntimos!”.

Os amigos olharam para ele espantados. Como quem pede explicações. Que logo vieram.

“Ó malta... desculpem lá… não fui capaz de me aguentar. E foi mesmo só por causa de 50 paus. E eu, como sabem, não sou nada do género tio Patinhas…

Mas é uma história que vocês, que tão bem me conhecem, nunca ouviram… nunca vos contei!

(pausa) … também não tinha nada que vos contar…”.

Todos aumentaram o silêncio em que já estavam.

Um, timidamente, ainda começara a pedir para ele contar – ele, que até contava tão bem… – mas foi, imperiosamente, mandado calar por gestos e olhares dos outros.

Sabiam, todos, que o Eduardo tinha mesmo uma história para contar e até já começara. E aquela não era, pelos preâmbulos, uma história qualquer...

Ele que se decidisse.

domingo, 23 de setembro de 2007

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 3

Os anos somaram-se em décadas. É sempre assim na voragem dos anos vividos.

O Eduardo deixou de estar na “casa” dos vinte e o avô ultrapassou, em muito, a dos oitenta. Mantendo-se sempre presente, cada vez mais marcante na tertúlia. Até lhe acontecer o que, se não acontece antes, acontece aos oitenta e, se não acontecer aos oitenta, dos noventa não passa, ou então aparecem os jornais, as rádios e as televisões para fazerem reportagem de caso merecedor de ser conhecido por centenário ser.

Quando o avô, que deixara de ser só do Eduardo para ser um pouco de todos os que com ele conviviam, morreu, foi como se um vazio se tivesse aberto na tertúlia.

No sábado seguinte àquele dia frio, àquele dia de Dezembro ainda nos rescaldos do dia de natal, àquele dia em que o acompanharam ao cemitério, sem que nada tivessem conversado entre si, os tertuliantes deixararam vazia a cadeira em que “o avô” habitualmente se sentava quando estava entre eles. E assim passou a ficar.

O Eduardo sentiu o gesto de todos e, sem uma palavra, teve o sorriso triste, agradecido, comovido, bom, que só os corpulentos como ele parecem capazes de ter.

Mas a vida continua. E as tertúlias também, porque vida são.

Foi assim no último sábado daquele ano, já passado o natal mas ainda nas vésperas do ano novo, e nos sábados do Janeiro que se seguiram não houve qualquer interrupção no convívio.

O Eduardo, se já se contava entre os mais assíduos, não faltou a nenhum, e foi dos que mais contribuíram para que a boa disposição voltasse, para que a cadeira vazia não fosse um motivo de constrangimento mas até para uma por outra vez se dizer, com toda a naturalidade “é pá!, se o avô tivesse vindo, levavas nas orelhas por causa dessa graçola…” ou parecidos comentários oportunos.

sábado, 22 de setembro de 2007

Intervalo para crónica

Uma conta com graça
... e com troco em minutos

O jantar(inho) correra bem, Calmo, em tête-à.tête como se diz em francês… mas não naquele que falavam os burgessos da mesa ao lado e que pareciam estar ali para comprovar que nunca tudo pode ser perfeito.
Aliás, entráramos no restaurante – A Tropicana, entre a Foz do Arelho e Caldas da Rainha – cheios de dúvidas. Meio restaurante meio tasca, o cheiro a óleo frito que se olfatava na rua não augurava nada de bom. Mas os receios eram infundados. Lá dentro, meio restaurante meio tasca, não havia cheiros, tudo estava apropriado à condição.
Mandámos vir duas sopitas (de espinafres, preciso eu), que se comeram sem quaisquer protestos por farinha, sal e semelhantes coisas a mais ou a menos, e só tivemos que esperar pelas lulas grelhadas um bocadinho além do desejado, talvez porque o coitado do senhor que servia à mesa era coxo.
Este, o senhor que era coxo – e ainda deve continuar a ser porque aquilo não tinha ar de ter sido queda ou pancada… –, não era de simpatias mas era simpático. Respondeu a tudo o que lhe perguntámos, sem mesuras nem desmesuras, informando quem informado queria ser – sobre onde havia um multibanco, os quilómetros para as Caldas, e mais que fosse.
As lulas estavam mesmo ao ponto da grelhação, se eram congeladas não pareciam, e souberam mesmo bem, com elogios - cá entre nós - para a cozinheira.
Íamos conversando sobre as lulas e mais que vinha ao garfo ou à baila, calmamente, naquela bem-aventurança que às vezes nos toma… apesar dos belgas, ou lá o que eram, e do barulho que faziam.
Perguntei eu pela sobremesa, disse ela que não queria sobremesa nenhuma, mas quando o senhor – o tal que puxava por uma perna mais do que pela outra – falou em uvas, quis logo, e vieram duas doses, tendo ido uma para dentro porque explicámos ao senhor que nós somos assim, de meias doses ou de doses a meias…
Tudo conforme, sem café, nem nescafé, nem chá, que este ficava para o regresso ao quarto do Inatel. Venha a conta foi o que foi dito. E veio.
Eu olhei para o papel, saído da máquina registadora, vi o número mais visível – 22.39 – deixei 24 euros, e disse para ela “foi metade do almoço e ficámos melhor jantados que almoçados”. E saímos, deixando ciciadas umas boas noites que se perderam, decerto, na algaraviada franco-belgo-portuga.
Ao passarmos a porta da rua, ela – que ouve melhor que eu – disse-me “parece que te estão a chamar… esqueceste-te de alguma coisa… do telemóvel ou isso… é o costume”.
Contrariado e contrafeito, voltei à mesa, olhei à volta, olhei por cima, olhei por baixo, e vinha a preparar-me para responder ao injusto remoque, quando, ao chegar à porta, somos interpelados pelo senhor que, coxamente, vinha lá do balcão meio a rir e nos disse “ó homem, você deu-me dinheiro a mais… pagou-me a hora e não a conta do jantar!”.
Pois tinha sido. 22.39 era a hora que a máquina registadora registara ao fazer-nos a conta cuja não passava de 15 euros.
Acompanhei o senhor ao balcão onde me deu o troco, em moedas e não em minutos, e saímos de vez do restaurante. A rir. Cheios de confiança na espécie humana. Mesmo se, ou sobretudo se coxa. Que é como ela anda.

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 2

Aquela tertúlia, a que um deles, mais dado a frases e expressões a atirar para a erudição, chamava de geometria variável, juntava-se, há anos, todos os sábados de manhã.

No início, eram apenas homens, mas agora e aos poucos, como já se sublinhou, já tinha outras frequentações. Das desejáveis.

