faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sábado, 8 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 4

Não só de antepassados são as memórias do antes passado por cada um de nós e que nos foi fazendo. Os amigos são parte importante dessa memória que nós somos. Os que escolhemos para nossos amigos e os que nos escolheram para amigos seus. Nem sempre haverá reciprocidade. Temos amigos porque lemos o que escreveram ou ouvimos o que disseram e que de nós nem sabem a existência. Mas este é um conceito largo de amizade. Porque os outros, aqueles de quem fomos amigos e nossos amigos foram, esses, esses sim, são a nossa memória antepassada.

O senhor José Gil foi um amigo. Era o ti’Zé Alfaiate, e sempre o vi como um irmão do meu pai que, como eu, era filho único. Esta tendência dos filhos únicos para arranjarem irmãos e, neste caso, tios por afinidade… de carências. Mas o carinho com que o meu pai falava dele era fraterno, e foi assim que o conheci e foi assim que nos fizemos amigos. Contava-me o meu pai que, num intervalo na sua vida, e antes de abalar para Lisboa, o ensinara a ler e a outros do seu tempo, e tinha por ele muita amizade.
Ele, a ti’Júlia, a Conceição, também a burrica com que ele brincava e nos levava ao mercado, às 5ªs feiras, puxando a pequena carroça, faziam parte da família.
Era um homem grande, bonacheirão, com um espírito de humor muito fino. Na fotografia para que olho vejo-o cansado, triste, diferente da imagem que guardo dele. Mas sei porquê aquela sombra que lhe fechava a cara que conheci risonha, estanhada, estuante de vida. Apostara muito no filho, também único, este começara por ultrapassar as promessas, cheio de iniciativa, empreendedor mas… depois descarrilou. Teria querido dar passos mais largos que as pernas lho permitiam e muito teve de se sacrificar o ti’Zé Alfaiate.
Adiante, embora não só de ditos e graças se façam as histórias ante(s)passadas.
Para o alpendre da casa lá em frente, no cimo, ia eu ver e desenhar os castelos de Ourém que, cá de baixo, da cova onde fica a nossa casa, não se vêem (único – e grande – defeito que lhe encontro).
Um dia, apanho este diálogo com a sua Júlia, que hoje penso que teria a direcção dos meus ouvidos:
“Ó mulher, muito rezas tu…”
“Cala-te, home, nã vês que tenho que rezar por mim e por ti…”
“Ah, mulher, nã te dê cuidados… e com tanto Padre Nosso e Avé Maria ainda me fazes salvar o céu lá p'ró outro lado.”

3 comentários:

Justine disse...

História deliciosa e muito bem contada. E esta não conhecia. Continua,que não vai haver neto que te resista!

Maria disse...

Reencontrei hoje amigos que não via há 7 anos. Foi como se tivessemos estado juntos no outros fim de semana. Nem sei bem porque estou a escrever isto aqui, quando devia comentar o teu post.
Talvez porque nos demos "aquele abraço" que esperou tanto tempo para ser dado....

GR disse...

A Maria tem razão! Os Amigos, mesmo não os vendo todos os dias quando os reencontramos, ficamos felizes. A sua presença é constante.

Nas tuas memórias de infância sinto a liberdade, a verdadeira amizade.
Escreves com tal realismo! vi a D. Júlia sentada e o enorme Ti Zé Alfaiate à sua frente, tendo o original dialogo.

GR