faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 5

O grande dia da inauguração da piscina chegou. Com o calor a ajudar à expectativa que transbordava da nossa casa.

Nos primeiros dias das "férias grandes" (era assim que se dizia quando eu e outros como eu andavam pelas escolas como estudantes), encheu-se a piscina com a água do poço, ainda a abundar com os restos do inverno chuvoso, puseram-se as máquinas a trabalhar, meteram-se os produtos todos, mediu-se o PH.

Foi marcado o dia da grande inauguração. Toda a gente me ajudou, mas talvez o mais entusiasmado de todos fosse o Toino.

E então não havia de o convidar para o primeiro mergulho!? Mas foi um escândalo! Pois se até piolhos vieram à baila da indignação, e houve mesmo quem já os visse a virem... à tona da água.

Tive de organizar duas cerimónias. Uma pré-inauguração, para o "proletariado", convidando quem trabalhara operariamente na construção do "monumento", e uma inauguração formal, para o "corpo diplomático" credenciado, composto pela família e os amigos mais chegados, depois de reforçado o cloro e feita uma re-avaliação dos níveis sanitários.

Na pré-inauguração participaram o empreiteiro, que era um vizinho, um seu operário, outro vizinho, e o Toino, claro, além deste que reporta os eventos. Foi mergulhar, foi brincar, foi um tempo bem passado na manhã ainda não muito quente. "Actuámos" como os "faz-tudo" antes dos números nobres do circo.

Aliás, alguma família e alguns amigos, que tinham chegado na véspera e arrumado os carros no "novo parque de estacionamento" à beira da piscina, ainda vieram observar as últimas habilidades dos protagonistas da pré-inauguração. E até foi bom ver como a alegria do Toino era contagiante e fazia esquecer momentaneamente reservas acumuladas.
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Foi assim que a piscina começou a fazer parte do nosso ambiente. Natural e social. Como novidade que era, começaram a não faltar "clientes".

Por vezes, nos momentos mais inoportunos. Como é que havia gente - e eram, sobretudo, os que vinham à terra em férias ou "vacanças" - que pedia para usar a piscina quando nela estávamos, em convívio, familiares e amigos? Como é que não viam que, assim, só pelo pedido, invadiam uma privacidade? Algumas recusas tive de dar, com dobrada irritação, pelo pedido e pela resposta a que o pedido me obrigava.

Mas o facto é que quem não tem cão caça com gato ou, transposto para esta situação, quem não piscina autorizadamente de dia, piscina clandestinamente à noite. Porque as noites estavam mesmo a pedir banho e, se não faltavam sinais, não faltavam inspectores (eu também, porque gosto de saber com quem convizinho...), e não faltava também quem descobrisse ou inventasse, nos sinais, o sinal do Toino.

O que era inegável era que, durante a noite, lá pela madrugada, havia quem saltasse o pequeno muro, se esgueirasse por entre os carros estacionados e se refrescasse com uns mergulhitos mais ou menos silenciosos para não acordar os da casa. E tinha de ser o Toino, claro..., a arcar com as culpas todas.

Um dia, chamei-o e quis explicações. Era ou não verdade que ele vinha tomar a sua banhoca pela calada da madrugada? Não negou. Falou, até, da casa apertada, da cama estreita onde dormia com um irmão mais novo e muito mexido, da irresistível atracção por um bom mergulho. Quase me zanguei. Perguntei-lhe se o fazia sozinho. Disse que não, mas quando lhe perguntei quem eram os outros, olhou para mim tão reprovador que a situação se inverteu. Ele nunca denunciaria quem o acompanhava nas suas excursões nocturnas, ou outros que soubesse que o faziam noutras ocasiões.

Recuperei o equilíbrio, voltei à “mó de cima”, e avancei com a lição de moral. Falei da confiança que tinha nele, disse-lhe que não era só o abuso mas também o perigo. Alguns dos seus companheiros podiam não saber nadar tão bem como ele. Podia até haver algum com o seu copito. Tudo aquilo podia dar num grande sarilho. Quis que ele me prometesse que não se repetiria.

Ouviu-me, atento, olhos nos olhos... e não prometeu nada. "O' sôtor, com estas noites, com este calor, a gente sem ser capaz de dormir, até era pecado... mas juro que vou ter mais cuidado. E se me apanhar, dê-me um cachação... mas lá prometer não prometo!".

Dei-lhe logo um (pequeno) cachação de adiantamento, e não fui capaz de deixar de sorrir. O puto tinha estaleca. Estava provado.

Quando me perguntaram pelos resultados da conversa, se ele confirmara as suas inaceitáveis invasões do nosso território aquático, respondi com evasivas. Evasivas que o Toino não merecia... Para arrumar a questão disse também que "estava tudo sob controlo"… sob o controlo dele, Toino, claro (o que eu não disse, como é dispensável acrescentar).

2 comentários:

GR disse...

Um texto delicioso!
E como tudo é visto num contexto político, este dava pano para (grandes) mangas.
Fico dividida e até desconsertada. Então não é que fico a pertencer ao grupo que reprimia a felicidade do Toino? Ou então teria que fazer (sempre) uma desinfecção.
Piolhos, falta de banho diário, inspecção aos pés! Uf!
Claro que ele não deixaria de chapinar na piscina, teria que ser feito um minucioso exame higiénico. Não que eu não seja proletária como o Toino! …fiquei com um problema de consciência!
Que lata tinham os vizinhos de quererem usufruir de uma piscina privada!!!
O Toino não só é honesto, como também leal.
O personagem do “Amigão” é muito doce e solidária.
É para já uma história de afectos, de palavras e amizade!
Estou a adorar ler esta história que não é uma qualquer estória!

GR

Maria disse...

A primeira frase desta página "sacou-me um sorriso"... O Toino, pois claro, eventualmente com piolhos e tudo.... tinha que estar lá...

Não acredito que lhe tenhas dado o tal "cachação"....
Amanhã logo que acordar prometo ler o resto.....