Uma característica que sempre teve a tertúlia foi a da heterogeneidade etária.

Aliás, se dela estivéssemos a contar a história, da sua génese e evolução, depois de apropriada investigação confirmar-se-ia que tudo começara com a tomada daquele espaço pelo Eduardo e pelo avô quando, um ainda com vinte e poucos anos e o outro já lá para os sessenta e muitos, assentaram arraiais por ali, por aquelas mesas, e começaram a atrair amigos para a conversa.

Eram, o Eduardo e o avô, de uma daquelas famílias que dão cor e tom a uma terra, mesmo quando de vila se transforma em cidade mais por conveniências ou manobras dos “políticos” que por razões de ordenamento do território, como dizia o tal confrade da "geometria variável" e coisas assim… como esta do "ordenamento do território".

Eram os dois, avô e neto, uns excelentes conversadores e contadores de histórias. Não fossem eles assim e talvez a tertúlia nunca sequer tivesse vindo a existir.

O avô era magro e seco, um senhor de fina ironia e muito saber, o Eduardo já aos vinte anos tinha um físico que se impunha e provocava muitas das graças que faziam rir as mesas da tertúlia, as mesas adjacentes e outros lugares da terra. E era, adequadamente ao físico, bonacheirão e tinha sempre ditos e dichotes, nem todos com a finura e a elegância de que o avô fazia alarde.

A falta que me fazem aqueles 50 paus... - 1

O Eduardo era um dos mais assíduos participantes da tertúlia.

Todos os sábados de manhã, aquele grupo de amigos se juntava no Café Central da pequena cidade de província, e Eduardo era dos que raro faltavam.

Contavam-se já por décadas os anos em que, lá pelo fim da manhã, sem horário rígido, e sem que tal sentissem como obrigação, no mínimo cinco ou seis homens iam chegando ao café e ocupavam aquelas duas mesas perto da janela de onde se observava o largo, e que o senhor Joaquim, proprietário do café, lhes reservava.

Em dias de maior frequência, quando em vez de cinco ou seis, subiam o número para sete ou oito, tinha de se juntar mais uma mesa, e até já começava a acontecer, mas só recentemente, que um ou outro dos homens vinha acompanhado pela mulher ou por um filho já espigadote.

Não que essa "intromissão" naquele grupo de homens, sobretudo de mulheres, fosse bem aceite por todos, mas as coisas são como são, a vida é como é, e esses mais resistentes, para não dizer mais reaccionários, iam fazendo a sua educação, também ali, e aceitando - tendo de aceitar…- o caminho das coisas da vida. Caminho lento e difícil, é verdade, mas inexorável, como outros lhes lembravam, também eles próprios fazendo a sua educação.

E até acontecia que os “machistas da porra”, como a brincar lhes chamavam, às tantas, por efeito do exemplo, e de alguma pressão nos “assuntos internos”, começavam, quando tal se proporcionava, a vir acompanhados pelas respectivas (e excelentíssimas) esposas.

Mas não é a história da tertúlia do Café Central aos sábados de manhã que nos traz ao contar.

Embora não fosse desinteressante fazê-lo, é uma outra história que na tertúlia encontra pretexto e raízes e que não queremos que se perca lá por não estar (ainda!) guardada em letra de forma.

domingo, 16 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 9 e último

No regresso a casa, à sala dos convívios, ainda havia alguns resistentes à espera do resultado da “conferência”. Com alguma excitação ensonada.
.
Contei-lhes (quase) tudo. Houve, logo ali, actos de contrição. Como é que se podia adivinhar, disseram uns, sempre há cada coisa, disseram outros, ao que isto chegou, pensaram todos.

No dia seguinte, o Toino foi o nosso convidado para o almoço e ficou a fazer parte do nosso grupo de amigos. Sem grandes exuberâncias.

Com naturalidade, foi adoptado por todos como já o tinha sido por mim. Passou a ter outras fontes fornecedoras de calendários e de outras coisas de que gostava, e também de livros para continuar a lembrar-se que sabe ler e de que gosta.

Lá vai fazendo pela vida. Sempre reguila. E digno.


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Como?, o Zé?
Ah... esse nunca mais foi visto depois daquela noite. Abalou, coitado! Mas é bem verdade que não o devíamos esquecer. E a nenhum Zé.

O PUTO REGUILA - 8

Fora o Zé. Tinha ido buscá-lo a casa, desafiá-lo, e tinham vindo os dois tomar a banhoca. Mas estava esquisito, o Zé, como às vezes lhe aparecia, como se tivesse tomado “coisas más”.

Apesar disso, foram tomando o banho e tudo parecia correr bem até que o Zé o instigara a irem roubar um ou dois rádios dos carros ali estacionados. Dissera-lhe mesmo que não fazia mal nenhum porque ele, Zé, ia zarpar e queria que o Toino também viesse. Era só também ele querer. E iam safar-se "à grande".

O Toino recusara firmemente. Procurara, "às boas", convencer o Zé a desistir da ideia, depois ameaçara-o de gritar, de chamar gente. Nada resultou. Tentara impedi-lo pela força, quando ele já se preparava para abrir portas e entrar nos carros fosse como fosse, nem que tivesse de partir vidros. Acabaram por se embrulhar em pancadaria.

O Toino era mais forte. Além de que gritou, berrou, e o Zé teve de fugir. Mas, na fuga, atirou-lhe a pedrada que lhe acertou de raspão.

"Então era ele que andava por aí a roubar rádios… E tu sabias?". Entre mais soluços, já espaçados, o Toino confirmou. E acrescentou que nunca participara nessas coisas, que sempre se negara.

Depois, veio o resto, despejando mesmo o saco todo. O Zé andava, lá na vila, com uns figurões a quem vendia os rádios e outras coisas que roubassem, ele e outros de outros lugares em volta. Mas isso ainda não era o pior. O pior era que esse grupo tinha ligações a Lisboa e, às vezes, até vinham uns gajos lá da capital. E juntavam-se no que ele chamava "grandes farras".

Um dia, depois de muitas insistências, o Zé convencera-o a ir com ele. Eram uns senhores todos cheios de coisinhas, bem vestidos e perfumados. Encontravam-se todos num andar que os tais senhores tinham alugado a uns emigrantes, num prédio cheio de andares vagos. Começaram por lhes dar a beber umas bebidas esquisitas, ao Zé e a ele, e via-se logo que o Zé já não parceiro habitual daquelas "festas".

