faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 28 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 14

A memória. É só o que de muitos que nós fomos e somos resta naqueles que por cá ainda andam. E também custa pensar que nem todos estamos certos de ter filhos e netos que nos lembrem nas histórias por nós ante(s)passadas.
Por mim, sinto necessidade de contar algumas dessas estórias.
Para que alguns restos de vida daqueles a quem devo o que sou, a quem tanto devo do que sou, que me fizeram o que vou sendo, não venham a acabar quando já não estiver para as contar.

Não conheci o meu avô paterno. Sei que se chamava António, que viera do Outeiro (julgo que do Grande), que tinha um apelido – Senteeiro – que até apela a pesquisa da árvore genealógica lá para os lados de Torres Novas.
Morreu no começo do século (do xx!). Fotos dele nunca conheci mas guardo uma muito velhinha onde se pode ver o meu pai com um fumo no braço ainda do luto deitado por sua morte.
O meu pai contou-me algumas coisas, poucas, do meu avô, do pai dele.
Recordo-me de uma.
Estava ele à porta de casa da “casa de entrada”, que então a vida era voltada para a estrada, hoje rua e então mais caminho que estrada. Só passavam carroças puxadas por burricos e carros de bois. E gente. Gente que ia e vinha das labutas de sol-a-sol nos campos.
O meu avô António gozava o fim do dia, que o sol põe-se para aquele lado. Já tinham tocado as Avé-Marias e passava uma vizinha, que vinha da fazenda, talvez das “terras frias” ou das “soutarias”, carregada com uma cesta de figos.
“Boa tarde, ti’Antoino…”.
“Olá, Maria. Atão vens da fazenda? Foste aos figos?”
“Fui sim, ti’Antoino… quer deles?”
“Vinham a calhar…”
A Maria colocou a cesta no chão, ao alcance do meu avô, e ele começou a comê-los.
Até que a vizinha observou:
“Ó ti’Antoino… escolha, não os coma a eito… tire os mais graúdos que o resto vai para o gado…”
O meu avô sorriu:
“Nã te preocupes, Maria… tenho tenção de os comer todos…”

segunda-feira, 24 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 13

Todas as famílias, mesmo as pequeninas e pobrezinhas (mais p’ró pequeno-burguesinhas), como aquela em que nasci e cresci, têm variedade. Mesmo que a família seja apenas de dois membros (é o número mínimo!...) são dois e são, por isso, diferentes. Mesmo que o não queiram, e muito mau é que não o queiram!
Na “minha”, quando faço a retrospectiva em que às vezes encalho, tenho "pano para mangas", ou para muitas histórias ante(s)passadas. Embora as ficcione, estou certo que, sem alguma vez querer manchar a memória de alguém, com certeza que os “inspiradores” das estórias não gostariam dos “retratos”. Por mais que eu lhes dissesse (oh, como gostaria de lhes dizer!) que não são retratos. Que são ficções… e do cordel.
Mas o facto é que todos queremos que nos tirem retratos, todos fazemos pose, posamos, ou pousamos, ou poisamos e, depois, todos dizemos que não ficámos bem na fotografia. Nunca ficamos!

A minha tia Ermelinda, que casou no mesmo dia que os meus pais, teve uma vida contraditória. Aparentemente muito calma, de rotinas, à sua imagem cheia de bonomia e bondade, mas decerto muito agitada por dentro.
O marido e, depois, o filho não ajudaram nada a que fosse tranquila a vida, como tranquila ela sempre se manteve, atravessando as procelas e os desertos, a paralisia infantil que a deixou a coxear, o cancro que a levava a ter de fazer quimioterapia (quantas vezes a levei aos tratamentos…), sempre com o mesmo ar de quem segue o seu caminho esteja ele como estiver, tenha os obstáculos que tiver. Sem um queixume. É assim? Pois assim seja!
Nesta foto, que estava ao pé de uma outra antes publicada, e também é da Trafaria, tem o Zé Luís ao colo. O Zé Luís tinha mais um ano e uns meses que eu, pelo que esta foto foi, com certeza, tirada nas férias anteriores à outra. Mas estavam juntas, nas gavetas por onde se perdem.
Gosto de rever estas fotografias. Os toldos da praia, a mãe com o filho ao colo, toda vestida. Ia lá pôr fato de banho uma senhora com o marido na Penitenciária… Aliás, não me lembro de alguma vez ter visto, por essas alturas, a minha mãe em fato de banho. E não tinha o marido em “férias forçadas”, mas ele também não trocava as calças por calções. Só, e vá lá vá lá…, se punha em mangas de camisa e tirava a gravata.
E era gente na casa dos 30 anos, a minha mãe nem isso, com o meu pai com algum avanço, um senhor “de idade” quase ou já entrado nos quarenta!

domingo, 23 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - hors-serie

As histórias ante(s)passadas não são apenas de antepassados. Ou de da família que família é por laços de sangue, óvulo, esperma, genes.
Por ponto de partida, motivação, também têm, ou podem ter, a amizade. Sobretudo se for de amizade que fraterna se possa dizer. Porque o que se viveu o merece. E assim se sente.

