faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 20 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 11

Ele há o dia da mãe, ele há o dia do pai, ele há o dia dos namorados. Dias inventados para se forjarem ternuras, e se estimular a compra de prendas carregadas de simbolismo e, tantas vezes, de balofo. Compra de objectos (e alguns abjectos) inventados para o dia inventado. Irrita-me, barafusto, mas, às vezes, “vou na onda” da vaga consumista.
O dia da mulher e o dia do trabalhador são outra coisa. Não se faça confusões. Têm a ver com datas de luta pela dignificação do ser humano. São dias de homenagens concretas referidas a datas e a factos concretos. Que não se podem apagar no folclore dos “dias de” para que se ofereça uma prendinha, se faça um almoço ou jantar em restaurante à luz das velas, se mime um relacionamento que deveria ser de todos os dias.
Isto porquê? Porque hoje, a mexer em papéis (vejam lá…) me saltou uma foto da minha avó Damásia, já nestas estórias ante(s)passadas referida. Pois decidi: hoje é o dia da minha avó Damásia.

Esta a foto. A senhora nela (e tão bela) é a minha avó Damásia quando nova e ainda não avó, claro.
Lembro-a com uma enorme ternura. Guardo-a, dentro de mim, como a mulher idosa (ela, que morreu com menos anos do que os que eu tenho agora que a lembro…), ingénua, cheia de ternura, querendo sempre tudo e todos bem, e bem uns com os outros, colocando aí o seu aparentemente pequeníssimo peso na família. Guardo-a, dentro de mim, com a imagem da mulher e avó daqueles tempos. Decerto imagem distorcida, porque ela não teria sido como eu a guardo dentro de mim. Mas que importa. É a minha avó Damásia.
E lembro que, sendo eu o neto mais novo, tinha por mim um carinho especial. Ou eu assim o sentia.
Quando, em 1954, fracturei um menisco, na minha actividade desportiva, e ela soube que eu teria de ser operado, sofreu mais dores que tive no meu joelho. E começou a arranjar uns “trabalhinhos de mãos” (uns crochets, umas malhas, uns passajares), que preparava numa cestinha, para ir passar umas tardes de companhia ao neto no hospital.
Na véspera, ou no dia de eu ser internado, talvez com a excitação, caiu e partiu uma perna.
Estive poucos dias internado. Mas ia sabendo do seu desgosto por não estar acompanhando o netinho. E empreendendo nessa tragédia, que não sei bem se era a de eu estar numa cama de hospital, ou a de ela estar, engessada, noutra cama e não poder estar ali ao meu lado, com os seus “trabalhinhos de mãos”.
O que sei também, e guardado ficou bem dentro de mim, é que quando a voltei a ver, tão poucos dias depois…, era outra. A fractura da perna, e aquilo em que empreendeu, tinham-na feito “variar”, “perder o juízo”, como então se dizia. Talvez o ver-me de muletas também tenha contribuído. O certo é que poucos dias sobreviveu naquela cama em que a encontrei, tão minha avó Damásia e já tão outra.

3 comentários:

Maria disse...

A parte final da estória entristeceu-me.
A tua avó Damásia era bela, sim, vê-se na foto....

Justine disse...

A ternura por essa avó real/inventada está bem viva, e bem expressa no teu belo texto

GR disse...

Uma história cheia de ternura que comove.
Lindíssima era a tua doce avó.
Estou a ver a foto ampliada, a roupa, o cabelo, as feições.
Era mesmo muito linda!

GR