Começaram a ver uns filmes com gajas e gajos todos nus, na marmelada, tudo ao molhe. Os tais senhores disseram-lhes para se porem à vontade, para se despirem e vá de os apalparem, de lhes mexerem "nas partes". O Toino desbroncou logo, dera uma murraça no mais atrevido, partira-lhe os óculos, e aproveitara a confusão para fugir porta fora.

O Zé não. Tinha ficado. Como, decerto, de outras vezes. E quando voltou à aldeia vinha, como dessas outras vezes, cheio de "massa". Chamara-lhe estúpido, dissera-lhe que aquilo não custava nada, que se ganhava dinheiro "à brava", que até entrava em filmes, que já fora a Lisboa no automóvel de um daqueles gajos e dormira em casa dele. Só queria que o Toino visse o luxo… Mas o Toino nem sequer saber queria. Com ele, aquilo não dava. E o Zé falava sempre em se pôr a mexer dali para fora. Pois que fosse. Até já devia ter ido…

Falou, falou, falou, disse o que lhe veio à cabeça. Nem tudo com nexo. Via-se bem que aquilo mexia bem dentro dele. A amizade com o Zé, o rumo que levava a vida deste. O ódio, sim, o ódio, àqueles gajos, àqueles “senhores” que se aproveitavam da fragilidade do Zé, das condições em que eles tinham crescido. E continuavam a crescer. Cada um à sua maneira.

O efeito do sedativo adormeceu-o no sofá, onde lhe aconcheguei uma manta leve e o deixei ficar. Nem valia a pena avisar os pais. Não dariam pela falta.

sábado, 15 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 7

Tinha de ser.

Era o Toino!. Aos berros, histérico, completamente fora de si. Vestido com uns calções mal remendados a fazerem de fato de banho, ainda completamente encharcado.

Felizmente, ganhei a corrida e cheguei lá antes de todos. Porque conheço os atalhos e os obstáculos, e porque acordo depressa e lúcido quanto baste. Por isso, evitei algumas reacções mais espontâneas e destemperadas.

Tive de me impor. "Qu'é isto? Justiça popular ou quê? Umas chapadas porquê?... Sabem o que se passou? Não vêem que o puto está a sangrar?".

Era verdade. Um lenho, na cabeça do Toino, junto ao couro cabeludo, sangrava. E ele berrava, histérico "g'ande cabrãozão, s'o apanho abraso-o...". E chorava, convulsivamente, e dizia mais coisas, algumas delas felizmente inaudíveis. O estado de completo descontrolo ajudou-me a acalmar os outros que consegui conservar a distância conveniente, e encaminhar todos os “figurantes” para a sala onde o convívio de meias horas antes ainda não arrefecera.

Levei o Toino para a casa de banho, não sem alguma dificuldade. Lavei-lhe a ferida, desinfectei-a. Tinha sido uma pedrada, era evidente. Mas sem grande importância. Apanhara-o de raspão.
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Dei um sedativo ao puto. Também ele se ia acalmando. Sem deixar de chorar, todo baba e ranho.

Com um braço por cima do ombro, levei-o para o meu escritório-refúgio. Era preciso que ele falasse. Que deitasse coisas cá para fora. Que esvaziasse o saco. E ele falou. Pelo meio das lágrimas e dos soluços.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 6

Assim se passaram uns dias de tréguas. Tudo calmo na calmaria do tempo. Com a ajuda de umas leves brisas que se levantaram e que fizeram com as noites tivessem ficado mais frescotas, após a mudança de lua.

Mas acontece que a lua muda muito, e a que veio depois recuperou o muito calor e os dias (e as noites!) convidativos para umas banhocas.

O que veio contribuir para que, no começo daquele fim-de-semana, a casa se tivesse enchido de amigos, com o "parque de estacionamento" e os modestos cómodos esgotados. Depois de um jantar prolongado pelo esvaziamento de uma boa dezena de garrafas do bom tinto e muita conversa e risota, tudo adormeceu sem se lembrar de qualquer eventual banhito nocturno, até porque, logo às chegadas, os corpos tinham sido castigados com mergulhos e braçadas.

Tudo dormia, na casa e anexos, sem lembrança de piscina. Mas, lá fora, tinha havido quem se lembrara da piscina. Ou houve para quem o calor foi mais forte que o sono.

E lá pelas 3 da manhã rebentou um burburinho dos diabos. Primeiro, foi o barulho lá fora, vindo da piscina. Gritaria, luta.

Depois, foram todas as pessoas da casa a acordarem, a chamarem-se uns pelos outros, a sairem dos quartos como se fosse de tocas e a aparecerem nas figuras mais cómicas… se cómica pudesse ser a situação. E de facto era!

Os pijamas e as camisas de dormir, as ausências de pijamas e de camisas de dormir, ou só de partes de pijamas e de camisas de dormir, eram adereços de uma movimentação anárquica em encenação de teatro de "vaudeville", à Feydeau.

Houve desorientação, encontrões, gritos, até todos se encaminharem em ordem dispersa e apressada, com as vestimentas ou os “fardamentos” atamancados, para o “palco” da piscina de onde vinha a origem de toda aquela bagunçada.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 5

O grande dia da inauguração da piscina chegou. Com o calor a ajudar à expectativa que transbordava da nossa casa.

Nos primeiros dias das "férias grandes" (era assim que se dizia quando eu e outros como eu andavam pelas escolas como estudantes), encheu-se a piscina com a água do poço, ainda a abundar com os restos do inverno chuvoso, puseram-se as máquinas a trabalhar, meteram-se os produtos todos, mediu-se o PH.

Foi marcado o dia da grande inauguração. Toda a gente me ajudou, mas talvez o mais entusiasmado de todos fosse o Toino.

E então não havia de o convidar para o primeiro mergulho!? Mas foi um escândalo! Pois se até piolhos vieram à baila da indignação, e houve mesmo quem já os visse a virem... à tona da água.

Tive de organizar duas cerimónias. Uma pré-inauguração, para o "proletariado", convidando quem trabalhara operariamente na construção do "monumento", e uma inauguração formal, para o "corpo diplomático" credenciado, composto pela família e os amigos mais chegados, depois de reforçado o cloro e feita uma re-avaliação dos níveis sanitários.

Na pré-inauguração participaram o empreiteiro, que era um vizinho, um seu operário, outro vizinho, e o Toino, claro, além deste que reporta os eventos. Foi mergulhar, foi brincar, foi um tempo bem passado na manhã ainda não muito quente. "Actuámos" como os "faz-tudo" antes dos números nobres do circo.