A MLÓ (Maria de Lurdes Oliveira) parece que sempre foi nossa amiga! Conhecemo-la há só (!) para aí mais de 50 anos, na Casa de Ourém, onde foi levada por uma amiga que era ali do Alqueidão, colegas no curso da escola comercial, que tinham completado.
(A MLÓ, com os meus filhos e comigo, num dos últimos aniversários da minha mãe
… 95 ou 96… mas porque será que estou deixando de ligar a aniversáriso?!)
Lembro-me dela, atrevida e tímida, provocadora na linguagem e recatada nos comportamentos. Fez, quase de imediato, muitas amizades. E suscitou alguns olhares de través.
Os meus pais adoptaram-na (ou teria sido ela que os adoptou?). Vivia com a mãe, uma senhora que “criada” fora na casa de uns ricaços alentejanos, onde aquela filha “lhe foi feita”… e, depois, as duas que “se amanhassem”. Trabalhava nos escritórios de uma tipografia, e rapidamente se percebia que era uma excelente profissional.
Entre nós, foi-se cimentando uma grande amizade. Daquelas que os filhos únicos entretecem. Quando me casei – em 1961 – convidei-a, com toda a naturalidade, para madrinha, o que pareceu estranho a algumas pessoas. Do casamento – e da MLÓ – guardo a lembrança de um comportamento que escandalizou muita gente, mas que eu compreendi quando soube que, no “copo de água”, onde ela estava tinham vindo à conversa falas e ditos sobre o homem que, ali, só ela sabia ser o seu pai. Bebeu mais do que devia, e água não foi…
Depois, escolhi-a, com toda a naturalidade, para madrinha de um e madrinha dos dois ficou, sempre com uma amizade e uma cumplicidade (com eles!) que sempre foi… natural.
Namoriscou, mas nunca encontrou quem… talvez porque não procurasse encontrar, reformou-se, “enviuvou” da mãe e do meu pai, que como filha a considerava, tornou-se a companhia da minha mãe. Como se filha fosse. Logo, como irmã a olhava e olho. Muito me ajudou! Naturalmente…
Pois, ontem, pelo telefone, à sua maneira, disse-me estar zangada comigo, porque me esqueci do aniversário dela, a 19 de Março. Fez, se me não engano, 76 anos.
Tem razão! O aniversário de uma irmã não se pode esquecer… se ela a isso dá importância.
Estou triste. Comigo. E escrevo esta estória do ante(s)passado, dedicada à MLÓ. Apenas para mim. Até porque sei que ela não viaja por estas “coisas”.

Histórias ante(s)passadas - hors-serie

As histórias ante(s)passadas não são apenas de antepassados. Ou de da família que família é por laços de sangue, óvulo, esperma, genes.
Como ponto de partida, motivação, também têm, ou podem ter, a amizade. Sobretudo se for de amizade que fraterna se possa dizer. Porque o que se viveu o merece. E assim se sente.

A MLÓ (Maria de Lurdes Oliveira) parece que sempre foi nossa amiga! Conhecemo-la há só (!) para aí mais de 50 anos, na Casa de Ourém, onde foi levada por uma amiga que era ali do Alqueidão (a Helena Nunes), colegas no curso da escola comercial, que tinham completado.
(A MLÓ, com os meus filhos e comigo,
num dos últimos aniversários da minha mãe
… 95 ou 96?… mas porque será que estou deixando de ligar a aniversários?!)
-
Lembro-me dela, atrevida e tímida, provocadora na linguagem e recatada nos comportamentos. Fez, quase de imediato, muitas amizades. E suscitou alguns olhares de través.
Os meus pais adoptaram-na (ou teria sido ela que os adoptou?). Vivia com a mãe, uma senhora que “criada” fora na casa de uns ricaços alentejanos, onde aquela filha “lhe foi feita”… e, depois, as duas que “se amanhassem”. Trabalhava nos escritórios de uma tipografia, e rapidamente se percebia que era uma excelente profissional.
Entre nós, foi-se cimentando uma grande amizade. Daquelas que os filhos únicos entretecem. Quando me casei – em 1961 – convidei-a, com toda a naturalidade, para madrinha, o que pareceu estranho a algumas pessoas. Do casamento – e da MLÓ – guardo a lembrança de um comportamento que escandalizou muita gente, mas que eu compreendi quando soube que, no “copo de água”, onde ela estava tinham vindo à conversa falas e ditos sobre o homem que, ali, só ela sabia ser o seu pai. Bebeu mais do que devia, e água não foi…
Depois, escolhi-a, com toda a naturalidade, para madrinha de um dos meus filhos e madrinha dos dois ficou, sempre com uma amizade e uma cumplicidade (com eles!) que sempre foi… natural.
Namoriscou, mas nunca encontrou quem… talvez porque não procurasse encontrar, reformou-se, “enviuvou” da mãe e do meu pai, que como filha a considerava, tornou-se a companhia quase permanente da minha mãe. Como se filha fosse. Logo, como irmã a olhava e olho. Muito me ajudou! Naturalmente…
Pois, ontem, pelo telefone, à sua maneira, disse-me estar zangada comigo, porque me esqueci do aniversário dela, a 19 de Março. Fez, se me não engano, 76 anos.
Tem razão! O aniversário de uma irmã não se pode esquecer… se ela a isso dá importância.
Estou triste. Comigo. E escrevo esta estória do ante(s)passado, dedicada à MLÓ. Apenas para mim. Até porque sei que ela não viaja por estas “coisas”.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Às vezes passa por mim uma tristeza... das de não ter jeito

Nessas vezes, que poucas são:

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo
.
Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei

—Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.
.
.
.
.
.
.
.
Manuel Bandeira
.
.
... mas só se tu também vieres!

quinta-feira, 20 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 12

Já o terei dito, ou escrito, ou pensado. Mas que importa...
Somos antepassados de nós mesmos. Não por não termos alternativa por não ser filhos d’algo (Brel cantava que tous les enfants sont fils de quelq’un). Não por qualquer complexo narcísico.
Somos antepassados de nós mesmos porque somos – também! – o que fomos.
Ao lado daquela foto da minha avó, estava uma outra, de um miúdo, em que me revejo porque sou eu, e não resisto a contar (mais a mim que a outréns) uma estória deste meu antepassado.

