faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 4

O Toino andaria pelos treze/quatorze anos (sabia lá ele…), o seu corpo parecia precocemente formado e calejado, a voz rouquejava, era o adulto em idade de criança, o homem que não tivera a infância que ainda estava em idade de viver. Lembrava‑me os Esteiros, do Soeiro Pereira Gomes, e o Gineto. Falei‑lhe do livro, fui buscá‑lo à estante porque é dos que estão sempre à mão, sugeri que o lesse. Não se fez rogado, disse que até gostava de ler e acrescentou, com convicção, que não queria esquecer-se de ler. Achei piada à observação.

Assim se entretecia uma amizade que me dava alguma satisfação, em encontros de fim-de-semana, de quinze em quinze dias, três em três semanas, que, além do mais, me ajudavam a pensar que não perdia o pé, que mantinha contacto com realidades fundas da sociedade portuguesa. Pelo que mais me irritava o olhar de través com que familiares e amigos avaliavam o meu relacionamento amigável com o Toino, as crescentes reservas ao comportamento do puto, os avisos e os conselhos que me davam repetidamente. Que não lhe desse confiança...

Até o responsabilizavam, sem quaisquer provas, pelo desaparecimento de rádios de carros na vizinhança, que tinha sido mais uma desgraçada imitação do que acontecia pelas cidades.

E como tinha havido esses e outros roubos onde nunca tal acontecera antes, sem se ter descoberto o ladrão, tinha de ser o Toino.

Ele fazia de conta que não ligava, mas eu sabia que não lhe era indiferente toda aquela má fama. Reagia à sua maneira, com tendência para se fechar e isolar. Mais de uma vez tive de o convencer que não desconfiava dele, que "não me incomodava nada", que podia vir sempre que quisesse, que não se preocupasse com más caras e "maus olhados" e, também, que ele não devia responder na mesma moeda.

O certo é que bem me aconselhavam. Eu não queria era crer, teimoso como sou e como diz e me avisa quem meu amigo é...

Quando se aproximou o verão, as “vindas à terra” passaram a ser mais frequentes, e todas as coisas começaram a tomar um outro aspecto, como é próprio das mudanças de estação.

Resolvera investir umas poupanças na construção de uma piscina. Não era bem o mesmo que enterrar o antigo tanque da velha propriedade, do quintal, como eu gostava de dizer desvalorizando a iniciativa.
E a novidade despertava curiosidade. Era natural, não havia outra piscina uns bons quilómetros em redor.

O dito verão aproximou‑se quente. O que veio aumentar a expectativa e o interesse pela piscina. O Toino tinha acompanhado a construção da estrutura de betão, o revestimento a pequenos azulejos. Tinha sido contratado pelo empreiteiro para dar serventia, e várias vezes o vi em funções, questionando-me e questionando eu sobre trabalho infantil. Sem êxito. Até porque o próprio Toino dizia que precisava de trabalhar ("p'ra mim e p'rós meus irmãos mais novos"), afirmava que estava a fazer aquele trabalho de vontade, e também com muito gosto... por ser para mim.

O Zé aparecia umas tardes por outras, mesmo já no fim dos dias, não para dar qualquer ajuda mas para levar com ele o Toino, e vislumbrava neste alguma tensão, algum constrangimento, tão fora do seu comportamento habitual.

5 comentários:

GR disse...

Os amigos escolhem-se a família é-nos imposta!
Espero que a Toino, não venha a ser uma decepção.
Contudo, temos que reconhecer há erros que se praticam, sem avaliar a afectividade que na realidade há pelo “outro”, perdendo-se assim, amigos sinceros.
Gostei muito da troca de livros. Os Esteiros, que melhor livro se podia escolher para o Toino? Belíssimo livro, também fala das relações humanas, entre as crianças mais desfavorecidas, o trabalho infantil, a amizade, a lealdade.
Este conto é, fascinante!

GR

GR disse...

Ops!
Pensava que já estava publicada a folha 5!
Vou dar mais uma voltinha, fazer uma visitas.

bjs,

GR

Sérgio Ribeiro disse...

Vai já. Vai já.
Já está!
Obrigado, amiga.

Maria disse...

Até parece que já vivi, eu própria, isto.....
Continuo a preferir o Toino, vá lá saber-se porquê...

Maria disse...

"...que não queria esquecer-se de ler."...
Esta frase quer dizer tanto...
"...sem se ter descoberto o ladrão, tinha de ser o Toino."...
Quantas vezes, quantas, isto é, ainda hoje, aplicado, só porque o Toino era mais desfavorecido que o Zé.....