Aliás, alguma família e alguns amigos, que tinham chegado na véspera e arrumado os carros no "novo parque de estacionamento" à beira da piscina, ainda vieram observar as últimas habilidades dos protagonistas da pré-inauguração. E até foi bom ver como a alegria do Toino era contagiante e fazia esquecer momentaneamente reservas acumuladas.
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Foi assim que a piscina começou a fazer parte do nosso ambiente. Natural e social. Como novidade que era, começaram a não faltar "clientes".

Por vezes, nos momentos mais inoportunos. Como é que havia gente - e eram, sobretudo, os que vinham à terra em férias ou "vacanças" - que pedia para usar a piscina quando nela estávamos, em convívio, familiares e amigos? Como é que não viam que, assim, só pelo pedido, invadiam uma privacidade? Algumas recusas tive de dar, com dobrada irritação, pelo pedido e pela resposta a que o pedido me obrigava.

Mas o facto é que quem não tem cão caça com gato ou, transposto para esta situação, quem não piscina autorizadamente de dia, piscina clandestinamente à noite. Porque as noites estavam mesmo a pedir banho e, se não faltavam sinais, não faltavam inspectores (eu também, porque gosto de saber com quem convizinho...), e não faltava também quem descobrisse ou inventasse, nos sinais, o sinal do Toino.

O que era inegável era que, durante a noite, lá pela madrugada, havia quem saltasse o pequeno muro, se esgueirasse por entre os carros estacionados e se refrescasse com uns mergulhitos mais ou menos silenciosos para não acordar os da casa. E tinha de ser o Toino, claro..., a arcar com as culpas todas.

Um dia, chamei-o e quis explicações. Era ou não verdade que ele vinha tomar a sua banhoca pela calada da madrugada? Não negou. Falou, até, da casa apertada, da cama estreita onde dormia com um irmão mais novo e muito mexido, da irresistível atracção por um bom mergulho. Quase me zanguei. Perguntei-lhe se o fazia sozinho. Disse que não, mas quando lhe perguntei quem eram os outros, olhou para mim tão reprovador que a situação se inverteu. Ele nunca denunciaria quem o acompanhava nas suas excursões nocturnas, ou outros que soubesse que o faziam noutras ocasiões.

Recuperei o equilíbrio, voltei à “mó de cima”, e avancei com a lição de moral. Falei da confiança que tinha nele, disse-lhe que não era só o abuso mas também o perigo. Alguns dos seus companheiros podiam não saber nadar tão bem como ele. Podia até haver algum com o seu copito. Tudo aquilo podia dar num grande sarilho. Quis que ele me prometesse que não se repetiria.

Ouviu-me, atento, olhos nos olhos... e não prometeu nada. "O' sôtor, com estas noites, com este calor, a gente sem ser capaz de dormir, até era pecado... mas juro que vou ter mais cuidado. E se me apanhar, dê-me um cachação... mas lá prometer não prometo!".

Dei-lhe logo um (pequeno) cachação de adiantamento, e não fui capaz de deixar de sorrir. O puto tinha estaleca. Estava provado.

Quando me perguntaram pelos resultados da conversa, se ele confirmara as suas inaceitáveis invasões do nosso território aquático, respondi com evasivas. Evasivas que o Toino não merecia... Para arrumar a questão disse também que "estava tudo sob controlo"… sob o controlo dele, Toino, claro (o que eu não disse, como é dispensável acrescentar).

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 4

O Toino andaria pelos treze/quatorze anos (sabia lá ele…), o seu corpo parecia precocemente formado e calejado, a voz rouquejava, era o adulto em idade de criança, o homem que não tivera a infância que ainda estava em idade de viver. Lembrava‑me os Esteiros, do Soeiro Pereira Gomes, e o Gineto. Falei‑lhe do livro, fui buscá‑lo à estante porque é dos que estão sempre à mão, sugeri que o lesse. Não se fez rogado, disse que até gostava de ler e acrescentou, com convicção, que não queria esquecer-se de ler. Achei piada à observação.

Assim se entretecia uma amizade que me dava alguma satisfação, em encontros de fim-de-semana, de quinze em quinze dias, três em três semanas, que, além do mais, me ajudavam a pensar que não perdia o pé, que mantinha contacto com realidades fundas da sociedade portuguesa. Pelo que mais me irritava o olhar de través com que familiares e amigos avaliavam o meu relacionamento amigável com o Toino, as crescentes reservas ao comportamento do puto, os avisos e os conselhos que me davam repetidamente. Que não lhe desse confiança...

Até o responsabilizavam, sem quaisquer provas, pelo desaparecimento de rádios de carros na vizinhança, que tinha sido mais uma desgraçada imitação do que acontecia pelas cidades.

E como tinha havido esses e outros roubos onde nunca tal acontecera antes, sem se ter descoberto o ladrão, tinha de ser o Toino.

Ele fazia de conta que não ligava, mas eu sabia que não lhe era indiferente toda aquela má fama. Reagia à sua maneira, com tendência para se fechar e isolar. Mais de uma vez tive de o convencer que não desconfiava dele, que "não me incomodava nada", que podia vir sempre que quisesse, que não se preocupasse com más caras e "maus olhados" e, também, que ele não devia responder na mesma moeda.

O certo é que bem me aconselhavam. Eu não queria era crer, teimoso como sou e como diz e me avisa quem meu amigo é...

Quando se aproximou o verão, as “vindas à terra” passaram a ser mais frequentes, e todas as coisas começaram a tomar um outro aspecto, como é próprio das mudanças de estação.

Resolvera investir umas poupanças na construção de uma piscina. Não era bem o mesmo que enterrar o antigo tanque da velha propriedade, do quintal, como eu gostava de dizer desvalorizando a iniciativa.
E a novidade despertava curiosidade. Era natural, não havia outra piscina uns bons quilómetros em redor.

O dito verão aproximou‑se quente. O que veio aumentar a expectativa e o interesse pela piscina. O Toino tinha acompanhado a construção da estrutura de betão, o revestimento a pequenos azulejos. Tinha sido contratado pelo empreiteiro para dar serventia, e várias vezes o vi em funções, questionando-me e questionando eu sobre trabalho infantil. Sem êxito. Até porque o próprio Toino dizia que precisava de trabalhar ("p'ra mim e p'rós meus irmãos mais novos"), afirmava que estava a fazer aquele trabalho de vontade, e também com muito gosto... por ser para mim.

O Zé aparecia umas tardes por outras, mesmo já no fim dos dias, não para dar qualquer ajuda mas para levar com ele o Toino, e vislumbrava neste alguma tensão, algum constrangimento, tão fora do seu comportamento habitual.

O PUTO REGUILA - 3

Bem educadinho, diziam os outros, era o Zé. Esse sim, desbarretava‑se mesmo sem barrete. Falava às pessoas com respeito ou subserviência (isto da subserviência dizia eu…).