Íamos “a férias” para a Trafaria. Que era, então, uma praia onde a pequena-média burguesia passava férias. Tinha a grande vantagem de permitir prolongar as férias dos miúdos sem prejuízo do emprego do pai (sim, que as mães raro trabalhavam para além do trabalho, que não era pouco, de serem mães e “donas de casa”), que até podia ir dormir ao quarto alugado ao mês, e serem mais do que um os meses. E passar os domingos… que essa coisa de fins de semana ainda não existia, apesar dos ingleses andarem com uma mania de terem livres os sábados à tarde… a chamada “semana inglesa”.
O barco, o “vapor”, tomava-se em Belém e era directo à Trafaria, embora houvesse, se bem me lembro, alternativas. E a travessia era uma aventura, uma travessura….
Este “puto” que sou eu parece que oscilava entre o risonho e o bisonho, e quem me fotografou apanhou-me em fase bisonha. Alguma me teriam feito... e deveriam estar a tentar recuperar-me para o risonho com aquela gracinha do olhó passarinho. Como se fosse assim, com essa facilidade…
Se calhar, estava “de trombas” porque, mais uma vez – teimosos, os adultos! –, me teriam impedido de ir descalço da praia para casa, que era o meu maior gozo (sempre gostei de andar descalço, com os pés livres de meias, sapatos, sandálias). Mas se os adultos eram teimosos, eu não o era menos e, uma vez, fugi da praia, só para fazer aquele caminhozito com a sola dos pés a esfregarem o chão da rua. Desaparecimento, pânico, mobilização geral, procura aflita, descoberta, alívio. E castigo, claro. Mas porque é que só as minhas teimosias é que eram castigadas, e as deles não?!
E há ou não estória para contar? Há. Um dia estávamos ainda na praia, num fim de tarde de Agosto ou Setembro, mesmo ao lado do pontão de embarque-desembarque, esperávamos que o meu pai viesse ter com a família ao desmanchar da barraca-toldo, e houve grande burburinho à chegada do barco. Não sei bem porquê mas alguém aventou que um homem teria caído ao Tejo. Pois o miúdo que eu era entrou em grande aflição, e só perguntava “meu pai cai t’ó mar?, meu pai cai t’ó mar?”
Tão assustado estava, tanto perguntei desta maneira que ficou estória-gracinha (?!) do menino para contar entre família. Muitas vezes a ouvi.

Histórias ante(s)passadas - 11

Ele há o dia da mãe, ele há o dia do pai, ele há o dia dos namorados. Dias inventados para se forjarem ternuras, e se estimular a compra de prendas carregadas de simbolismo e, tantas vezes, de balofo. Compra de objectos (e alguns abjectos) inventados para o dia inventado. Irrita-me, barafusto, mas, às vezes, “vou na onda” da vaga consumista.
O dia da mulher e o dia do trabalhador são outra coisa. Não se faça confusões. Têm a ver com datas de luta pela dignificação do ser humano. São dias de homenagens concretas referidas a datas e a factos concretos. Que não se podem apagar no folclore dos “dias de” para que se ofereça uma prendinha, se faça um almoço ou jantar em restaurante à luz das velas, se mime um relacionamento que deveria ser de todos os dias.
Isto porquê? Porque hoje, a mexer em papéis (vejam lá…) me saltou uma foto da minha avó Damásia, já nestas estórias ante(s)passadas referida. Pois decidi: hoje é o dia da minha avó Damásia.

Esta a foto. A senhora nela (e tão bela) é a minha avó Damásia quando nova e ainda não avó, claro.
Lembro-a com uma enorme ternura. Guardo-a, dentro de mim, como a mulher idosa (ela, que morreu com menos anos do que os que eu tenho agora que a lembro…), ingénua, cheia de ternura, querendo sempre tudo e todos bem, e bem uns com os outros, colocando aí o seu aparentemente pequeníssimo peso na família. Guardo-a, dentro de mim, com a imagem da mulher e avó daqueles tempos. Decerto imagem distorcida, porque ela não teria sido como eu a guardo dentro de mim. Mas que importa. É a minha avó Damásia.
E lembro que, sendo eu o neto mais novo, tinha por mim um carinho especial. Ou eu assim o sentia.
Quando, em 1954, fracturei um menisco, na minha actividade desportiva, e ela soube que eu teria de ser operado, sofreu mais dores que tive no meu joelho. E começou a arranjar uns “trabalhinhos de mãos” (uns crochets, umas malhas, uns passajares), que preparava numa cestinha, para ir passar umas tardes de companhia ao neto no hospital.
Na véspera, ou no dia de eu ser internado, talvez com a excitação, caiu e partiu uma perna.
Estive poucos dias internado. Mas ia sabendo do seu desgosto por não estar acompanhando o netinho. E empreendendo nessa tragédia, que não sei bem se era a de eu estar numa cama de hospital, ou a de ela estar, engessada, noutra cama e não poder estar ali ao meu lado, com os seus “trabalhinhos de mãos”.
O que sei também, e guardado ficou bem dentro de mim, é que quando a voltei a ver, tão poucos dias depois…, era outra. A fractura da perna, e aquilo em que empreendeu, tinham-na feito “variar”, “perder o juízo”, como então se dizia. Talvez o ver-me de muletas também tenha contribuído. O certo é que poucos dias sobreviveu naquela cama em que a encontrei, tão minha avó Damásia e já tão outra.

terça-feira, 18 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 10

São poucas as famílias da História. Menos ainda as que fizeram dinastia. Mais são aqueles que se arrogam de árvore genealógica até às penumbras do tempo. Todos esquecidos que, a ser certo aquilo em que a maior parte desses acreditam, teríamos todos, mas todos e todas as famílias, a mesma raiz. Ou caroço-semente. De maçã.
Mas todas as famílias têm histórias (ou estórias se se preferir…). Senão não seriam famílias. O que quer dizer que todas as famílias têm memória. Gostaria de contribuir para que algumas das histórias ante(s)passadas da minha família não se perdessem. Que não deixassem, comigo, de ser memória.

