Pequena nota introdutória - Esta crónica foi publicada no Diário de Lisboa, em Junho de 1968. Sendo, então, responsável pela secção económica deste jornal, atrevia-me a propor crónica para outros lugares do jornal. Esta foi uma das primeiras. Teve algum impacto. Igrejas Caeiro leu-a no seu programa de rádio, e fui convidado para convívios, quiçá literários, que, se bem interpretei me abriam portas para caminhos que não quis percorrer... porque já outros caminhos tinha escolhida para a minha vida!
ESTAVA UMA NOITE ESTUPENDA
Gozadores da vida, não podíamos faltar a Alfama. Na noite-véspera de um santo, desses populares. Foi na véspera de S. Pedro.
Estava uma noite estupenda. Deixámos o carro na orla do típico. E misturámo-nos com gente.
Há regras a cumprir. A primeira, é que a Alfama só se deve ir em grupo. Com muita vontade de cada um se divertir e divertir os outros. Depois, eles devem ter barbas e piada pronta, elas devem estar muito queimadas da praia a sobrar dos trapos leves, coloridos e escassos, e devem ter o riso fácil que responda à piada pronta. Há que dar alguma “barraca”. Se estiver difícil de resultar espontânea, entrar bem na sardinha, no chouriço, no bacalhau assado e, sobretudo, no tinto.
Não paramos de acenar. Somos quase sempre os mesmos em todos os sítios.
Há um ou outro ângulo de ruela que nos atira encosta acima. Para este ou aquele largo. Pelas escadas, as decantadas escadinhas, às vezes caprichosas, que tantos pintam ou desenham, nenhum como Botelho. Atrai-nos um motivo ainda ingénuo que se descobre no anúncio daquele “trono”, no nome daquela esplanada-improviso.
Vamos parando. Enchendo os olhos aqui e ali. Tropeçando nas meninas pobres e sujas, todas iguais, que nos oferecem os cravos contra “o que quiser dar”.
Somos tantos, barbicha aparada e traje desportivo, carne morena e andar ondeado, somos tantos a desfrutar o insólito, a usufruir o pitoresco, que parece que se nos escapa o que é mesmo insólito, o mais tragicamente pitoresco. Esta gente de Alfama de todo o ano, de todos os dias. Que, nestas noites-vésperas, procura aproveitar a invasão. Como que a vender a tranquilidade de umas noites de estar, calmamente, à soleira. A oferecer a devassa das suas casas, das suas ruas, dos seus largos, das suas escadas de todo o ano, de todos os dias.
Nós, os gozadores da vida, vamos passando. Falando alto. Rindo muito.
Atrai como um íman um ou outro apontamento de mãos que se encontram e se ficam enlaçadas. Dois que deixam de fazer parte do grupo para serem dois na noite quente, de ainda Junho mas já verão. Com olhos a procurarem-se no sorriso da enternecida descoberta.
O grupo abanca e gargalha mais e mais alto. Perdendo um pouco o sentido. O porquê.
Nós, os gozadores da vida, julgamo-nos senhores de Alfama. O que lá está, está lá para nosso gozo. As ruas, os largos, as escadinhas, os ângulos de esteta, as esplanadas, os balcões, aquele espontâneo que canta o fado, as miúdas, todas iguais, de cravos-esmolas de tostões. Até aquele linguajar rasca em que se prometem cabeçadas (“ainda cheiras a minha brilhantina”). Aquele linguajar em que a grande ofensa é falar na mulher, na mãe ou, sobretudo, na companheira. Talvez a única coisa possuída. Velhos complexos de marinheiros e emigrantes. De homens que deixam mulheres sozinhas e vão à cata do mundo. Que, no regresso, ou nos breves regressos, querem ter quem os espere. Tantas vezes com mais um filho, nascido do anterior regresso. Mulheres que esperam, mulheres-resignação.
No parênteses, a cabeçada esteve quase. Mas formara-se círculo de espectadores. Assim não. Logo se ajustarão contas. As ofensas não se esquecem. Foi, apenas, um começo de espectáculo para nosso desfrute, isso foi. E só assim tantos o viram.
Mas há mais. Há tudo. Há, sobre tudo, aquilo que não existe para nós, passantes bem dispostos que deixámos o carro na rua perto e tão diferente. Há estas pobres crianças de colo que por aqui estão, às portas, cobertas de roupa, de trapos; estas outras que já andam, pequeninas, franzinas, muito irrequietas, e que, noite alta, já perderam horas e horas de sono devido. Que comparamos com as nossas que ficaram em casa, que tenteiam os primeiros passos mas que são mais altas, mais fortes, vão mensalmente ao pediatra e que às oito e meia têm de estar a dormir.
E há o espreitar para estas casas de portas entreabertas. De onde vem um bafo quente com o cheiro de madeira roída, de pó e roupas velhas. Onde se vislumbra, no canto da sala comum, o aparelho de televisão com uma moldura requinte de folhado de chita e uma jarra com flor de plástico. Entre móveis velhos atravancados. Reflexo insólito de um viver estranho. De que nós, os gozadores da vida, perdemos oportunidade de, sequer, tomar conhecimento. Tão à nossa medida sentimos o mundo que nem ao menos espectadores dele somos capazes de ser. Perdemos oportunidades, é o que é.
Na véspera de S. Pedro. Em Alfama, claro.
Estava uma noite estupenda.
[não consegui fugir a dar-lhe uns (re)toques]