E o Zé não só cumprimentava como pedia ”por favor” e nada fazia sem ser “com licença”. Além de que estava sempre disponível para o que se lhe pedisse, para as pequenas atenções de que as pessoas - algumas...- gostam.

Para mais, o Zé não se permitia as intimidades de que o Toino abusaria comigo. Aquilo de me esperar logo à chegada do carro, a perguntar se trazia calendários, ou de entrar pelo meu escritório ‑ mais refúgio que escritório – pela porta do quintal para conversar comigo... como se houvesse conversas a ter com tal rapazola (pensavam eles… talvez mais elas).

Eu procurava explicar que não era abuso nenhum. Que era tudo combinado entre nós, entre o Toino e eu, e também que nunca houvera ocasião para acontecer o mesmo com o Zé. Que tinha mais confiança em quem é como é, sem máscaras e com ramelas nos olhos, do que em quem é todo mesuras, rapa‑pés, muito "sim, minha senhora", "com licença, senhor doutor", muita disponibilidade nas palavras e pouca nas acções não aparentes.

Mas também não queria ser injusto com o Zé como forma ínvia de compensar o que considerava injustiça relativamente ao Toino. E não podia negar que o Zé tinha outro aspecto, sempre muito alinhadinho, a roupinha em condições, penteado, todo bem falante, parecendo de outra condição social que não a dele e do Toino.

Um dia, quando dei ao Toino um calendário que trouxera de Cuba, e me preparava para lhe dizer umas coisas sobre a minha mais recente viagem, o Zé veio à baila. Nem sei porquê, mas não foi assim tão estranho porque os dois continuavam, aparentemente, a ser unha com carne.

Tínhamos estado a conversar sobre biscates, e perguntei ao Toino se o Zé também os fazia, uma vez que também ele não continuara a estudar e até, ao que disse uma das senhoras professoras, só conseguira acabar a quarta classe porque o Toino muito o ajudara.

Essa professora até me disse que tinha quase a certeza que muitos dos trabalhos de casa e outras obrigações que o Zé cumprira tinham sido obra do seu amigo.

A minha pergunta sobre como ia a vida do Zé fez descer uma sombra no olhar do Toino. Tossicou como fazia quando a conversa não lhe agradava, resmungou entre dentes umas frases inaudíveis. Insisti, contra regras da nossa convivência: "Ele também faz biscates como tu, também ajuda nas obras?". O Toino respondeu‑me, com alguma estranha secura: "Não... trabalho nas obras não é com ele... lá se amanha... tem a vida dele, e eu não quero saber. Se calhar, não vai estar por cá muito tempo... Vai abalar. Deixá‑lo!".

Foi como se tivesse colocado um abrupto ponto final na minha curiosidade. Pensei que fosse uma espécie de ciúme, ou um certo mal-estar por aquela preferência que quase toda a gente tinha pelo Zé, com o seu bom aspecto, com o seu ar lavadinho, penteadinho, a roçar o servil (isto pensei eu, mas não o disse, e muito o menos o diria ao Toino). Até porque eles continuavam muito amigos, sempre juntos. Pelo menos era o que parecia.

Mudámos de assunto. Mais calendários, algumas futilidades para encher conversas, duas palavritas sobre Cuba e outras maneiras de viver em sociedade, e só não bebemos o copito que cimenta as amizades porque não quis facilitar. Embora soubesse, pelo que se dizia, que o Toino não se negava a fazer sociedade com os grandes, entendi que não devia copiar os maus exemplos de alguns adultos que têm gozo em ver os miudos macaquearem comportamentos que nem nos adultos são aceitáveis.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 2

O que não foi possível foi que o Toino continuasse a estudar. Nem sequer ao menos os anos que os governos iam decretando como escolaridade mínima obrigatória. Podiam lá os pais mandá‑lo todos os dias para a vila, fazer o 5° e o 6°, o ciclo, e o que viesse mais se disso se lembrassem os políticos...

Não era só a questão dos transportes, porque isso a "sôra câmara" tinha a obrigação de assegurar, e parece que lá o ia fazendo a buscar e levar os miúdos ao redor da vila. Era, sobretudo, o facto daquela boca a sustentar ter de ser ela própria a contribuir para que sustentada fosse.

Foi fácil ver de que o Toino ficou mesmo com pena. Não que ele o tivesse mostrado ou confessado, claro. Que ele não era desses de se lamentar, de andar com queixinhas.

Mas, quem o olhasse com olhos de gente que vê os outros, descobriria sem dificuldade que o puto engolira mais um sofrimento na sua vida que parecia ter mascido para isso.

Não fugi a perguntar‑lhe. De forma indirecta, do género "tu gostas de aprender coisas, não gostas?", "então... lá se acabou a escola... e agora como é?".

Respondeu‑me ‑ é como quem diz...‑ com um sorriso triste e um encolher de ombros. Via‑se mesmo que não era assunto sobre que quisesse conversar.

Fiquei também triste. Triste por não ter uma mina de ouro no fundo do quintal, ou umas confortáveis contas a prazo a renderem juros minorcas que melhor serviriam para ajudar o Toino. Triste por ver aquele puto ficar pelo caminho, ou, para se ser mais preciso, brutalmente afastado do caminho que, para outros - os meninos… -, era atapetado de facilidades.

Sobre esse assunto não conversámos porque não havia grandes coisas para conversar. Na opinião dele, claro.

Mas sobre outras coisas lá iamos tendo as nossas conversas. Ele contava‑me dos biscates que ia arranjando, uma serventia de pedreiro aqui, uns recados acolá, umas ajudas no café/tasca nos dias de maior aperto. Fazia pela vida dele. E, se calhar, ainda sobrava alguma coisa para ajudar à vida dos pais e do rancho de irmãos e irmãs.

Em contrapartida, eu contava‑lhe coisas da minha vida. Das viagens, de terras e gentes que ele nem sonhava antes de eu lhe contar que existiam, assim, reais, onde se ia e onde se vivia. Apesar da escola, do bom trabalho das professoras, dos mapas-mundi nas paredes húmidas da escola.

Um dia, mostrei‑lhe um calendário, daqueles pequenos, tipo auto‑colante, que me fora enviado pelos serviços de turismo de um qualquer país longínquo. O Toino ficou entusiasmado. Sem que ele mo pedisse, porque não era do género de pedir coisas, dei‑lho. Os olhos riram‑se‑lhe, meteu‑o dentro da camisa e abalou com um obrigado em surdina mas bem lá de dentro dele.