De um lado, um avô que parece ter tido “a roda” por genealogia, por isso apenas de nome Albino e Ferreira, e uma avó, Damásia, de que só conheci parentes de de-vez-em-quando, e três filhas, uma delas minha mãe, cada uma com um filho, e eu um deles, o mais novo da mais nova, a Casimira e o José Luís; do outro lado, do paterno, um avô que morreu muito cedo, uma avó lá longe, o meu pai filho único, nem primos nem primas, a não ser os que apareceram quando meu pai pareceu emigrante (em Lisboa...) que vingara e alguma notoriedade me tocou porque a televisão ajudou.
Tudo muito pouco, muito disperso, muito ralo. Mas com histórias!
A minha tia mais velha, a tia Guilhermina, é hoje um mistério para mim, que, curiosamente, não o foi quando era muito mais novo e com a família convivia e crescia. Conheci-a casada com o meu tio – só por afinidade(s) e pouca(s) – Adrião. Mas esse era um casamento, como então se dizia, em segundas núpcias, porque casada fora com um senhor Pena, oficial do exército, de quem se divorciara quase logo depois de terem tido uma filha, a minha prima Casimira já aqui referida e noutra ante(s)passadas histórias. E tudo isto era uma espécie de tabu consensual porque… de “isto” não se falava.
Só muitos anos mais tarde, comecei a perguntar-me de razões, até porque, nos anos 30, ser divorciada não era coisa comum e, para mais, a minha prima vivia com o pai e não com a mãe, o que tornava a situação atípica, ainda mais naqueles tempos.
A minha tia Guilhermina era uma mulher cheia de charme, ou talvez coquetismo (para continuar nos francesismos), que tinha problemas cardíacos e o meu “tio” Adrião, empregado de farmácia, mostrava de forma ostensiva desvelos e cuidados extremos com a sua saúde. Assim como tinha ciúmes enormes que, de vez em quando, rebentavam em explosões, como numa festa no antigo jardim de Vila Nova de Ourém em que trocas de olhares que o meu “tio” achou suspeitos trouxeram para o Zambujal valente discussão e amuos de que fui nvoluntário (?) ouvinte.
As histórias ante(s)passadas também são feitas destas recordações. E há mais.

Borsalinadas... já já!

... ainda com os pedaços de "toalha" com nódoas frescas:

* - sento-me, discretamente..., debaixo da prateleira onde assenta o aparelho de televisão. Para não "a" ver. Mas ouço-"os". E toda a gente vira o pescoço e olha na minha direcção. Com os olhos em alvo, dois palmos acima da minha cabeça.
.
* - Não!, nunca mais! A partir de agora, desta "experiência" JO, nunca mais! Só farei o que... Depois ,"o que" dá "no mesmo"... O defeito é, sem dúvida, meu!
.
* - Olhei, sem a intenção de ver o que quer que fosse. De relance, vi. Vi o desenho do seio sob a camisola grossa, de lã (acho eu...), despontando o botão do mamilo. Bom de ver, e não só esteticamente.
.
* - Mas estes olhos já não são o que foram. Estão lacrimosos. Estão, direi, lacrimejantes. E só têem, estes olhos, olhos para ti.
.
* - O JO! A lição, tantas vezes repetida, do que é "facilitar". Pelo desejo de fazer. Depois, apanhamos com estas "políticas" de corta a direito (bem, bem à/para a direita). Contra tudo o que seja micro, pequeno ou médio. Para os grandes não têm tesoura.
.
* - Olho os pedaços de papel. O Picasso desenhava em guardanapos de papel. Eu... pico o aço!

domingo, 16 de março de 2008

Se soubesse cantar (nãs sei?) cantava

Canto
o encanto
enquanto
.
Quantas vezes já o escrevi, quantas vezes já o disse?
.
Canto
o encanto
enquanto
.
Já antes, quantas vezes antes..., cantei o encanto e o enquanto, e cantei-o encantado, enquanto. Há trinta anos encantado o canto, como se o enquanto fosse eterno, como se trinta anos, e os que se lhe sigam, fossem eternos. Como são.
.
Canto
o encanto
enquanto
.
Nem sei se esta maneira de dizer o canto, o encanto, o enquanto, é original, ou se a li ou a ouvi - assim - algures antes de ser minha maneira de o dizer. Mas decerto que sim, tão simples e singela é. Nem quero saber. Vinicius, pelo menos esteve perto. Disse-o (e atreveu-se a cantá-lo) no feliz "eterno enquanto dura". Mas de outros não sei. Ou não me lembro.
.
Nunca me preocuparam plágios, nem reivindico direitos de autor, porque nunca deles quero o que dizem ser devido... Disse, escrevi?, é de todos os que ouvirem e lerem. Nada do que disse ou escrevi está no mercado, é mercadoria.
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Canto
o encanto
enquanto
.
Escrevo-o, digo-o.
E só não o canto porque não sei cantar.

sábado, 15 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 9

No dia 10 de Junho de 1933, deram-se dois nós. Um, o do meu pai, Joaquim Ribeiro, com a minha mãe; Judite que passou a ser Ribeiro Ferreira Ribeiro; outro, o da minha tia Ermelinda com o meu tio Cardoso, também Joaquim.
Não conheço outro caso de casamento duplicado, mas decerto que os há.
No entanto, não era só no nome dos noivos ser o mesmo – e no casamento ser em duplicado – que se ficavam as curiosidades relacionadas com dia especial. Para eles e, claro, para mim.

Sendo os dois noivos homens muito diferentes, tinham pais com a mesma profissão, sapateiros. Embora o meu avô já tivesse morrido há algum tempo, tinha tido essa profissão acumulada com a de agricultor, que era a de todos os que viviam no Zambujal no final do século xix começo do século xx; o pai do meu tio Cardoso, que conheci mal, era sapateiro num vão de escada na Calçada Marquês de Abrantes, onde o casal, para mim os avós do Zé Luís, eram também porteiros.
Mas ainda havia mais. Os dois noivos gostavam de jogar. Às cartas, e não jogos de todo recomendáveis. Tinham mesmo o viciozinho de as bater. E a doer, isto é, a dinheiro. Bem mais o meu tio que o meu pai. E com consequências muito mais graves, porque as do meu pai ter-se-iam ficado por deixar pelo pano verde eventuais economias, e perder noites com alguma frequência, sobretudo na Casa do Alentejo.
Já o meu tio Cardoso, que do Alentejo era, de Redondo, e sempre vi como uma figura curiosa, merecedora de estudo, não se ficou por aí. E sendo, ao que me disseram, um excelente profissional burocrático – "escritas" e essas coisas –, merecedor da confiança dos patrões, abusou dessa confiança, arriscou o que não era dele, e com tal risco que, pouco tempo depois de casar, com o filho para nascer ou acabado de nascer, foi parar 10 anos à Penitenciária. Pena que sempre me pareceu excessiva para o que me diziam ter sido a falta. Mas houve tanta coisa que não me contaram!...
Este episódio, com essa largueza de 10 anos de prisão e suas sequências, poderá ser retomado mas, para agora, a história ante(s)passada é, talvez..., curiosa.
Pouco tempo depois de casados, os dois pares, regressados das respectivas (e essas separadas…) luas-de-mel, juntaram-se num jantar de fim-de-semana, e os dois Joaquins, resolveram “ir dar uma volta”. E foram.
Foram pôr as cartas em dia. E estavam elas tão atrasadas que só voltaram ao convívio a quatro na segunda-feira de manhã!
Teria sido um baptismo para as duas manas! De fogo…

