faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Intervalo (nas ficções) com extractos de um quase-diário

27.09.2007

(…)

Já que me contei a estória do almoço com o senhorio João, vou publicá-la no ficções do cordel.
Depois do “a falta que me fazem aqueles 50 paus”, da estória recebida do/dedicada ao Eduardo.
E começarei por alterar a cronologia.
Começarei por aqui.
Por esta decisão.
E só depois entrarei na “ordem”… cronológica.

(…)

25.09.2007

(…)

E dei um salto ao senhor Juan Ribeiro Allen, o melhor senhorio de Lisboa!
Não foi um almoço, foi uma festa!
Amanhã, conto… se contar.

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(…)

26.09.2007

(…)

O almoço… pois… o almoço de ontem com o sr. Juan Ribeiro Allen… conto, não conto?..., acho que vale a pena contar assim a modos de “ainda dizem que não há almoços grátis”.
O sr. João (assim é mais fácil em vez do dito sr. Juan Ribeiro Allen) é o proprietário de uma tasca tasca na Rua dos Remolares, ali ao Cais do Sodré, e há 30 anos, mais precisamente há 29 anos, comprou os prédios que recebi por herança do meu pai e vendi, por tuta-e-meia, para pagar as dívidas que recebi por herança do meu pai (deve ter ficado ela por ela…) e me demitir das funções de senhorio, de que não queria tomar posse.
Desta operação patrimonial/financeira resultou o ter ficado a minha mãe como locatária, isto é, inquilina, do rés-do-chão direito onde ela vivia desde 1939, e eu desde esse ano até me fazer a outras residências… mas sempre com porto de retorno ali ou por ali.
E fui pagando a pequena renda, sabendo das visitas simpáticas a minha mãe do sr. João, ou do senhorio João (fica assim), sempre parecendo quase envergonhado por estar a receber rendas da velha senhora (e ex-senhoria, diga-se de passagem, que aquele património vinha da ascendência materna).
Até à minha ida para as "Europas", tudo corria bem, tirando o envelhecimento da casa (e não só!), as obras a fazer por fazer, ou feitas com grande atraso.
Ora essa ida (com idas e vindas semanais) mudou muita coisa nos meus já deficientes procedimentos administrativos.
O que sei, ou do que me lembro, é que, a partir aí de metade dessa estadia de ida e volta, atrasos na recepção do correio e outras contingências, começaram a engulhar os pagamentos da renda ao senhorio João.
Sem intenção…
E usei o expediente da transferência bancária, que faz com que a gente nem note que está a pagar coisas e mais coisas num sem fim de coisas.
As coisas, estas das rendas, pareciam nos carris, mas num Janeiro qualquer veio a indicação da correcção indexada da renda, que eu deveria comunicar ao banco, meteram-se outras coisas – elas são tantas… – e esta ficou por fazer.
O que sei, mas não bem ao certo, é que, a partir de nem sei quando – mais uma coisa que não sei… –, comecei a sentir que estava em falta com o senhorio João.
Entretanto, sabia, por portas travessas, que o senhorio João parecia ter a intenção de não levantar qualquer questão enquanto a minha mãe fosse viva.
Entretanto, a inexorável roda do tempo rodou – assim é que se escreve! –, a minha mãe veio da sua Rua do Sol ao Rato para o Vilar dos Prazeres em trânsito tranquilo, sereno, acompanhado, para o cemitério da Atouguia, e o caso do senhorio João foi sendo esquecido ou tirado das coisas a ter de lembrar.
Com a morte da minha mãe, aos 96 anos!, o caso da casa da rua do sol tornou-se caso que não podia ser mais adiado.
A Zé meteu-se no caso da casa e, no meio das muitas coisas que tenho para resolver, resolveu ela resolver esta.
Tirou-se de lá o que havia a tirar (toneladas de papéis), deitou-se fora muita coisa (toneladas de papéis), fez-se uma limpeza à casa, que ficou em condições – mais ou menos – de ser entregue a quem de direito (e euros) senhorio é.
Entretanto, e tantos entretantos há, passaram dias, talvez semanas e meses, e, pelas mesmas portas travessas, é-me dito que o senhorio João tinha andado lá pelo prédio que é dele, a dizer que ia fazer obras e que queria falar comigo para se resolver o caso da casa.
