faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Amor de uma noite

Tinha sido muito desagradável a conversa. Tensa e triste. O desencontro era evidente e irreparável.
Ele não abdicava da luta e dos seus riscos, ela (“não te chegou?”) não aguentava mais, e ia-se embora (“não vou voltar a sofrer o que me fizeste sofrer!”). Triste. Se quiseres, quando quiseres… sabes onde me encontrar, e como recomeçarmos”. Da irritação, das vozes em falsete, tinham passado à tristeza. Ainda afloraram um beijo.
Ele ficou na casa vazia. Vazio. Sem pensar. Deixando correr o tempo. Que somou horas.
Depois, sacudiu o torpor e saiu. Andou pelas ruas da noite até se ver a entrar num antigo poiso, o Ritz Clube. Subiu as escadas automatamente, sentou-se a uma mesa a beber uma cerveja, alheio ao que e a quem o rodeava. Assistiu, como se estivesse, sonâmbulo, num passado de há alguns anos, ao “strip-tease” feito pela mesma mulher, ainda mais envelhecida, que terminava o seu número com um archote a chamuscar-lhe os poucos pêlos ainda não queimados.
Saiu tal como entrara. Meteu-se num táxi que o levou a casa. À porta de casa. Hesitou. Voltar ao quarto agora vazio?
Ao ver o carro estacionado, resolveu adiar aquele regresso. Deu umas voltas e, com alguma surpresa, viu-se a passar à porta do Ritz e, logo logo ali, um lugar para estacionar.
Subiu, de novo, as escadas que quase todas e todos desciam. Chegou-se ao bar, pediu uma cerveja, e voltou-se para a sala fincando os cotovelos no balcão.
Uma mulher levantou-se da mesa onde estava, sozinha, num espaço a esvaziar-se, e aproximou-se. Estendeu-lhe a mão e pediu ajuda para subir para o banco alto. “Obrigada… tinha o pressentimento que ias voltar. Até recusei alguns clientes à tua espera…”. “… à minha espera?!”. “Sim. Há pouco, aí há uma hora, vi-te tão triste, tão desamparado, que decidi, sei lá porquê…, que a noite seria contigo. Queres vir?”. "Mas… onde?”. “Anda!”.
Foram. Para o quarto alugado onde ela vivia. Na Rua do Passadiço e onde (sublinhou!) não levava “clientes”.
Fizeram amor com “carácter de urgência. Conversaram sobre as vidas até o sono a vencer.
Já manhã adiantada, ele despediu-se dela com um beijo que não a acordou, e foi trabalhar.
Foi há tantos anos (décadas!) e nunca esqueceu aquela noite. E aquela mulher. Que nunca mais viu (ou com quem se teria cruzado na rua sem a ver), de quem nem sabia o nome a não ser este: mulher.

Esta estória é, toda ela, ficção (e do cordel). Toda… menos o Ritz, menos o espectáculo de “strip-tease”, menos a mulher, menos a Rua do Passadiço, menos (quase) tudo.

3 comentários:

Maria disse...

E menos o sorriso que me sacaste pelo último parágrafo...
Lembrei-me da "inenção do amor", de Daniel Filipe, em que se "inventava o amor com carácter de urgência"...

Gostei de toda a ficção deste post...
:)))

Obrigada, por tudo!
Abreijos

Sérgio Ribeiro disse...

Obrigado, Maria.
Gostei (e precisei) de contar esta estória. Às vezes acontece assim: estou a pensar numa coisa qualquer - na crise ou nos BRIC - e salta-me uma "coisa para contar".
E o "amor com carácter de urgência" foi retirado das recordações outras do Daniel Filipe de quem fui companheiro de trabalho, e de quem guardo excelentes recordações. Queres vre-me - rapadinho - a receber uma taça por ser o capitão da equipa dos solteiros da Siderurgia Nacional? Próximo post...

Justine disse...

Muito bem contada a tua história de uma noite!Ah, desculpa, tua não, a do narrador, já que é ficção:))