Assim se criou uma espécie de costume. Ele começou a fazer colecção de calendários com motivos vários, e eu passei a ser o seu fornecedor.

Nalguns casos, acompanhado o fornecimento por pequenas conversas sobre os motivos escolhidos para nos informarem, ou influenciarem, no verso, a pretexto de, no reverso, nos fazerem a oferta de um pequeno rectângulo de cartolina com a organização dos dias do ano que está para chegar ou que começou há pouco.

Vá lá saber‑se ao certo porquê, aquela amizade incomodava os meus próximos. Mesmo os mais tolerantes, os que poderiam, pensava eu, melhor entender o Toino.

Mas não. Que o miúdo tinha mau aspecto, apesar de ser naturalmente forte e escorreito, apesar da sua, porque não dizê-lo?, beleza. Que a roupa nunca estava asseada, até nem cheirava lá muito bem…, que o cabelo parecia que nunca vira pente e champô não conhecia. Que não era de confiar nele, que eu ouvisse o que corria sobre as suas façanhas pela aldeia e arredores. Que, sobretudo, era malcriado.

Dar as salvações dava, não se podia dizer que não desse os bons dias e as boas tardes, mas era com umas maneiras entre o sobranceiro e o tímido (isto do tímido dizia eu…, seu oficioso advogado de defesa). Achavam-no pouco... polido. Lá isso não era. Como acontece com os diamantes em bruto.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - duas notas e episódio 1

1. Pequena nota prévia e dedicatória:
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Esta estória está pelas "gavetas" há perto de 20 anos. Saindo delas de vez em quando, levando uns "retoques" e regressando ao seu poiso. Agora vem para as ficções do cordel, com uma dedicatória: ao Pedro Namora, pela sua luta que é de todos nós.
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2. Advertência habitual:

Não há, nem nunca houve, o Toino. Como não há, nem nunca houve, o Zé. Houve, e há, quem tenha servido, com o conhecimento das suas vidas, para que estes Toino e Zé existam nesta estória.
Os amigos, esses há, sempre houve, e – espero – continuará a haver! Uns vão, outros voltam, uns deixam de ser amigos, outros aparecem e ficam.
É a vida. Que se pode contar. Assim. Aos bocadinhos.
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O PUTO REGUILA

Gostava do puto.

Por mais que dele me dissessem cobras e lagartos, que me pintassem suas travessuras com cores de barbaridades, gramava o puto, pronto.

Estar tanta gente contra ele, e com tão evidente má vontade, talvez até fizesse com que eu gostasse mais do puto, do Toino.

É verdade que, às vezes, ele parecia querer dar razão a quem o tinha "de ponta", como se costuma dizer.

Era arisco, rabiteso (ora aqui está um adjectivo que se ajustava ao seu comportamento e até esteve para ir para o título deste contar), reguila. Era isto: reguila.

Ninguém "fazia farinha" com ele.

Na escola, as professoras tinham‑se visto aflitas com o Toino.

Irrequieto, indisciplinado, sempre a perturbar as aulas, com graças e brincadeiras nem sempre a propósito, capaz de liderar movimentos de contestação se lhe subia a mostarda ao nariz.

Uma "peste".

Mas o Toino fez a "quarta classe" nos quatro anos considerados necessários e suficientes. Sem qualquer favor, apesar de algumas pessoas mais contra ele acharem que o que as professoras tinham querido era ver‑se livres da "peste". Mas eram mesmo estas que lhe reconheciam grande esperteza. Mais: inteligência, curiosidade e capacidade de apre(e)nder rapidamente.

E não só isso.

As professoras também lhe reconheciam, quando repousadas ou esquecidas das tensões e chatices que ele prodigamente lhes provocava, que o Toino era, por vezes, de uma ternura e de uma meiguice fundas embora fugazes, reveladoras de grandes carências afectivas

Era, também e sobretudo, de uma lhaneza e lealdade que parecia tão natural nele como respirar.

Isto pensavam, e às vezes diziam, as professoras.

Contavam até casos em que o Toino, com sacrifício pessoal tão espontâneo que era difícil de nele reparar, ajudara ou apoiara outros colegas, sobretudo o Zé, seu vizinho casa com casa, companheiro e cúmplice, o seu "quase irmão" como ele um dia dissera. O Toino!, que já tinha tantos irmãos que se lhe perdia a conta ou o conto, porque era um daqueles falsos filhos só únicos por tantos serem os irmãos que os pais lhe tinham "oferecido".

Até desconfiavam, as senhoras professoras, que algumas das coisas de que o acusavam, e que tanto contribuíam para a má fama do Toino, não eram da sua responsabilidade mas culpa todinha do Zé.

O Toino não se importava, ao que parecia. Queria lá saber, dizia ele. Ou dava‑o a entender. As suas costas eram muito largas e as do Zé, franzinote, pareciam e eram bem mais estreitas.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Para a contracapa (e em complemento à diferença entre amor e cretcheu)

Quando tanto se quer dizer numa palavra,
essa palavra, aparentemente riquíssima,
mostra a pobreza dos conceitos-sinais
que traduzem sentires;
as palavras são pobres
quando tudo pretendem dizer,
porque a complexidade
dos sentires e dos afectos
não podem caber
numa mesma e única palavra.




Extracto do “diário de sentires e afectos”
de um anónimo do século xxi

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 20 e último

Eles em (re)encontro
ou epílogo… talvez definitivo
(se é que os há!)

Ao vê-lo, com aquele ar de gozo com que costumava embirrar, secaram-se-lhe as lágrimas de tristeza e de raiva, mas logo outras rebentaram. De espanto e de alegria.

Lágrimas que ele saboreou, sabendo-lhe a sal.

E a aquele amor. Que era único. Só deles.
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Mais não se conta!
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As histórias de amor têm de ter um final feliz (têm, se não terminam em desamor...), e esta história de um amor, daquele amor, mereceria tê-lo.

E feliz foi o final deste contar, porque de amor foi a história contada.

O certo é que, sem juras, sem palavras, entre lágrimas e risos, se prometeram que nunca mais, mas nunca mais!, iriam pensar em fazer surpresas um ao outro.

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 19

Ela, em Bruxelas,
as lágrimas, a solidariedade mal recebida,
…nunca mais!


Uma mulher chorando na Gare Central de Bruxelas. Suscitando preocupação e solidariedade de alguns passantes. Coisa tida por rara e pouco vista entre os habitantes de Bruxelas…

Recebeu com mau modo esses gestos, ou de maneira não correspondente à simpatia algo inesperada, mais parecendo ser ela a “bruxelloise”.

