O Eduardo respirou fundo, guardou o lenço, e recomeçou.
Primeiro com alguma insegurança, depois como quem desfia um conto.
Quando ele fizera a quarta classe, já lá iam uns bons trinta, quase quarenta anos, e tivera distinção, a família resolvera fazer-lhe uma festa.
A mãe fez-lhe um almoço de sopa de camarão e lulas recheadas, que eram os seus pratos preferidos, e ainda preparou o melhor arroz doce que alguma vez tinha comido ou viria a comer – e se a senhora tinha fama de fazer bom arroz doce… –, o pai ofereceu-lhe uma caneta e fez uma espécie de discurso solene, apelando à responsabilidade de quem iria, agora, decidir qual seria a sua vida, toda a gente quis mostrar quanto aquele exame, e aquela distinção, era importante, não só para ele, mas para cada um e para todos.
Só o avô se mantivera calado.
Ao almoço e toda a tarde, estivera observando, sorrindo, não fazendo comentários, embora se visse que não estava de acordo com tudo o que ia sendo dito, nem com todas a coisas que iam sendo feitas.
Quase ao chegar da noite, acalmada a euforia pelos “belos resultados do menino” – como começou a dizer quando chamou o Eduardo à parte –, o avô provocou uma conversa séria com o miúdo que era o Eduardo, uma conversa “de homem para homem”.
Procurando corrigir alguns dos erros e excessos que, a seu juízo, se tinham ditos e cometido, quis explicar ao Eduardo que o que ele fizera fora bonito mas que não fora nada de assim tão excepcional e merecedor de tanta festa e de tantos elogios.
Aliás, sublinhara-lhe que esses bons resultados escolares eram mérito seu, mas deviam-se, também e talvez ainda mais, ao ambiente familiar, a ajudas dos pais – a mãe até era professora primária… –, a ter livros e hábitos de leitura na sua vida. O que, lembrava-lhe, não era o caso da maioria dos seus colegas, pelo que os meninos que, sem as ajudas que ele tivera, tinham tido tão bons resultados como os seus, também mereceriam a festa e as prendas que ele tinha tido, mas que as famílias não lhes teriam podido dar.
O Eduardo ouviu, atento, aquelas falas do avô, reviu o que sabia dos colegas de que lhe falara sem que os conhecesse como ele próprio os conhecia, e tomou consciência – sabia-o hoje – de que o avô tinha razão.
De qualquer modo, o avô acrescentara que estava muito contente com ele, que os resultados que obtivera, e a maneira como o via crescer, como o sentia estar a tornar-se um homem, lhe davam uma grande alegria.
E acrescentara, ainda, a jeito de esclarecimento e complemento, umas palavras que o Eduardo nunca mais esqueceria e recordou para os amigos:
“Olha, rapaz – vou passar a chamar rapaz ao meu menino que foste até agora –, estou muito contente porque passaste um exame para homem. Vais no caminho para lá chegar.
Ora uma das coisas que um homem deve ter é alguma independência económica, poder escolher sem que sejam os outros a escolher por ele. A partir de hoje vou dar-te, todos os meses, 50 escudos para tu gastares como quiseres. É uma mesada. Talvez daqui a uns anitos passe a semanada… É um salário! Gasta esses 50 paus como quiseres, e não sintas obrigação de prestar contas de como os gastaste a quem quer que seja… a não ser a ti próprio!”
Disfarçando a emoção, metera-lhe na mão um envelope com o nome dele manuscrito, e com uma nota de 50 escudos dentro, dera-lhe um cachação e dissera-lhe para ir ter com os outros que, distraídos, nem teriam dado por aquela fuga de avô e neto ao convívio familiar.
50 escudos! Uma fortuna naquele tempo.
Primeiro com alguma insegurança, depois como quem desfia um conto.
Quando ele fizera a quarta classe, já lá iam uns bons trinta, quase quarenta anos, e tivera distinção, a família resolvera fazer-lhe uma festa.
A mãe fez-lhe um almoço de sopa de camarão e lulas recheadas, que eram os seus pratos preferidos, e ainda preparou o melhor arroz doce que alguma vez tinha comido ou viria a comer – e se a senhora tinha fama de fazer bom arroz doce… –, o pai ofereceu-lhe uma caneta e fez uma espécie de discurso solene, apelando à responsabilidade de quem iria, agora, decidir qual seria a sua vida, toda a gente quis mostrar quanto aquele exame, e aquela distinção, era importante, não só para ele, mas para cada um e para todos.
Só o avô se mantivera calado.
Ao almoço e toda a tarde, estivera observando, sorrindo, não fazendo comentários, embora se visse que não estava de acordo com tudo o que ia sendo dito, nem com todas a coisas que iam sendo feitas.
Quase ao chegar da noite, acalmada a euforia pelos “belos resultados do menino” – como começou a dizer quando chamou o Eduardo à parte –, o avô provocou uma conversa séria com o miúdo que era o Eduardo, uma conversa “de homem para homem”.
