faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 12 de março de 2009

"O Caso do Homem do Guincho" ou... - 4

4.

O “expresso” ia cumprindo a sua tarefa de levar o Homem a Lisboa. Rolara sem quaisquer problemas até passar as portagens. A partir daí, as coisas começaram a complicar-se. Era a “hora de ponta”, da entrada na grande cidade para mais um dia de labuta e correrias.
O Homem viera abrindo e fechando a pasta, prenhe de dossiers, e cada vez que lhe mexia parecia ficar com menos espaço. Ora tirava um dossier, ora tirava outro a substituir o anterior, por ordem de alguma ideia ou lembrança que lhe surgia. Sempre com o caderninho de apontamentos à mão para acrescentar ou corrigir o que decidira dizer ao Senhor Administrador. De forma sintética, organizada, eficaz. Até porque não esperava enormes disponibilidades de tempo. Era uma oportunidade a aproveitar. Com rapidez e resultados práticos.
Um brevíssimo historial da empresa, umas sucintas notas sobre os objectivos não-empresariais, os caboucos da empresa, a sua evolução nos cinco anos de vida, as muitas iniciativas e o seu impacto local, também económico naquele micro-cosmos, as contingências do mercado livreiro e cultural, a questão do PEC e de outras decisões governamentais, tudo para introduzir a demonstração da razoável situação económica, das dificuldades financeiras, sobretudo de liquidez, do papel determinante do crédito bancário com que vinha contando, as garantias sólidas e os avales consistentes, a necessidade da continuidade das reformas da livrança para poder cumprir compromissos a que não queria faltar nem protelar.
Tudo bem articulado até ao pedido final de que fosse revista a decisão. Ainda uma brevíssima referência ao património de raiz familiar, a casa e o quintal (talvez devesse dizer quinta...), que servia de garantia confortável mas que não queria alienar, que era de difícil negociação, ou até impossível por questões afectivo-sentimentais. E valia bem mais que os 50 mil euros... Aliás, para ele, não tinha valor traduzível em euros, ou em dólares ou lá no que fosse.
Ia ganhando cada vez mais segurança no “discurso”, como o actor que se meteu no papel e conhece o texto até às vírgulas e reticências, às deixas e silêncios, e, contraditoriamente, ia ficando mais nervoso quanto mais o "expresso" se aproximava do terminal de Sete Rios.
A difícil entrada em Lisboa estava a pô-lo mais inquieto, ansioso. E ainda houve aquela passagem pelo aeroporto, para deixar dois dos poucos passageiros que, decerto, iriam voltar, de avião, para os seus destinos, depois de cumprida uma promessa ou de uma visita aos lugares pátrios ou mátrios.
As miradas para o relógio foram sendo mais frequentes. Ou o relógio começara a andar mais devagar.
Distraído, abriu o jornal, para reler os títulos e mais um ou outro texto. Desinteressado, sem se fixar.
No entanto, tudo bem… embora com uns minutitos de atraso, o autocarro entrou no terminal com muito tempo para ele estar na Baixa bem antes das 10.30, hora da entrevista no grande e imponente edifício onde era a sede do banco, e onde o Senhor Administrador o esperava. Pela primeira vez sorriu, achando graça aquela ideia de que havia um senhor administrador à espera dele…
Apesar dessa folga, desse tempo que lhe sobrava, achou prudente tomar um táxi, em vez de ir de transporte público como gostava de fazer. Não iria fazer o Senhor Administrador esperar por ele!...
Ao entrar no táxi, de novo sorriu com aquela mesma piada contada para dentro de si.

1 comentário:

Maria disse...

"sempre com o caderninho de apontamentos à mão", onde é que eu já vi isto?
:))
Apetece ler mais...
Bom dia primaveril por aí!