sexta-feira, 14 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 8

Neste sobe-e-desce, neste vai-vem pela família que foi a minha, entra, agora, uma escada. A escada do quintal dos meus avós maternos. E se escrevi que a família foi a minha, sinto algum mal-estar por ver que os tempos dos verbos têm de ser conjugados no passado. A família que foi a minha…
Qual é, hoje, a minha família? A companheira, os filhos, os meus e os que como meus quero e que parecem apostados em que fique a família por aqui.

Ainda a Casimira. A Casimira que, nesta “foto de família”, está ao colo do meu pai, na escada de ferro que descia da cozinha dos meus avós maternos até ao pequeníssimo quintal, com porta para o pátio e uma outra para a oficina do sr. Pires, onde eu me perdia a ver as fotografias dos jogadores de futebol coladas nas paredes.
Esta será, talvez, a foto mais completa da “minha família”. Que foi.
Os meus avós maternos, com o meu avô a espreitar, logo acima a minha avó paterna, e os três casais que as três irmãs formaram. A Guilhermina numa segunda tentativa, que da primeira saíra a Casimira e tivera incidentes que dariam para muitas histórias. Se eu as conhecesse…
Mas o mais interessante da foto é, talvez, a presença da minha avó Maria José, que nela está porque teria ido do Zambujal a Lisboa para o casamento do filho que nesse dia se realizou. O dele com a Judite, meio escondida entre os ombros do “noivo” e do cunhado, o “tio Adrião”, como de seu costume todo emproado e apoiando a minha tia Guilhermina, inevitavelmente no topo da escada.
Falta a referência especial aos noivos. Sim, porque esse dia 10 de Junho foi o dia de casamento das duas irmãs Judite e Ermelinda. O que já em si é uma boa história.
Falta na até agora legenda da foto, a minha tia Ermelinda e ao outro noivo do dia, o meu tio Cardoso, de quem tantas histórias ante(s)passadas há para contar. E a elas chegarei…
Olho a foto e revivo os personagens, de que só a Casimira está viva.
Observo a forma como os personagens se dispõem e nessa disposição de definem. A minha mãe é bem, das três irmãs, a que, também por mais nova ser, a que mais escondida está. Com vocação para ser a que dava o nome às criadas das peças de teatro. Mas só quem melhor a conheceu sabe o que ia lá por dentro…

quarta-feira, 12 de março de 2008

tal pergunta, tal resposta - 10

- Então... parece que o governo recuou nesta coisa da avaliação dos professores, já não vai ser como diziam...
- Qual quê! Este governo deste PS deste Sócrates não recua, flexibiliza...
- Ou seja...
- Dá meia volta, dá uns passos em frente mas no sentido contrário... até poder fazer outra vez meia volta e continuar (sempre!) a andar em frente.

terça-feira, 11 de março de 2008

A minha tia Ermelinda

Esta foto está à espera de um texto "ante(s)passado", que já está cá na cabeça (para nos distinguir das abelhas ou das aranhas, Marx dizia que nós "construímos" antecipadamente na nossa cabeça as coisas que vamos construir materialmente, sejam casas, sejam textos). Mas antecipo a publicação da fotografia da minha tia Ermelinda (e, à boleia, do meu "tio Cardoso") por causa cá de umas coisas, isto é, de uma "tia" que se deu a conhecer. Nesta minha idade...
E, claro, porque gostava muito desta minha tia Ermelinda (o que ela sofreu na vida que teve!), e aproveito para a apresentar à "outra" Ermelinda, que me deu muita alegria ao tratar-me por sobrinho. "Quere-se dizer": rejuvenesci...

Histórias ante(s)passadas - 7

Há dias especiais. E se o 10 de Junho era o “dia da raça”, à boleia do Luís de Camões, que não deveria achar muita graça à graça…, sobretudo quando começou a ser associado à “saga” colonial, com a guerra a ser motivo para os apelos ao sentir patrioteiro dos portugueses, para a nossa família o 10 de Junho de 1933 foi mesmo muito especial. Foi uma espécie de 2 em 1.
Não sei se por questões de economia ou por outras razões, as duas manas, a Ermelinda, já (então, nesses tempos tão idos) com 26 anos, e a Judite, com 23 anos, casaram no mesmo dia.
O que teria sido um grande acontecimento na Rua do Sol ao Rato.
.

O cortejo teria ido até à Igreja de Santa Isabel, que era logo ali ao virar da esquina e, lá, um padre substituto concretizou o que é um sacramento e que dois sacramentos tiveram de ser.
Tudo de casaca e vestido comprido, que então era assim.
Na foto, reconheço os noivos, claro, o meu avô já na fase alentada em que o conheci, a minha avó debaixo de um chapelinho, os Salgueiros, padrinhos dos meus pais, logo atrás o "tio Adrião" e a minha tia Guilhermina, à esquerda os que viriam a ser os meus padrinhos de baptismo, ele alto, careca e, ao que parece, negociante de empréstimos e penhores, ela baixinha e rica, de que guardo boa recordação dele se chamar Sérgio e, por isso, ter este nome de que gosto. À frente, as meninas: à esquerda, a Nela, filha dos Salgueiros, uma boa amiga, e à direita a Casimira, desconhecendo quem está no meio, e então seria mesmo a virtude.
Do que me contava o meu pai, houve bronca nas confissões pré-nupciais, a que o meu pai, com o seu anti-clericalismo, se teria escusado, e o padre titular, em represália, mandou um substituto porque, teria ele dito..., se fizesse o casamento naquelas condições tinha receio que a igreja lhe caísse em cima. Ao que o meu pai respondeu que, lá de velha havia esse risco, agora por ele não se confessar não cairia com certeza,
Só que esse substituto era gago – requinte da represália –, o que fez o noivo, senhor meu pai, intervir, dizendo-lhe, ao ouvido, que os noivos e convidados dispensavam sermões porque já conheciam aquela lenga-lenga de cor e salteado.
Com antecedentes destes, que poderia eu ser (embora anti-clerical não seja... mas isso é outra estória)?