Correu para a rua e entrou para o primeiro táxi, ultrapassando filas de espera e dando mostras de alguma falta de civismo.

Mas tudo é consentido a uma mulher em lágrimas. “Deve estar aflita… coitada”, pensaram os ultrapassados.

Para mais, pelo ar e cor de pele, devia ser estrangeira. Embora com uma elegância no vestir e no porte que não lhe dava ar de emigrante, dos que andam à procura de trabalho ou que são… os “outros”.

Como é evidente, e dispensável seria dizer, não conversou com o motorista de táxi. Nem sobre o clima! Apenas lhe deu a morada do apartamento, onde se queria refugiar e chorar sozinha o resto de lágrimas que tinha para chorar.

Que raio de belo fim-de-semana que iria ter. Mas “era bem feito!”, pensou, antes de meter a chave à porta.

É o que dá a mania das surpresas ... Nunca mais, nunca mais!

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 18

Ela,
na chegada a Bruxelas,
a angústia, o susto, o desespero


Mais perto de Bruxelas, aumentou a preocupação.

O atraso parecia que se tinha alargado, e ela começou a fazer contas. O seu horário estava apertado, mais que apertado, estrangulado.

Quando chegou à Gare Central, estava assustada. Não podia ser!

O seu malfadado hábito de não olhar para o relógio e de confiar… Mas, também, de que adiantaria ter sabido mais cedo que o comboio se estava a atrasar? Não seria isso que o teria feito andar mais depressa e recuperar o atraso que, pelo contrário, se alargara ao aproximar-se de Bruxelas.

Na Gare Central, teve o bom senso de não saltar para o primeiro comboio para Zaventem. Foi informar-se. O atraso tinha sido mesmo muito significativo, e não havia transporte para o aeroporto que a levasse a chegar a tempo de apanhar o avião para Lisboa. Que, aliás, já devia estar a partir.

Ainda telefonou na esperança de que os atrasos fossem contagiantes. De comboio para avião…

Mas não. O avião estava mesmo a partir. À tabela!

Ficou desesperada. O minucioso programa todo estoirado. E ele, lá, “na terra”... ou a caminho. Tanto lhe fazia...

As lágrimas, de desgosto, de raiva, de impotência, começaram a cair-lhe pela cara.

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 17

Ela,
a caminho de Bruxelas,
começando a preocupar-se


Que fim-de-semana iriam ter “na casinha lá da terra”!,
pensava ela no comboio, no meio da sua sonolência (também efeito dos tais comprimidozitos… para ajudar a passar o tempo).

Já perto de Bruxelas, começou a preocupar-se.

Apercebeu-se que o comboio estava a atrasar-se. Contra o que é costume por aquelas paragens e serviços. Não estava, pelo menos, a cumprir o horário ao minuto. Ao que lhe pareceu (e mal traduziu de informações em neerlandês... que em francês não ouvira), nem às fracções de hora.


Ele,
em Bruxelas,
na tranquila
e sonhada (mas bem acordada) espera


Que fim-de-semana iriam ter na Bélgica!,
pensava (ou sonhava) ele, no apartamento de Bruxelas.

Reconfortado com croissant no "café" da esquina. Repousado e recuperado da estafante viagem. Que não deixara marcas, tudo esquecido na excitação da espera. Da espera que ela chegasse.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 16

Ela,
ainda em repouso no seu labirinto
em cima de rails
.
Recuperada da sonolência, ela resolveu que não valeria muito a pena insistir em pensar e repensar nos pormenores do plano.

Deixou que a sonolência continuasse (pouca terra-pouca terra-pouca terra).



Ele,
em descanso,
recuperando de tantos quilómetros
e canseiras
.
Ele também.

Ele também chegara à fase de deixar que as coisas corressem. Não queria pensar em pormenores…

.
(Tal qual como quem está a contar… o chamado narrador.

Que apenas quer – cá por coisas… - sublinhar o pormenor de que ela iria passar em Bruxelas, entre a Gare Central e o aeroporto de Zaventem, a caminho de Lisboa, quando ele estaria a acordar, fresco e animado, excitado pela surpresa que ela iria ter quando entrasse no apartamento… se entrasse - isto digo eu que narrador sou!)

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 15

Ela,
em intervalo de Roterdão
e comboios de ida-e-volta


Ela, já no dia seguinte, feita a viagem de comboio, em Roterdão, embrenhou-se no trabalho, que não lhe deu folgas para pensar no seu programa, ou para se colocar dúvidas, ou, até, para sentir a necessidade de lhe telefonar, o que resolvera não fazer para evitar passos ou palavras em falso.

No comboio de regresso dormitou e começou por folhear umas revistas. Tudo corria como planeara. Mais uma vez.

Nem valia a pena tentar telefonar, quando chegasse a Bruxelas, ou do aeroporto, abrindo uma brecha nas decisões, porque, pensou ela, lá “na terra”, na velha casa da aldeia onde ele devia estar a chegar, não tinham ainda telefone.

E tomou consciência de que estava já a baralhar tudo, porque o que ela queria era chegar a Lisboa, e a casa, antes dele partir para “a terra”. Devia ser da sonolência que dá o comboio, (e aqueles comprimidozitos…) e a confusão que resulta da excitação.


Ele,
galgando quilómetros,
para chegar depressa a Bruxelas


A viagem dele, mãos grudadas ao volante e olhos presos na estrada, decorreu nesse estado de espírito – e de corpo… – como se não houvesse cansaço, como se tudo pudesse ser adiado, esperar. Num tunel intemporal.

Ia ocupando o espírito – e o corpo… – com cálculos e mais cálculos. Sobre quilómetros percorridos, quilómetros que faltavam, tempo gasto, tempo que ainda seria necessário, médias à hora, de consumos de combustível, médias cem quilómetros que se iam somando. Sobre gastos em escudos, pesetas, francos franceses e francos belgas. Câmbios. Contas de cabeça…

E música, muita música. Nalguns casos, conversando com quem cantava ou dirigia as orquestras. Boa gente e melhor companhia...

Atravessou Paris a má hora. Engarrafamentos nos periféricos. Mas haveria boas horas para atravessar Paris? Perdeu algum tempo. Ao sair daquela prova de perícia, refez cálculos, e confirmou que tinha previsto tudo com margens confortáveis.
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21 horas de condução normal, mais de uma horita a periferar Paris, 2 horas e meia/3 horas para paragens para estender as pernas, abastecimentos de combustível para o carro e para ele, e satisfação de outras necessidades imperiosas, 1 hora de diferença horária. No total, 26 horas depois de sair de Lisboa.

