faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sábado, 24 de maio de 2008

Gente... normal

Depois de Caramel, foi como se um sentimento um pouco estranho se instalasse.
A vinda para o Zambujal retirara-me da rotina do cinemazito pelo menos semanal. E de teatro nem falar, para além do que comecei a "fazer", que isto do teatro é como algo que está dentro de alguns de nós. Como os livros e a leitura e a escrita. E, curiosamente, quando a reforma se associa à ideia de deixar de "fazer" e começar a fruir, quer no teatro, quer nos livros, começou a acontecer-me o contrário. Teatro nem vê-lo, só fazê-lo, livros lê-los menos e pouco, uma ânsia de os escrever. E... está mal. Fazer está bem, escrever bem está, mas fazer teatro sem o ver, escrever livros pouco lendo, só pode sair coisa fraca, frouxa...
E isto tudo para quê? Para dizer que, depois de Caramel, fui ver O segredo de um cuscuz.
Para dizer que saí da sala, de novo, com o tal referido estranho remorso e reflexões adrede. E outras que logo se encadearam.
A televisão, por pouca que seja por a muita se fugir, a comunicação social que nos informa desinformando por mais que informação se procure, estão a... formatar-nos. Preconceitos e valores a-éticos impõem-se, a anormalidade banaliza-se, confunde-se a vida real das vedetas com o que elas protagonizam nos seus papéis. Por isso, ver Caramel e O segredo de um cuscuz, de uma libanesa e de um tunisino, como que nos liberta da cocacolonização cultural, feita de individualismo e violência. É gente normal que nos é apresentada, gente normal que até poderíamos ser tentados a duvidar que exista porque a comunicação social e outros aparelhos a ignoram (salvo quando cometem... anormalidades), e cujas vidas, cujos quotidianos podem dar excelentes filmes, excelente teatro, excelentes livros. Chamem-lhe, se quiserem, neo-realismo. Porque é arte nascida do contar de histórias de vidas.
O segredo de um cuscuz é um filme sobre gente. A quem se diz "T'es plus rentable!", como se se perguntasse "que andas por cá a fazer?". E a resposta está no filme sobre esta gente. Que somos nós. Normais, humanos, mesmo que já não rentáveis... Dizendo que o que está certo, que o que é humano são essas gentes, para quem as palavras amor, traição, lealdade, solidariedade, fraquezas, forças, desalento, sonho, luta são o contraponto das rentabilidades, produtividades, interesses, burocracia, individualismo.
A cena do cuscuz em família fez-me sentir a partilhar aquela refeição. Sorri, ri, convivi, atrapalhei-me com as espinhas, deu-me vontade de dar uma palmadas nas costas de uns (e umas) de fazer umas festas nas cabeças de outras (e outros). Aquilo é vida e é, também, cinema.
Cinema... de que nunca fui, de que nunca serei mais do que espectador. Mas de que me atrevo a ter opinião. Opinião de espectador, dos que não dão estrelas e bolas negras.
Fiquei, por um lado, reconfortado; por outro lado, sofrido, esgotado, como Slimane. Diria, ainda, que me pareceu que havia vida demais para tão pouco filme. Ou que tanta vida para contar exigia mais que um filme. Embora aquele, apenas aquele filme talvez com coisas demais, me tivesse feito sentir algo reconciliado com o cinema. E com mais força para a luta.

5 comentários:

Justine disse...

E agora, vamos "atacar" os franceses? Ozon, Chabrol, de quem tenho saudades! Eles bem merecem...

Anónimo disse...

Estamos a ir alternadamente. Aceita a menina um convite para ir ao cinema comigo, em vez de estar eu a ir, sozinho, onde me recomende que vá, depois de ter ido ver, sozinha?

Anónimo disse...

Vou pensar maduramente(?) no assunto e dar-lhe-ei a uma resposta, cavalheiro, logo que peça o conselho da minha tia Gertrudes!É ela que me diz sempre o que um menina de bem deve ou não fazer...

Anónimo disse...

Juntos ou um de cada vez, não percam o "Persepolis" da Marjane Sapatri, se tiverem oportunidade de o ver (não sei se ainda está em exibição algures).

GR disse...

Cinema dito “não comercial” oferece (na maior das vezes) muito bons argumentos.
São filmes de grande qualidade. Menos vistos, devido à falta da máquina publicitária que todos os outros têm, lembro-me de algumas americanadas.

“Menina” aceite o convite, é uma boa companhia. Depois num jantar a dois, poderão discutir o filme.

GR