segunda-feira, 10 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 6

O Ti Zé "Alfaiate veio alterar a sequência. Não havia sequência mas… dizia eu que… depois, ia voltar à família.
Mas, mesmo que isto seja uma rebaldaria e eu ande aqui para diante e para trás, tem de haver alguma ordem.
Voltemos ao lado materno e às três irmãs. Que não era as do Tchecov.

Pois não eram as de Tchecov, mas o meu avô tinha a mania do teatro.
Nesta foto, verdadeira foto de família, está ele com um ar sério e gosto de ver a minha avó com um ar de senhora, com leve sorriso irónico (ou será sofrido?).
Até custa a crer, mas, pelos meus cálculos e observações, a minha tia Guilhermina, a do lado direito, ainda não teria 18 anos, idade com que se casou com um garboso oficial do exército que entrou neste família (pequeno) burguesa mas depressa saiu porque teria acontecido o que então era raro (pelo menos saber-se…), a minha mãe (Judite, a do meio) não teria 13 anos e estaria ainda a aprender francês e a fazer crochet, e a terceira era a minha tia Ermelinda que, se estas contas estão certas, andaria pelos 15/16 anos.
Mas, voltando ao teatro, as peças que o meu avô escrevia foram representadas, uns bons anos depois desta foto, na Sociedade de Instrução de Campo de Ourique, antes do fascismo Grémio de Instrução Liberal de Campo de Ourique, onde o meu primo Zé Luís e eu andámos na escola, e onde me lembro de ter assistido a essas representações.
Tenho mesmo pena de não conseguir recuperar esse espólio, perdido sabe lá em que andanças e desandanças familiares e guardo a recordação que, nelas, o meu avô dava aos personagens os nomes da família toda. E Guilhermina era sempre o nome da “vedeta” e Sérgio o do "galã", ficando os outros nomes para papéis secundários ou menos importantes.
E lembro-me disto porque o meu pai ficava furioso e fez algumas cenas (não teatrais…) por darem sempre o nome de Judite às criadas, embora a “fúria” fosse moderada por o meu nome compensar o que ele considerava quase ofensivo.

domingo, 9 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 5

Memória de amigos que é como se família fossem, ou tivessem sido, também são o alimento destas histórias ante(s)passadas.
Nos convívios com amigos que de nossos pais eram, com os vizinhos e nas escolas por onde se andou se foram forjando amizades. E memórias. Muitas, sei agora, nasceram aqui, na aldeia, no Zambujal, num mundo que era outro que não o do quotidiano alfacinha, e que sempre me pareceu muito mais são, bem mais humano.

Do ti’Zé “Alfaiate” guardo uma saudosa memória.
Sinto que cresci muito na convivência com ele, nas cumplicidades que criámos, ele amigo de infância do meu pai, que o ensinara a ler umas letras e a fazer umas contas, e eu o menino que andava no liceu e vinha lá de Lisboa. Os exemplos não serão todos os mais aconselháveis, como o daquela vez em que me passou um copito para a mão e, com o corpanzil, me escondeu das vistas de meu pai para que eu pudesse beber o que me apetecesse e fui tirando directamente da vasilha da sua adega… De qualquer modo, ele ia controlando e não teve consequências impróprias para a minha ainda relativamente tenra idade.
Tocava saxofone na filarmónica dos Castelos, e fazia parceria com outra figura muito interessante o ti’João Mendes do Casal Novo, um ruivo também bem alentado, que com ele pousa na fotografia, estando à esquerda dos dois o Manel “Alfaiate”, o filho do ti’Zé.
De muitos ditos e graças dele me lembro, e uma agora me ocorre. Um dia, estávamos todos à lareira da casa deles, e falava-se de alturas – eu sofria por ser pequenino… – e ele saiu-se com esta:
“Pois é… isto das alturas é uma coisa muito estranha… ‘inté parece que, na cama, a ‘nha Júlia (que, pequenita, tinha aí menos aí uns 30 centímetros de altura que ele) e eu temos os dois o mesmo tamanho… as nossas cabeças estão nas almofadas e os nossos pés – e outras partes… – estão à mesma altura…”
e com um dos ares mais marotos, ainda acrescentou
"…e se alguma coisa cresce, ‘inda é, de vez em quando…, cá o meu instrumento…”
“Ó home… nã tens juízo nenhum… só dizes asneiras… o raio do home…”
(corou a ti’Júlia enquanto os outros, os meus pais e eu, estalavam de riso).

sábado, 8 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 4

Não só de antepassados são as memórias do antes passado por cada um de nós e que nos foi fazendo. Os amigos são parte importante dessa memória que nós somos. Os que escolhemos para nossos amigos e os que nos escolheram para amigos seus. Nem sempre haverá reciprocidade. Temos amigos porque lemos o que escreveram ou ouvimos o que disseram e que de nós nem sabem a existência. Mas este é um conceito largo de amizade. Porque os outros, aqueles de quem fomos amigos e nossos amigos foram, esses, esses sim, são a nossa memória antepassada.