Por isso, entrou em Bruxelas, e no apartamento, já na madrugada de sexta-feira, com o sol muito muito longe de se levantar. Envergonhado, como quase sempre para aquelas bandas.

Com muito tempo para tomar um bom duche, descontrair, deitar-se e dormir umas boas horas antes de acordar para a espera da chegada de "ela".

domingo, 2 de setembro de 2007

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 14

Ele,
em viagem a partir de Lisboa


Ele, nem pensou em jantar.

Enquanto - pensava ele…- ela dormia no apartamento de Bruxelas. E era verdade. Embora um sono algo inquieto, agitado.

Se sentisse necessidade, comeria qualquer coisa numa estação de serviço.

Mas também se não comesse nada, não seria daí que viria mal ao seu corpo, habituado a certos excessos e malfeitorias com que ele, de vez em quando, o castigava.

Meteu alguma roupa e os artigos mínimos de higiene num saco, no saco com que saíra de casa na véspera como se fosse para o aeroporto, escolheu um conjunto de CDs para companheiros de viagem, daqueles que já tinham feito com ele umas viagens parecidas com aquela. Parecidas mas bem diferentes…

Um Aznavour, o Brel (claro!, e com la chanson des vieux amants, claro!), o Moustaki (que ele achava um bom companheiro de viagem), dois ou três portugueses, três ou quatro clássicos, com o Mozart e o Mahler como imprescindíveis.

Ah!, também o Patxi Andion (com o veinte anos de estar juntos…) mas esse seria para ouvirem os dois, já em Bruxelas!

Tudo pronto, sentiu a satisfação de ter conseguido antecipar de mais de meia hora o horário marcado para a partida. Era bom, prevendo e prevenindo algum eventual contratempo.

E arrancou.

Num estado de espírito – e de corpo… – misto de atleta que inicia uma prova desportiva de fundo, totalmente concentrado, e de alguém que se desligou da realidade e entrou num sonho que vai concretizar.

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 13

Em Bruxelas,
ela,
em trânsito e enredando-se


Ela, em Bruxelas, dormiu pouco e fez madrugada para resolver tudo.

Pelo telefone, com uma rápida ida ao aeroporto, com partida de e com regresso à Gare Central, antes de se meter no comboio para Roterdão, com o risco de chegar a Roterdão com um pequeno atraso.

Teria de dormir num hotel em Roterdão, depois do jantar a que não poderia faltar. Voltaria, também de comboio, no começo do dia de sexta-feira, e iria directamente para o aeroporto. Apanharia o avião para Lisboa, no meio da manhã, e chegaria pela hora de almoço, com o bónus da hora a menos da diferença horária.

Assim, estaria em casa no começo da tarde, à espera dele, que viria dos trabalhos em que andava, para ir buscar o computador e alguma roupa e arrancar para “a terra”, onde, segundo dissera, resolvera ir carpir a solidão naquele fim-de-semana completamente frustrado e que só ali seria suportável.

Isto foi o que ele lhe dissera, ao telefone, com insistência, antes de terem de desligar, de se desligarem do telefone.

O que tinham feito com dificuldade, mas com alguma pressa. Tanta que nenhum detectara a mal escondida pressa do outro, a partir de certa altura da conversa.

O caso, ou os casos…, é que assim começaram a acontecer as coisas.

sábado, 1 de setembro de 2007

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 12

Recomeço, reincidência,
ou, em Bruxelas,
a teia


Ela, ainda nessa noite, melhor se diria ainda com o telefone quente, telefonou para o aeroporto de Bruxelas, para a Sabena, para a TAP, para os caminhos-de-ferro.

Embora não pudesse resolver nada em definitivo, foi colhendo dados, informações. Partindo do pressuposto que ele iria antecipar a passagem do fim de semana à "terra" (como ele dissera ao telefone, com um voz de desterrado).

Os horários e as marcações diziam-lhe que era possível. Por ironia, valia-lhe o cartão de passageiro frequente... dele & companhia.
Assim se foi deitar. O que é bem diferente de escrever que foi dormir...



Recomeço, reincidência,
ou, em Lisboa,
a conspiração


Ele, mal desligou o telefone, arrancou logo para o computador, abriu uma folha de cálculo Lótus 123, e começou a fazer contas, apoiado em viagens que fizera antes.

Confirmou tudo.

Cerca de 2.200 quilómetros, muitos por auto-estrada. Mas com o parenteses da IP5, e nem em toda a Espanha, embora em cada viagem maior fosse o troço de autopistas espanholas em que podia rolar em velocidades apreciáveis, velocidades de auto-estrada.

À volta de 20 horas de condução, sem paragens à média de 110 à hora, o que não era nada mau contando com algum trânsito e ter de atravessar Paris!

Em resumo, contas feitas, se partisse dali a pouco tempo, lá para a meia-noite, com as paragens para comer qualquer coisa e para meter combustível, com os possíveis engarrafamentos, podia chegar a Bruxelas na noite/madrugada de sexta-feira, apesar de mais uma hora de diferença horária.

Bem antes de ela regressar de Roterdão e de voltar ao apartamento, de onde iria partir, na tarde de sexta-feira ou na manhã de sábado, para um fim-de-semana belga não como desejado pelos dois. Sozinha.

Como lhe aconselhara ao telefone, talvez com uma ida a Bruges para que o domingo chegasse mais depressa. Teria ela ouvido o conselho, já a magicar outros planos?

Contando um (re)encontro neste amor que se conta - 11

Recomeço, reincidência,
ou, em Bruxelas,
a “estratégia da aranha”

Isso foi o que se disseram!

No entanto, no entanto, enquanto ela o dizia, enquanto jurava entre risos e choros comovidos que nunca mais!, a sua cabecinha já estava a engendrar uns esquemas para a levarem a Lisboa (ou lá perto...) o mais depressa possível.


Recomeço, reincidência,
ou, em Lisboa,
a “estratégia da aranha”

Isso foi o que se disseram!

No entanto, no entanto, enquanto ele o dizia, enquanto jurava entre sorrisos e piadas para disfarçar a emoção que nunca mais!, a sua cabeça já estava a pensar, em grande velocidade, se seria possível chegar a Bruxelas antes dela regressar.


Recomeço, reincidência,
ou começar (tudo) de novo?
(cá e lá... ou... lá e cá)


Desligaram. Tinham mesmo de desligar! E em quantos escudos já iria a continha calada (ou bem conversada...)!

Mas também porque estavam com pressa para irem fazer outras coisas.

Pensar nuns planos, confirmar ou rectificar uns horários, pôr uma estratégia em marcha…