Fui à agenda antiga, tentei telefonar para os números que lá tinha, e nenhum deles respondia.
Entretanto – mais um – renovavam-se recados de que o senhorio João queria falar comigo e de que estaria ligeiramente aborrecido por eu não o contactar.
O que não era verdade… nas minhas intenções.
Em resumo, depois de muitas tentativas, lá o apanhei e, muito simpaticamente esclarecida a dificuldade de contactos com as férias (dele) na Galiza, em Pontevedra e outras deslocações galegas, marcámos um encontro, para ontem, na Adega dos Canários,
E foi a essa que fui ontem e aconteceu o que conto hoje.
Convidei o R. a vir comigo, não porque precisasse de guarda-costas ou testemunhas, mas porque ele estava com vontade de almoçar comigo no intervalo da audição da Conferência, e assim se conciliava tudo.
Confesso, de novo, que ia um tanto ou quanto Egas Moniz com o baraço ao pescoço, embora a recepção telefónica tivesse sido animadora relativamente ao ambiente.
Bom, fui recebido simpaticamente, e senti ter tido um excelente impacto a minha disposição de almoçar naquela tasca tasca, onde o senhorio João, fluente no galaico-português, de avental aos quadrados, também serve à mesa, com a equipa familiar a trabalhar e uma caboverdeana na cozinha e para o que for preciso.
Fez questão em nos apresentar os petiscos da casa, que ele-próprio nos serviu abundantemente, e mais abundantemente nos ia trocando os copos vazios pelos copos cheios de tinto que trazia para mesa.
Sobre o caso da casa… nada, e quando eu interrompia aquele vai-vem dizendo “senhor João temos de falar…”, ele passava “señor Riveiro, tenemos tiempo, bamos tomar um cafécito despois… gosta destas bifanas?”
E foram as bifanas, depois da sopa suculenta, e dos filetes de bacalhau, e ainda veio a carne assada e o presunto (em vez da fruta), e – sempre – os copos cheios de tinto.
Até que chegou a hora de eu pedir a conta, e de ter tido uma resposta meio risonha meio indignada “non paga nada!”, e eu a protestar sem qualquer força ou eficácia e a concluir “então vamos ao cafécito (que nunca tomo mas desta vez tomei), que ao menos esse pago eu”
Mas não paguei nada, que ele não deixou.
Ou então foi o dono do café em frente que não quis receber, depois de termos conversado animadamente sobre as belezas e o palhete de Ourém e as memórias que tenho da Casa de Arcos de Valdevez, de onde é este outro proprietário, não de tasca tasca mas de tasca café.
Finalmente, consegui chegar ao ponto da ordem de trabalhos, o caso da casa.
Que o senhorio João rapidamente esgotou com uma pergunta: “O señor Riveiro quier la casa? se não la quier, me dê la xabe...”.
“’tá bem”, disse eu, “mas temos contas para fazer, devo-lhe rendas e vai haver despesas com tirar restos de coisas que ainda lá estão e limpeza…”.
“Quier ainda alguma coisa de lá?... se não quier, está tudo certo, não hay más contas para hacer.” e, perante a minha estupefacta satisfação e protesto, “volte sempre e traga a sua senhora".
E assim foi.

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Despi a túnica, guardei o baraço, metemo-nos num táxi e voltámos ao Hotel Roma para continuar na audição.
Táxi que o R. fez questão de pagar, verdadeiramente satisfeito com o que tinha partilhado comigo e ligeiramente eufórico (ligeiramente eufóricos estávamos os dois, mas só ligeiramente e em recuperação rápida porque havia trabalho, depois de tantos copos de tinto e apesar de termos recusado os amigável e insistentemente oferecidos bagacitos...).
Saiu-me barata a festa, quer dizer, o almoço... e tudo o resto.

3 comentários:

Maria disse...

Xente boa, esse galego da tasca tasca...
Gostei de te ler, mais uma vez.

Bom trabalho na Conferência
Abreijo

GR disse...

O senhor João foi um homem muito hospitaleiro, prático e honesto!
Rapidamente tudo foi resolvido.
Deve ter sido um almoço muito interessante, muito rico em palavras.

GR

Anónimo disse...

Ainda hoje fico eufórico ao recordar-me desta história de Lisboa...
Um destes dias deixo o refeitório de S. Bento e regresso ao Cais do Sodré...
R.
Ricardo