O senhor José Gil foi um amigo. Era o ti’Zé Alfaiate, e sempre o vi como um irmão do meu pai que, como eu, era filho único. Esta tendência dos filhos únicos para arranjarem irmãos e, neste caso, tios por afinidade… de carências. Mas o carinho com que o meu pai falava dele era fraterno, e foi assim que o conheci e foi assim que nos fizemos amigos. Contava-me o meu pai que, num intervalo na sua vida, e antes de abalar para Lisboa, o ensinara a ler e a outros do seu tempo, e tinha por ele muita amizade.
Ele, a ti’Júlia, a Conceição, também a burrica com que ele brincava e nos levava ao mercado, às 5ªs feiras, puxando a pequena carroça, faziam parte da família.
Era um homem grande, bonacheirão, com um espírito de humor muito fino. Na fotografia para que olho vejo-o cansado, triste, diferente da imagem que guardo dele. Mas sei porquê aquela sombra que lhe fechava a cara que conheci risonha, estanhada, estuante de vida. Apostara muito no filho, também único, este começara por ultrapassar as promessas, cheio de iniciativa, empreendedor mas… depois descarrilou. Teria querido dar passos mais largos que as pernas lho permitiam e muito teve de se sacrificar o ti’Zé Alfaiate.
Adiante, embora não só de ditos e graças se façam as histórias ante(s)passadas.
Para o alpendre da casa lá em frente, no cimo, ia eu ver e desenhar os castelos de Ourém que, cá de baixo, da cova onde fica a nossa casa, não se vêem (único – e grande – defeito que lhe encontro).
Um dia, apanho este diálogo com a sua Júlia, que hoje penso que teria a direcção dos meus ouvidos:
“Ó mulher, muito rezas tu…”
“Cala-te, home, nã vês que tenho que rezar por mim e por ti…”
“Ah, mulher, nã te dê cuidados… e com tanto Padre Nosso e Avé Maria ainda me fazes salvar o céu lá p'ró outro lado.”

sexta-feira, 7 de março de 2008

Histórias ante(s)passdas - 3

A minha família, por qualquer dos dois ramos, não tem história. Tem estórias. Eu não tenho árvore(s) genealógica(s). Tenho raízes. Sinto que tenho raízes que são feitas de memórias. Que não quero que se percam comigo.
Ainda por cima, ando com este trauma da falta de netos….
E, por exemplo, o filho único da minha prima Casimira cortou com tudo, a começar por ter cortado com a família. Depois, consigo próprio até à prematura e inevitável morte. Uma história triste, de que contarei um episódio a que, hoje, chego a achar piada.
É para já! Depois volto aos outros…

Então é assim.
Gostava do miúdo. Do António Alberto, o primeiro da geração a seguir à minha. Que era filho da Casimira.
Quando sabia que o TóBé ia passar o dia na casa dos meus avós, ao lado da nossa, arranjava o horário para estar com ele uma boa parte da tarde. A brincar com o puto. Eu ai com 15, 16, 17 e ele com menos uma larga dúzia de anos
Eu fiz o liceu, fui para a Universidade, confirmando expectativas, ele chegou ao liceu, andava na ginástica na Académica da Amadora, e eu era assistente convidado dos festivais de fim de época. Pelo menos de um fui… Era o primo que ia ver as habilidades do priminho.
Acabei o curso. Casei. Seguia ao trilho todo, com notória satisfação familiar (só não sabiam de umas clandestinidades que me iam levar à “ignomínia” da prisão e à incompreensível destruição de uma carreira tão bonita).
Pois é, eu seguia o trilho todo, mas ele, o TóBé não. Começou bem cedo a descarrilar…
Um dia desapareceu. Saiu de casa sem dizer “água vai”. Pânico geral.
Lá fiz o que me foi possível. Talvez pouco para o muito que esperariam de mim. Até que, dias depois do desaparecimento, a Casimira me telefonou para o emprego. O TóBé dera sinais de vida. Regressava de Barcelona. Dentro de pouco chegaria a casa, e ela pedia-me, implorava-me..., que chegasse a casa deles antes do pai fazer o trajecto do banco à Amadora. Teria de ser eu a amortecer o primeiro assalto do embate entre pai e filho.
E consegui. Fui o que chegou mais mais cedo e amorteci o primeiro encontro dos dois... Meti-me entre eles e uma parte dos murros e pontapés do pai com endereço ao filho apanhei-os eu.
Lá acalmei os contendores. Deixei o filho entregue à mãe(zinha), levei o pai a tomar um café, alertei-o para a necessidade de regressar ao banco onde era disciplinadissímo funcionário, e voltei ao lar onde regressara o filho pródigo.
Não sabia lá muito bem que lhe dizer. Comecei, canhestro: “é pá! então?… voltaste, hem!” O gajo riu e, desavergonhado, respondeu-me: “acabou-se-me o shampoo e não fui capaz de me habituar à falta dele!”.
Esteve quase a apanhar uns murros e pontapés que eu tinha em recente depósito à conta dele…

Mas, hoje, tenho a impressão que aprendi muito com essa resposta. Pena que ele não tivesse aprendido nada. Com aquela primeira "fuga", e a falta que nos fazem algumas coisas!

quinta-feira, 6 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 2

De memórias nos fazemos. Do que os outros de antes de nós e a nós iguais, viveram e nos transmitiram. E de tantos deles memória se perde. Perdemo-los. Perdemo-nos. Filhos somos, filhos temos, netos nos darão (ou não). Histórias ante(s)passadas reforçam e compensam elos fracos.
Sinto necessidade de contar algumas dessas histórias. Para que comigo não acabem restos da vida daqueles a quem tanto devo do que sou, que me fizeram o que vou sendo.

