faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Papéis velhos...

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A Cabo-Verde,
aos caboverdeanos

No fundo de umas calças velhas rotas encontrei uma pequena lâmina. Daquelas que servem para fazer barbas nas manhãs endorminhadas. Mas esta não. Esta é uma lâmina suja de terra e que guarda um cheiro lembrança a flor e fruto.
Do fundo de umas calças velhas rotas veio esta ferrugenta lâmina lembrança de vida e de convívio em manhã folga de cooperante da cooperação de todos os dias. Uma lâmina ferrugenta que cortou plástico negro invólucro de raízes de árvores a plantar e fazer crescer. Para chamarem a chuva que – disseram-me – ainda este ano não veio.
Em mim desceram mais fundo as raízes da vontade de ser útil. De dar préstimo a esta lâmina ferrugenta e terra e árvores para trazerem chuva onde se vive seca, e as secas são memória e foram fome e fomes.
No bolso deste meu casaco de trazer pelas Lisboas e Europas guardo uma lâmina insólita, ferrugenta e terra e árvores para nascerem e serem esperança de chuva.

22.03.1982
(há quase 29 anos!)

sábado, 27 de setembro de 2008

A propósito...

... a propósito de uma coisa acabadinha de ler:

a escola de hoje é diferente da de ontem (veja-se o "Magalhofa").

Ah! poizé...
como a escola de ontem era diferente da de anteontem e como a de anteontem era diferente da de trans-anteontem. E como a escola de hoje é diferente da de amanhã.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A galinha, o ovo, o quintal, os vizinhos... e a amizade

Quantos "posts" por fazer!


Discurso sobre "materialismo histórico"

Minhas senhoras e meus senhores,

Não vou, evidentemente, esgotar-me de esclarecimento em esclarecimento até ao esclarecimento final…
A série sobre “materialismo histórico” em anónimo do século xxi surgiu de uma proposta-desafio que veio ao encontro de um procedimento pessoal já velho de muitas décadas, e que muito gostaria de ir apurando: observar a realidade que vivo, e nela intervir, escorado numa perspectiva global - quer no espaço quer no tempo - sempre em revisita. Isto é, procurar descortinar os caboucos e as dinâmicas em cada facto observado e vivido, para que a intervenção possa ser de acordo com o que desejo e defendo. Errando aqui, corrigindo ali. Sempre com os outros. Os que já viveram e os que me são contemporâneos.
Se não “fechamos para congresso” – fórmula que muito me agrada porque a vida e a luta não param para que congressemos – não podemos deixar de fazer o vai-vem da História para confrontar o que estamos fazendo com os caminhos feitos e as dinâmicas detectáveis.
Nesta série, sinto-me a fazer, de novo, uma viagem sempre repetida e sempre nova. E não será ela que me impedirá de intervir, com o instrumental que, pela viagem, mais actualizado e adequado quero que esteja. Se o consigo ou não é outra questão...
Não abordo lucro, especulação, financeirização, transnacionalização, e etc. sem a permanente revisita dos mecanismos da exploração, da mais-valia, sem o “mercado mundial” do Manifesto e o imperialismo leniniano, sem o voltar à circulação e o regresso à origem dos circuitos e às (sem) razões das injecções monetárias, sem o capital a perder rosto, e como o vai perdendo enquanto ganha personagens-vedetas em ideologia doentiamente individualista. Sempre na busca de o que fazer em respostas colectivas.
Nesta viagem continuarei sem deixar de estar onde estou. E intervindo em cada gesto e minuto deste tempo.
Tenho dito e obrigado pela atenção.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Gosto deste! Assim, tal-e-qual

(De uma entrevista qualquer num jornal inquiridor:
«Mas estarão os comunistas dispostos
a aceitar a alternância no poder?»)

«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar o tédio,
um senhor de sonho espesso.

Como se fosse possível!
- ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.

José Gomes Ferreira
Obrigado, Fernando Samuel,
no cravodeabril.blogspot.com

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Histórias ante(s)passadas - 37

As estórias ante(s)passadas são... saudades. E delas sinto saudades. É o chamado jogo de espelhos ou "matrioskas". E há que tempos que não trazia aqui nenhuma dessas recordações e saudades que em mim vivem. E que acordam de vez em quando.
Foi o caso de, nas "grandes operações" de limpeza de papéis - há sempre operações com tal propósito, mas acontece que é cada vez mais frequente a necessidade de... "grandes operações" - em que andamos, do meio de papéis avulsos me saltou esta fotografia:
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Fiquei a olhar para ela, embevecido, trabalho parado, eu como pasmado. A minha tia Ermelinda e o meu tio Cardoso do lado direito da minha avó Damásia e, do lado esquerdo, os meus pais.
Até que a voz da consciência (também lhe chamo assim...) veio de lá do fundo (de onde?...) com um imperativo então?! paraste?
Retomei a faina - que remédio!-, mas separei a fotografia para com ela me encontrar aqui no sossego da secretária. E aqui estou, depois de a ter scaneado e preparado para o "post".
Talvez mais interessante, para mim, claro, e que poderá assemelhar-se a estória, de faccionada, é o verso da foto: Caneças, 5 de Abril 1931 Domingo de Páscoa. A lápis e com a letra da minha avó de que tão bem me lembro.
Ainda não eram casados aqueles dois casais que o viriam a ser no dia 10 de Junho de 1933, e foi decerto um passeio aos "saloios", em que evidentemente não era consentido que fossem sozinhos os namorados, engravatados eles (e de chapéu e lencinho no bolso) e bem enfarpeladas elas. No domingo de Páscoa, 3 dias depois da Judite, a mais novinha, a minha mãezinha ter feito 21 aninhos!
Como eu me lembro deste passeio... em que estava a começar a ser projecto de vida (vejam como "ele" se chega para "ela", e o olharzinho d'"ela"...)!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Títulos honoríficos

