faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O PUTO REGUILA - 2

O que não foi possível foi que o Toino continuasse a estudar. Nem sequer ao menos os anos que os governos iam decretando como escolaridade mínima obrigatória. Podiam lá os pais mandá‑lo todos os dias para a vila, fazer o 5° e o 6°, o ciclo, e o que viesse mais se disso se lembrassem os políticos...

Não era só a questão dos transportes, porque isso a "sôra câmara" tinha a obrigação de assegurar, e parece que lá o ia fazendo a buscar e levar os miúdos ao redor da vila. Era, sobretudo, o facto daquela boca a sustentar ter de ser ela própria a contribuir para que sustentada fosse.

Foi fácil ver de que o Toino ficou mesmo com pena. Não que ele o tivesse mostrado ou confessado, claro. Que ele não era desses de se lamentar, de andar com queixinhas.

Mas, quem o olhasse com olhos de gente que vê os outros, descobriria sem dificuldade que o puto engolira mais um sofrimento na sua vida que parecia ter mascido para isso.

Não fugi a perguntar‑lhe. De forma indirecta, do género "tu gostas de aprender coisas, não gostas?", "então... lá se acabou a escola... e agora como é?".

Respondeu‑me ‑ é como quem diz...‑ com um sorriso triste e um encolher de ombros. Via‑se mesmo que não era assunto sobre que quisesse conversar.

Fiquei também triste. Triste por não ter uma mina de ouro no fundo do quintal, ou umas confortáveis contas a prazo a renderem juros minorcas que melhor serviriam para ajudar o Toino. Triste por ver aquele puto ficar pelo caminho, ou, para se ser mais preciso, brutalmente afastado do caminho que, para outros - os meninos… -, era atapetado de facilidades.

Sobre esse assunto não conversámos porque não havia grandes coisas para conversar. Na opinião dele, claro.

Mas sobre outras coisas lá iamos tendo as nossas conversas. Ele contava‑me dos biscates que ia arranjando, uma serventia de pedreiro aqui, uns recados acolá, umas ajudas no café/tasca nos dias de maior aperto. Fazia pela vida dele. E, se calhar, ainda sobrava alguma coisa para ajudar à vida dos pais e do rancho de irmãos e irmãs.

Em contrapartida, eu contava‑lhe coisas da minha vida. Das viagens, de terras e gentes que ele nem sonhava antes de eu lhe contar que existiam, assim, reais, onde se ia e onde se vivia. Apesar da escola, do bom trabalho das professoras, dos mapas-mundi nas paredes húmidas da escola.

Um dia, mostrei‑lhe um calendário, daqueles pequenos, tipo auto‑colante, que me fora enviado pelos serviços de turismo de um qualquer país longínquo. O Toino ficou entusiasmado. Sem que ele mo pedisse, porque não era do género de pedir coisas, dei‑lho. Os olhos riram‑se‑lhe, meteu‑o dentro da camisa e abalou com um obrigado em surdina mas bem lá de dentro dele.

Assim se criou uma espécie de costume. Ele começou a fazer colecção de calendários com motivos vários, e eu passei a ser o seu fornecedor.

Nalguns casos, acompanhado o fornecimento por pequenas conversas sobre os motivos escolhidos para nos informarem, ou influenciarem, no verso, a pretexto de, no reverso, nos fazerem a oferta de um pequeno rectângulo de cartolina com a organização dos dias do ano que está para chegar ou que começou há pouco.

Vá lá saber‑se ao certo porquê, aquela amizade incomodava os meus próximos. Mesmo os mais tolerantes, os que poderiam, pensava eu, melhor entender o Toino.

Mas não. Que o miúdo tinha mau aspecto, apesar de ser naturalmente forte e escorreito, apesar da sua, porque não dizê-lo?, beleza. Que a roupa nunca estava asseada, até nem cheirava lá muito bem…, que o cabelo parecia que nunca vira pente e champô não conhecia. Que não era de confiar nele, que eu ouvisse o que corria sobre as suas façanhas pela aldeia e arredores. Que, sobretudo, era malcriado.

Dar as salvações dava, não se podia dizer que não desse os bons dias e as boas tardes, mas era com umas maneiras entre o sobranceiro e o tímido (isto do tímido dizia eu…, seu oficioso advogado de defesa). Achavam-no pouco... polido. Lá isso não era. Como acontece com os diamantes em bruto.

3 comentários:

GR disse...

É triste esta história!
A rebeldia e traquinice escondem a revolta, por não terem as mesmas oportunidades de tantas outras crianças.
São crianças que nascem com um menos! Menos amor, menos compreensão, menos dinheiro.
Têm uma grande capacidade de sofrerem caladas. Quantas destas crianças quando adultas se tornam duras, frias. Sabem amar! Contudo, jamais saberão demonstrar!

GR

Anónimo disse...

Talvez não, talvez não. Talvez o saibam demonstrar, se a ocasião se proporcionar.

Maria disse...

Continuo a gostar do Toino.
Não sei porquê, acho que me vai surpreender...
Há um Vasco, no Porto, hoje engenheiro, com vinte e poucos anos, que faz colecção de.... calendários...
... e eu a mandá-los daqui para lá, durante anos e anos....