faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 6 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 2

De memórias nos fazemos. Do que os outros de antes de nós e a nós iguais, viveram e nos transmitiram. E de tantos deles memória se perde. Perdemo-los. Perdemo-nos. Filhos somos, filhos temos, netos nos darão (ou não). Histórias ante(s)passadas reforçam e compensam elos fracos.
Sinto necessidade de contar algumas dessas histórias. Para que comigo não acabem restos da vida daqueles a quem tanto devo do que sou, que me fizeram o que vou sendo.

A minha avó Maria José (Félix ou Feles), mãe do meu pai, foi senhora de “cabelo na venta” e ainda hoje há quem diga – por palavra passada de geração em geração – que não era lá muito boa vizinha. Enviuvou nova, antes dos 40, com um único filho, e foi remendando a sua vida. O filho não lhe terá dado trabalhos. Foi para a “aldeia”, como marçano, e depressa se fez independente. Ela amanhava as fazendas e criava algum gadozito.
O meu pai abalou para Lisboa mas ajudava, e não esquecia o Zambujal, embora as viagens fossem difíceis e, por isso, raras. Até porque o primeiro carrito – BI-13-25, um Austin 8 CV – só o teve já depois dela ter morrido.
Para mim, era a “avó da cabra”, porque tinha uma cabrita que saltitava pelo pátio, e cada visita era a descoberta de mundos novos.
Às tantas, as raras visitas ficaram mais raras, e convivi com o desgosto grande do meu pai com o difícil envelhecimento de sua mãe e minha avó. O “cabelo na venta” crescera e encaracolara. Em cada vinda havia cenas a juntar ao desconforto de uma casa que envelhecia com a sua habitante. Meu pai, lembro-me bem, abriu contas em lojas da vila, que de amigos eram – o Zé Dias para os víveres, e o Zico para as roupas, por exemplo –, onde ela se podia fornecer do que quisesse, mas chegou a andar pelo mercado, à 5ª feira, a pedir esmola e a dizer que o filho, lá para Lisboa, a esquecera e que era um valdevinos. Vi o meu pai sofrer.
Até que decidiu levá-la para Lisboa. O que ela não queria, e a que resistiu. Mas teve de ser. Quase à força.
Então, na Rua do Sol ao Rato, no pequeno quintal das traseiras, a minha avó todos os dias dava um pequeno espectáculo. Não se servia da casa de banho, e insistia em fazer as suas necessidades no quintal, tal como se estivesse no Zambujal e fosse ao campo. As vizinhas assistiam, das janelas e varandas como se de frisas ou camarotes, àquele cena diária. E galhofavam. Foi duro, senti algo parecido com vergonha, mas hoje faz-me sorrir.
Para a minha “avó da cabra” aquelas coisas de sanitas e bidés eram mesmo de gente sem tino.

3 comentários:

Maria disse...

Eu percebo-te quando dizes que sentias assim algo paecido com vergonha...
... mas a tua avó era uma delícia...
Fico à espera do próximo capítulo sobra a casa da Rua do Sol ao Rato :))))))

Justine disse...

"Estória"simultaneamente conhecida e nova, porque está sempre viva no modo como a contas

GR disse...

Uma avó que aprendeu a viver sozinha, com um filho. Deve ter sido muito duro.
Porém, criou e faz dele um bom homem.
Deve ter sido difícil trocar a tranquilidade do Zambujal, pela grande cidade!
Eu (hoje) não o fazia!

GR