Cá o rapaz tinha um título honorífico de que muito se orgulhava: metalúrgico honoris causa.
Acabo de receber, de um camarada que leu o meu livro, um outro título que não menos me orgulha: militante de paredes de vidro.
Fica aqui para nós. Neste blog quase íntimo.
Aliás, tinha no meu pequeno caderno de apontamentos (ou a ponte mentos), datado de 14.09.2008:
  • Ter honras por aquilo que se foi? Nunca!
  • Ter honras por aquilo que se é, ou que se pensa que se é, ou que outros julgam que se é? Um pouco...
  • Ter honras por aquilo que se faz? Todas!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Uma outra estória da Festa

Hesitei. Conto, não conto, ou rio-me só cá comigo? Conto! Aí vai.
Entre as 16 e as 18 horas estive na “Festa do Livro” na apresentação do meu livro e a autografá-lo. Depois, bebi umas cervejas, comi uma bifana, andei um pouco (pouco!) pela Festa, e depressa se fez tempo para estar, antes das 21 horas, no auditório do “Pavilhão Central” para um debate sobre a crise do capitalismo.
Dei o meu primeiro contributo, e fui bebendo água enquanto os outros camaradas falavam. Animei na parte final, sai relativamente satisfeito do auditório e ainda porque muito bem acompanhado. Percorremos, amigos em fraternidade, o caminho até aos nossos portos de arribação e recuperação de forças – primeiro, o meu em Santarém, depois, o dele em Coimbra.
No percurso, fui vivendo com alguma excitação encontros ocasionais – com alunas, com alunas de há quase 30 anos! –, e pedidos de autógrafos nos livros comprados e à procura do autor. Mais umas imperiais, mais umas conversas, e a necessidade de ir arranjar espaço para novas imperiais.
Sai de Coimbra, atravessei a rampa relvada de corpos em pousio, uns solitários, outros em grupo e conversa, outros aos pares e beijinhos. Cheguei aos sanitários, perfilei-me na fila, esperei a minha vez. Que chegou. Fiz o que ali me levara, dei meia volta e quando comecei a abotoar os botões destes jeans de botões, e a fazer a fila em sentido contrário, com a intenção de passar por onde a minha mãezinha dizia que os meninos deviam ir depois de fazer xi-xi, eis que fui abalroado. “Ah, g’anda Sérgio! Estava mesmo à tua procura…”.
E aquele homem, que vinha, ele, a começar os preparativos para fazer o que eu acabara de fazer (as calças dele tinham fecho de correr), começou a vasculhar na mochila e sacou de lá de dentro o meu livro. “Dá-me aí um autógrafo, comprei-o agora mesmo… sou o Amílcar… lembras-te?… dos Purrianos… toma lá a esferográfica.” Peguei na esferográfica dele (na esferográfica!), com algum constrangimento porque estávamos a provocar um ajuntamento, melhor, dois ajuntamentos – um a entrar, à minha frente, outro a sair, atrás de mim –, escrevi a dedicatória (Para o Amílcar “purriano” com um abraço e tal…) enquanto ia dizendo “Ó Amílcar, ‘tás porreiro, pá?… então não me lembro… temos é de nos apressar…”
É que os ajuntamentos estavam a tornar-se caóticos, naquele estreito corredor para aliviar pressões de bexiga nos sítios indicados pela organização. Mas, curiosamente, assistia-se com paciência e bonomia àquela cena. E que cena!: dois gajos – um já aliviado, outro ainda não – a abraçarem-se, e um deles a escrever num livro que o outro lhe apresentara de esferográfica em punho. Tudo isto no espaço que era aquele, no tempo de segundos que, em certos momentos de aperto, parecem horas.
Quando me encontrei cá for, ao ar livre, sorri e suspirei. Duplamente aliviado.
Ah!, e acabei por não fazer aquilo que a minha mãezinha me ensinou que os meninos têm de fazer depois de fazer xi-xi. Também, por uma vez…

Só nesta Festa! Que não há Festa como esta!

Esta parece mesmo ficção...