Procurando corrigir alguns dos erros e excessos que, a seu juízo, se tinham ditos e cometido, quis explicar ao Eduardo que o que ele fizera fora bonito mas que não fora nada de assim tão excepcional e merecedor de tanta festa e de tantos elogios.
Aliás, sublinhara-lhe que esses bons resultados escolares eram mérito seu, mas deviam-se, também e talvez ainda mais, ao ambiente familiar, a ajudas dos pais – a mãe até era professora primária… –, a ter livros e hábitos de leitura na sua vida. O que, lembrava-lhe, não era o caso da maioria dos seus colegas, pelo que os meninos que, sem as ajudas que ele tivera, tinham tido tão bons resultados como os seus, também mereceriam a festa e as prendas que ele tinha tido, mas que as famílias não lhes teriam podido dar.
O Eduardo ouviu, atento, aquelas falas do avô, reviu o que sabia dos colegas de que lhe falara sem que os conhecesse como ele próprio os conhecia, e tomou consciência – sabia-o hoje – de que o avô tinha razão.
De qualquer modo, o avô acrescentara que estava muito contente com ele, que os resultados que obtivera, e a maneira como o via crescer, como o sentia estar a tornar-se um homem, lhe davam uma grande alegria.
E acrescentara, ainda, a jeito de esclarecimento e complemento, umas palavras que o Eduardo nunca mais esqueceria e recordou para os amigos:
“Olha, rapaz – vou passar a chamar rapaz ao meu menino que foste até agora –, estou muito contente porque passaste um exame para homem. Vais no caminho para lá chegar.
Ora uma das coisas que um homem deve ter é alguma independência económica, poder escolher sem que sejam os outros a escolher por ele. A partir de hoje vou dar-te, todos os meses, 50 escudos para tu gastares como quiseres. É uma mesada. Talvez daqui a uns anitos passe a semanada… É um salário! Gasta esses 50 paus como quiseres, e não sintas obrigação de prestar contas de como os gastaste a quem quer que seja… a não ser a ti próprio!”
Disfarçando a emoção, metera-lhe na mão um envelope com o nome dele manuscrito, e com uma nota de 50 escudos dentro, dera-lhe um cachação e dissera-lhe para ir ter com os outros que, distraídos, nem teriam dado por aquela fuga de avô e neto ao convívio familiar.
50 escudos! Uma fortuna naquele tempo.
5 comentários:
50 paus eram, de facto, uma fortuna...
Penso que só nos lembramos de estórias desse tipo se tiverem o avô ou a avó "dentro".
Afinal não é também para isso que "servem" os avós?
Um abraço
Até amanhã
Nunca tive avô! Ou seja, tive mas, quando nasci já tinha morrido, daí nunca ter sentido a falta dele.
Para mim o papel (no meu tempo) de um avô era de um homem austero, machista e distante. Apesar dos meus primos me contradizerem e terem grande saudade do avô.
Mas este avô era um homem (tipo) dos dias de hoje.
Meigo, compreensivo e conversador.
O Eduardo perdeu a 1ª nota que o avô lhe deu?
O valor estimativo, não tem preço!
GR
Perdeu a nota, GR?! Podia lá ser...
Amanhã estarei em Lisboa, em tarefas pelo que não estou certo de poder manter o ritmo.
A ver vamos...
Sempre, muito obrigado às duas (e às e aos que, sei!, vão acompanhando estas estórinhas).
Esta foi escrita há relativamente pouco tempo, já em em carência de netos não emprestados...
Deixa-me dizer aqui uma coisinha à GR:
O que o Eduardo perdeu foi o avô, GR. Os avôs nunca são austeros, nem machistas, nem distantes, aos olhos de um neto (ou uma neta). Poderão ser isso, ou aparentar isso, lá em casa, mas isso não outros 500 paus (ou 25 tostões, se quiseres). Nunca o são para os netos. Apenas porque não é possível, em termos emocionais. Digo eu...
Então boa viagem até aqui, e até amanhã
Dois abreijos (já viste que adoptei esta palavra?)
Sérgio e Maria,
Devo ter sido insensível, perante a figura do “avô”. Mas pertenço a uma família, em que a Mulher tinha o papel principal, escolhia, decidia, fazia! Os homens quase todos estavam exilados, presos ou ausentes., foram para longe, muito longe! “Os homens” eram uma figura respeitada, mas ausente, às vezes quase idolatrada, mas ausente.
Daí a figura da Avó ser tão rica e completa, nunca senti a carência do membro da família que nunca conheci! O papel da mulher (avó, tias, mãe) foi decisivo para o “normal” funcionamento do núcleo familiar. Elas eram proprietárias, agricultoras, dirigiam empresas. Não que também não lutassem, mas eles estiveram ausentes! Elas, agarraram a vida, os filhos, netos e tantos outros que precisaram. E lutaram!
Quando em 74/75 comecei a conviver com todos “eles”, vindos de longe, reforcei o sentimento que tinha perante as (minhas) Mulheres. Elas sim! ainda hoje tanta falta me fazem, tantas saudades eu sinto, tanto respeito lhes tenho!
Agora reconheço que fui insensível e injusta, neste meu raciocínio.
Desculpem!
GR
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