faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 5 de março de 2008

Histórias ante(s)passadas - 1(*)

De muitos que nós somos só resta a memória dos que por cá ainda andam. Todos temos pai e mãe, embora nem todos tenham conhecido o pai – e não só por comportamentos atípicos (?) da mãe –, mas nem todos estamos certos de ter filhos e netos que nos lembrem nas histórias por nós ante(s)passadas.
Sinto necessidade de contar algumas. Para que não acabem comigo alguns restos da vida daqueles a quem tem tanto (e tudo) devo do que sou.

O meu avô materno, o senhor Albino Ferreira, homem muito respeitável e sempre pontual, era, quando o conheci, um reformado da Administração-geral do porto de Lisboa. Recordo-me dele como reformado, se calhar antes de o ser, esse estatuto então apenas privilégio dos funcionários públicos.
Pelas tardes, descia a Rua do Sol ao Rato para, dizia ele…, ir jogar a sua partidinha de dominó no Jardim Cinema. Algumas vezes lá o encontrei, a escapar-me eu do Liceu Pedro Nunes para um joguito de matraquilhos (com bolas de cortiça!). Não muitas vezes o encontrei, porque o meu avô nem sempre estava na mesa do dominó.
Às noites seroava em casa, sendo verdadeiramente excepcional sair e, quando o fazia, era sempre com a minha avó, Damásia de seu nome. Só para um aniversário de uma das filhas ou dos netos, e só quando não conseguia que se aniversariasse na avoenga mansão que mansão não era.
Um dia, estando com minha mãe e tias em visita a minha avó, ouço esta contar, escandalizada, que “a criada” – as jovens que vinham da terra para de “criadas” servirem à pequena burguesia –, estava grávida. Soltaram-se “oh!”s e “ah!”s de fingido espanto mas de solidário escândalo.
E dizia a minha avó “não sei é como é isto teria acontecido… ela só sai de quinze em quinze dias e sempre à tarde… nunca sai à noite… como é que podia ter acontecido uma coisa destas?”
Para a minha avó, “uma coisa destas” só podia acontecer à noite… Quem teria assim instruído a minha avó quando ela, menina e moça, começou a fazer "dessas coisas"?! De que nasceram três filhas e depois, de uma destas, nasci eu.
As minhas mãe e tias riram muito, para dentro dos seus lencinhos de seda, e eu sei que se o meu avô estivesse por ali me teria piscado o olho. Entre homens... ele o homem que, à noite, nunca saia de perto da sua Damásia mas que, às tardes, "dava umas voltas" nem sempre para jogar dominó no Jardim Cinema.
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(*) - Há dois anos, nas vésperas de saber que iria ter de fazer uma intervenção cirúrgica de alguma gravidade (que foram duas) para me tirarem das entranhas um "bicho" que me estava a consumir, deu-me vontade de escrever estas estórias. Estranha vontade... Foram saíndo, em intervalos de outras coisas, e até saber do que tinha de ser feito ao meu corpo para continuar "matéria organizada". Curiosamente, um dia destes, saltaram do meio dos papéis as estórias que dera ordem à impressora para tirar do computador. Oferecerem-se-me para este blog de contar coisas...

3 comentários:

Justine disse...

à falta de netos, para ir contando estas belas histórias bem contadas, valha-nos o São blog, assim sempre irá chegar a um qualquer neto-d-algo, que seria uma pena perder-se...

Maria disse...

Há coisas que "só se fazem à noite, mesmo".... hehehehe
Os nossos avós eram deliciosos nas cumplicidades com os netos, lembro-me bem...

GR disse...

Não imaginas como adoro ler estas estórias.
Não para bisbilhotice, mas pela delicia da descrição da vida social da altura.
A inocência (!) das senhoras, a rectidão (!) dos homens e os dias eram passados com enganos, tentando não ferirem quem gostavam. O respeito era uma constante.
Seria respeito, mas tudo era igual aos dias de hoje, havia era mais descrição.
Fabulosa crónica.
Fico à espera de mais de muitas:

GR