A minha avó Maria José (Félix ou Feles), mãe do meu pai, foi senhora de “cabelo na venta” e ainda hoje há quem diga – por palavra passada de geração em geração – que não era lá muito boa vizinha. Enviuvou nova, antes dos 40, com um único filho, e foi remendando a sua vida. O filho não lhe terá dado trabalhos. Foi para a “aldeia”, como marçano, e depressa se fez independente. Ela amanhava as fazendas e criava algum gadozito.
O meu pai abalou para Lisboa mas ajudava, e não esquecia o Zambujal, embora as viagens fossem difíceis e, por isso, raras. Até porque o primeiro carrito – BI-13-25, um Austin 8 CV – só o teve já depois dela ter morrido.
Para mim, era a “avó da cabra”, porque tinha uma cabrita que saltitava pelo pátio, e cada visita era a descoberta de mundos novos.
Às tantas, as raras visitas ficaram mais raras, e convivi com o desgosto grande do meu pai com o difícil envelhecimento de sua mãe e minha avó. O “cabelo na venta” crescera e encaracolara. Em cada vinda havia cenas a juntar ao desconforto de uma casa que envelhecia com a sua habitante. Meu pai, lembro-me bem, abriu contas em lojas da vila, que de amigos eram – o Zé Dias para os víveres, e o Zico para as roupas, por exemplo –, onde ela se podia fornecer do que quisesse, mas chegou a andar pelo mercado, à 5ª feira, a pedir esmola e a dizer que o filho, lá para Lisboa, a esquecera e que era um valdevinos. Vi o meu pai sofrer.
Até que decidiu levá-la para Lisboa. O que ela não queria, e a que resistiu. Mas teve de ser. Quase à força.
Então, na Rua do Sol ao Rato, no pequeno quintal das traseiras, a minha avó todos os dias dava um pequeno espectáculo. Não se servia da casa de banho, e insistia em fazer as suas necessidades no quintal, tal como se estivesse no Zambujal e fosse ao campo. As vizinhas assistiam, das janelas e varandas como se de frisas ou camarotes, àquele cena diária. E galhofavam. Foi duro, senti algo parecido com vergonha, mas hoje faz-me sorrir.
Para a minha “avó da cabra” aquelas coisas de sanitas e bidés eram mesmo de gente sem tino.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 1(*)

De muitos que nós somos só resta a memória dos que por cá ainda andam. Todos temos pai e mãe, embora nem todos tenham conhecido o pai – e não só por comportamentos atípicos (?) da mãe –, mas nem todos estamos certos de ter filhos e netos que nos lembrem nas histórias por nós ante(s)passadas.
Sinto necessidade de contar algumas. Para que não acabem comigo alguns restos da vida daqueles a quem tem tanto (e tudo) devo do que sou.

O meu avô materno, o senhor Albino Ferreira, homem muito respeitável e sempre pontual, era, quando o conheci, um reformado da Administração-geral do porto de Lisboa. Recordo-me dele como reformado, se calhar antes de o ser, esse estatuto então apenas privilégio dos funcionários públicos.
Pelas tardes, descia a Rua do Sol ao Rato para, dizia ele…, ir jogar a sua partidinha de dominó no Jardim Cinema. Algumas vezes lá o encontrei, a escapar-me eu do Liceu Pedro Nunes para um joguito de matraquilhos (com bolas de cortiça!). Não muitas vezes o encontrei, porque o meu avô nem sempre estava na mesa do dominó.
Às noites seroava em casa, sendo verdadeiramente excepcional sair e, quando o fazia, era sempre com a minha avó, Damásia de seu nome. Só para um aniversário de uma das filhas ou dos netos, e só quando não conseguia que se aniversariasse na avoenga mansão que mansão não era.
Um dia, estando com minha mãe e tias em visita a minha avó, ouço esta contar, escandalizada, que “a criada” – as jovens que vinham da terra para de “criadas” servirem à pequena burguesia –, estava grávida. Soltaram-se “oh!”s e “ah!”s de fingido espanto mas de solidário escândalo.
E dizia a minha avó “não sei é como é isto teria acontecido… ela só sai de quinze em quinze dias e sempre à tarde… nunca sai à noite… como é que podia ter acontecido uma coisa destas?”
Para a minha avó, “uma coisa destas” só podia acontecer à noite… Quem teria assim instruído a minha avó quando ela, menina e moça, começou a fazer "dessas coisas"?! De que nasceram três filhas e depois, de uma destas, nasci eu.
As minhas mãe e tias riram muito, para dentro dos seus lencinhos de seda, e eu sei que se o meu avô estivesse por ali me teria piscado o olho. Entre homens... ele o homem que, à noite, nunca saia de perto da sua Damásia mas que, às tardes, "dava umas voltas" nem sempre para jogar dominó no Jardim Cinema.
__________________________
(*) - Há dois anos, nas vésperas de saber que iria ter de fazer uma intervenção cirúrgica de alguma gravidade (que foram duas) para me tirarem das entranhas um "bicho" que me estava a consumir, deu-me vontade de escrever estas estórias. Estranha vontade... Foram saíndo, em intervalos de outras coisas, e até saber do que tinha de ser feito ao meu corpo para continuar "matéria organizada". Curiosamente, um dia destes, saltaram do meio dos papéis as estórias que dera ordem à impressora para tirar do computador. Oferecerem-se-me para este blog de contar coisas...

segunda-feira, 3 de março de 2008

Estou na sexta fila do anfiteatro, na terceira cadeira.

Olho à minha volta e vejo camaradas de todas as idades. Os meus olhos demoram-se, confortados, nos mais jovens. Que são tantos!

Na comprida mesa em frente, lá em baixo, caras que há anos conheço e envelheceram, ano a ano, luta a luta, com a minha, agora também alternando com algumas caras jovens, tão jovens...

Fixo-me, como se estivesse ao espelho, naqueles em quem os cantos da boca descaem, o que é acentuado pela barba que, embranquecida, deixa uns riscos mais escuros, de sombra, a descerem do bigode para orlarem as "pêras", estas talvez mais brancas ainda que o resto da barba e do cabelo.

Ó meus amigos, em vez do acento circunflexo (^), ao menos o til (~) que é meio sorriso. Que tal?... é que um homem tem de sorrir à morte nem que seja só com meia cara!

E temos razões para isso, não é verdade?

De regresso

Por outras paragens andei.
Por ruas, largos e rossios.
No meio de gente, gente, gente.
Agora, regresso. Estava com saudades...
E aqui estou, sentado à "velha" secretária.
Regresso mais novo e com mais força.
Milagres de ter sido gente no meio de gente!