Na sexta-feira da Festa do avante!, logo depois de almoço.
Com o cartão de serviço, entrei no recinto e conduzi o carro até à "Festa do Livro" para descarregar uns exemplares.
Estava nessa tarefa - atarefado - quando um homem que vinha subindo a larga avenida central, entre a azáfama dos últimos acabamentos, se me dirigiu.
"O senhor fazfavor..."
Pousei os livros que carregava no descarrego, olhei-o: idade acima da média, de fato e gravata, penteado abrilhantinado, um ar sub-urbano.
"Diga, diga" (estranhando aquele tratamento, ali...)
" Faz-me o favor de me dizer onde é que é a Festa do avante!?"
Olhei-o espantado. Seria um camarada a gozar comigo?
"Mas... ó homem, você está na Festa do avante!... é aqui."
"Ah, é? Pois... mas onde é que se pode dançar? Sabe?, dar assim uns passitos de dança..."
Que é que lhe havia de dizer? Perante o ar de quem espera mesmo resposta, cheio de seriedade e de boa fé, ainda lhe disse "ah!, isso só logo à noite... e tem de procurar...".
Agradeceu-me com uma mesura, e continuou a subir a avenida, logo ali a desembocar no "espaço internacional".
Antes de voltar a pegar nos livros por descarregar, demorei algum tempo a recuperar da surpresa.
Esta Festa!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Num mundo outro

Num mundo outro.
Melhor porque mais humano,
porque construído sobre trabalho e solidariedade.
Um mundo de gente,
diferente o mundo,
diferentes as gentes.
Por isso,
vi umas coisas que não queria ter visto.
Por isso,
ouvi umas coisas que não queria ter ouvido.
Por isso,
aconteceram umas coisas que, para mim, não deviam ter acontecido.
(... diferentes são as gentes!)
Mas o que vimos, ouvimos e aconteceu
foi a FESTA!
Porque a construímos
porque a fizemos,
porque a queremos nossa
e de todos,
e não deixaremos que a destruam!
E queremo-la assim,
nossa mas aberta,
aberta mas com gente dentro,
gentes diferentes mas gente.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

"Com uma imensa alegria"

Como todas as manhãs.

Como todas as manhãs, aqui me sento. Esperando o acordar da vida. E das memórias. Da lembrança do escrito de ontem. Irresistível. Sobre esta pedra–mãe. Vista do outro lado.
Mas é daqui, aqui sentado, que mais vezes a vejo. Tantas e tantas vezes – quase sempre… – sem a ver. Como se fizesse parte de mim. Do que fui. Do que sou.
Teve por companhia tábuas de solho, que com ela casavam, agora são quadrados de tijoleira que se ajustam aos seus irregulares contornos.

Sempre se saiu da Casa pisando esta pedra, soleira de todas as portas. No começo de tudo, com serventia para os currais e para o forno, com pés descalços afagando-a, fazendo-a assim, macia e acolhedora, ou com botas cardadas, agredindo-a sem que ela se queixasse. Agora, ali está, a ser Casa, no seu terceiro século. Vivendo connosco a nossa passagem por aqui.

Levanto os olhos.
É ao atirar a vista e o pensamento pelos verdes lá de fora que eles, os olhos e a memória vivida, se prendem a esta pedra.

Esta é a pedra, o assentamento de tudo que é esta Casa.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Esta é a pedra

Esta é a pedra!

Esta é a pedra-mãe desta Casa.
Sobre ela se construiu a Casa, e é o que resta do que foi a Casa. Como era.
Agora, nesta manhã, nela se espreguiça a sombra das ripas da janela, trazida pelo sol ainda nascente.

Por esta pedra, soleira de todas as portas, sempre se entrou para a Casa, sempre se saiu da Casa.
No começo de tudo, com serventia para os currais e para o forno, para se ir dar a comida ao gado, para fazer uma merendeira; para se sair a labutar na fazenda, enxada às costas, para a ela se regressar, corpo cansado, ao som das avé-marias.
Quanto pé descalço a pisou, a afeiçoou!
Teve por companhia tábuas de solho, que com ela se juntavam, agora são quadrados de tijoleira que se ajustam aos seus irregulares contornos.
A porta já não é a da fundação, de madeira robusta e gateira para os gatos virem caçar os ratos que abundavam; as paredes foram rebocadas e parecem, por isso, outra coisa que não o que foram.

Esta é a pedra! Não a bíblica mas o assentamento de tudo que é esta Casa. Aqui nasceu meu pai. Aqui, naturalmente, morro aos poucos, um dia de cada vez, vivendo a alegria de estar vivo e de saber porquê e porquê com quem.

Nesta pedra gosto de me sentar, a atirar a vista e o pensamento pelos verdes lá de fora e dos longes.
Desta Casa gosto de falar. E sou feliz por não ser só eu, e haver quem o faça de outra maneira, com outros olhos, com outro sentir igual ao meu. Com o igual sentir que há um encanto, uma magia, uma ternura. Um estar bem.

Esta é a pedra!