faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Nâo há mais nada para dizer...

De vez em quando, e com uma frequência quer me desgosta, irrito-me com o que o homem (o camarada?) escreve ou diz. Vocifero, zango-me.
(isto sem falar de outras zangas, mais pessoais, maias mágoas, mais fundas, mais tristes porque menos da razão).
Mas, também de vez em quando, rejubilo com o que o escritor põe no papel ou noutros receptáculos do que pensa e com que faz prosa, não como o Monsieur Jourdain, de Molière mas como tão bem sabe. Como ninguém. Por isso, é Nobel.
O homem pensa. Sempre. Nem sempre bem (a meu critério, critério que eu cuido que dele também deveria ser). O escritor escreve o que pensa, e escreve, sempre, bem. Tem bem que gozo ler. Mesmo quando me irrita, me faz vociferar, zangar-me.
Acabo de ler um texto do homem-escritor, e quero aqui reproduzi-lo. Para que os raros vistantes saibam que docordel.blogspot.com também alberga textos de excepção.
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Julho 24, 2009 por José Saramago
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De mim se há-de dizer que depois da morte de Jesus me arrependi do que chamavam os meus infames pecados de prostituta e me converti em penitente até ao fim da vida, e isso não é verdade. Subiram-me despida aos altares, coberta unicamente pela cabeleira que me desce até aos joelhos, com os seios murchos e a boca desdentada, e se é certo que os anos acabaram por ressequir a lisa tersura da minha pele, isso só sucedeu porque neste mundo nada pode prevalecer contra o tempo, não porque eu tivesse desprezado e ofendido o mesmo corpo que Jesus desejou e possuiu. Quem aquelas falsidades vier a dizer de mim nada sabe de amor. Deixei de ser prostituta no dia em que Jesus entrou na minha casa trazendo-me a ferida do seu pé para que eu a curasse, mas dessas obras humanas a que chamam pecados de luxúria não teria eu que me arrepender se foi como prostituta que o meu amado me conheceu e, tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou as costas. Quando diante de todos os discípulos Jesus me beijava uma e muitas vezes, eles perguntaram-lhe porque me queria mais a mim que a eles, e Jesus respondeu: “A que se deve que eu não vos queira tanto como a ela?” Eles não souberam que dizer porque nunca seriam capazes de amar Jesus com o mesmo absoluto amor com que eu o amava. Depois de Lázaro ter morrido, o desgosto e a tristeza de Jesus foram tais que, uma noite, debaixo do lençol que tapava a nossa nudez, eu lhe disse: “Não posso alcançar-te onde estás porque te fechaste atrás de uma porta que não é para forças humanas”, e ele disse, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer: “Ainda que não possas entrar, não te afastes de mim, tem-me sempre estendida a tua mão mesmo quando não puderes ver-me, se não o fizeres esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá”. E quando, alguns dias passados, Jesus foi reunir-se com os discípulos, eu, que caminhava a seu lado, disse-lhe: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti”, e ele respondeu: “Quero estar onde estiver a minha sombra se lá é que estiverem os teus olhos”. Amávamo-nos e dizíamos palavras como estas, não apenas por serem belas e verdadeiras, se é possível serem uma coisa e outra ao mesmo tempo, mas porque pressentíamos que o tempo das sombras estava a chegar e era preciso que começássemos a acostumar-nos, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva. Vi Jesus ressuscitado e no primeiro momento julguei que aquele homem era o cuidador do jardim onde o túmulo se encontrava, mas hoje sei que não o verei nunca dos altares onde me puseram, por mais altos que eles sejam, por mais perto do céu que alcancem, por mais adornados de flores e olorosos de perfumes. A morte não foi o que nos separou, separou-nos para todo o sempre a eternidade. Naquele tempo, abraçados um ao outro, unidas pelo espírito e pela carne as nossas bocas, nem Jesus era então o que dele se proclamava, nem eu era o que de mim se escarnecia. Jesus, comigo, não foi o Filho de Deus, e eu, com ele, não fui a prostituta Maria de Magdala, fomos unicamente aquele homem e esta mulher, ambos estremecidos de amor e a quem o mundo rodeava como um abutre babado de sangue. Disseram alguns que Jesus havia expulsado sete demónios das minha entranhas, mas também isso não é verdade. O que Jesus fez, sim, foi despertar os sete anjos que dentro da minha alma dormiam à espera que ele me viesse pedir socorro: “Ajuda-me”. Foram os anjos que lhe curaram o pé, eles foram os que me guiaram as mãos trementes e limparam o pus da ferida, foram os que me puseram nos lábios a pergunta sem a qual Jesus não poderia ajudar-me a mim: “Sabes quem eu sou, o que faço, de que vivo”, e ele respondeu: “Sei”, “Não tiveste que olhar e ficaste a saber tudo”, disse eu, e ele respondeu: “Não sei nada”, e eu insisti: “Que sou prostituta”, “Isso sei”, “Que me deito com homens por dinheiro”, “Sim”, “Então sabes tudo de mim” e ele, com voz tranquila, como a lisa superfície de um lago murmurando, disse: “Sei só isso”. Então, eu ainda ignorava que ele fosse o filho de Deus, nem sequer imaginava que Deus quisesse ter um filho, mas, nesse instante, com a luz deslumbrante do entendimento pelo espírito, percebi que somente um verdadeiro Filho do Homem poderia ter pronunciado aquelas três palavras simples: “Sei só isso”. Ficámos a olhar um para o outro, nem tínhamos dado por que os anjos se tinham retirado já, e a partir dessa hora, pela palavra e pelo silêncio, pela noite e pelo dia, pelo sol e pela lua, pela presença e pela ausência, comecei a dizer a Jesus quem eu era, e ainda me faltava muito para chegar ao fundo de mim mesma quando o mataram. Sou Maria de Magdala e amei. Não há mais nada para dizer.
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(em O Caderno de Saramago)

5 comentários:

Justine disse...

Não precisa ser um texto do Nobel para ser um texto de excepção...tu também os escreves:))

Sérgio Ribeiro disse...

Por esta - d'esta - não esperava eu. Mas fiquei "excepcionalmente" feliz...

Maria disse...

Gosto da escrita de Saramago, incondicionalmente. Ponto. Por isso me chateiam algumas situações (recentes, estas) que me fazem pensar se o nosso Nobel está no pleno uso das suas faculdades. Neste texto parece que sim. Então, o problema será mesmo outro...

Beijos aos dois
(e um guardanapo!!!)

cristal disse...

Pela minha parte obrigada por trazeres aqui, com a tua sensibilidade, um texto que só não escreveste porque não tratas dessas histórias. De outras sei eu por ti tão bem, ou até melhor, contadas :)

GR disse...

Compro, leio e gosto do escritor Saramago.
Gosto também de outros escritores que me fazem meditar e sentir emoções, de grande tristeza, de muita felicidade e sobretudo acreditar que um Amanhã mais justo, pode ser possível.
Já li, reli e ofereci “…porque Vivi e Quero Contar” e tantos outros livros deste magnífico autor. Depois de lermos ninguém fica indiferente, ninguém esquece as 208 páginas cheias de sofrimento, amor e luta.
Sérgio,
De bons escritores incoerentes, está o mundo cheio.
De bons escritores coerentes, trabalhadores e Resistentes, tão poucos existem.

Um gd bj,

GR