faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sábado, 21 de março de 2009

ou... "Uma História Com Final (aparentemente) Feliz" - 8

8.

Ao passar junto da Secretária, esta balbuciou uma desculpa “Oh Senhor Administrador… eu só fiz o que me mandou fazer e quando me mandou fazer… às 11 horas…”. “É verdade, é verdade, mas o facto é que quando entrou no meu gabinete foi muito inoportuna… íamos mesmo falar do que era importante… mas tudo bem… você não teve a culpa, não podia adivinhar… ligue-me à minha esposa...”. E entrou no gabinete.
Sentou-se no confortável cadeirão, cruzou os braços atrás da cabeça, recostou-se e esperou a ligação para a Esposa. Que logo veio.
“Sim? Sou eu… Já falei com o homem. Está mesmo aflito e as coisas podem arranjar-se.”. “Ah! ainda bem... A quintarola é mesmo gira e ficava a calhar para a nossa menina. Perguntaste-lhe se tem ar condicionado e aquecimento central e cómodos?...”. “… Claro que não, mulher! Nem mostrei interesse pessoal. Mas tem isso tudo. Então não viste as chaminés? De qualquer modo, teríamos de fazer obras… Até ao casamento temos tempo… ainda faltam uns meses…”. “Está bem, está bem… é que gostava mesmo de lhe dar essa prenda.”. “Vamos ver, vamos ver…”. “Vens almoçar ou…?” “Vou almoçar, vou. Até já”.
***
O Homem viu-se na rua. Estava aturdido. Incapaz de pensar. Tudo correra diferente do que imaginara e do modo para que se preparara.
Cruzava as pessoas como se não existissem, e elas tinham de se desviar daquele homem que mais parecia um sonâmbulo com uma pesada pasta na mão.
Deu a volta a todo o quarteirão, passou pela Praça do Comércio, entrou na Rua do Arsenal, atravessou a Praça do Município, e chegou à Praça Duque de Terceira. Ao Cais do Sodré.
Depois do largo, como um autómato, dirigiu-se para a estação de caminho de ferro e, ao atravessar a 24 de Julho, por pouco não foi atropelado. Só não o foi porque um homem, que esperava que o semáforo passasse a verde para os peões para chegar à estação, saltou do passeio, o agarrou por um braço e desviou-o dos automóveis que quase o colhiam.
O Homem sussurrou um obrigado, libertou-se da mão que lhe segurava o cotovelo, entrou na plataforma e no primeiro comboio que ali estava. No meio de gente, de muita gente já no intervalo do almoço.
O outro não o perdeu de vista. Ficara impressionado com o alheamento que sentira em quem salvara de ser atropelado. Procurou o revisor, mostrou-lhe o seu cartão de guarda-republicano, disse-lhe duas palavras sobre o cuidado a ter com aquele passageiro, que nem bilhete comprara, e sentou-se perto. E vigilante.
O comboio partiu. O Homem, sentado num lugar junto à janela, continuava alheado de tudo o que o rodeava. Dentro dele um vendaval. A memória do pai impunha-se. Do pai que nascera naquela casa, que a fora acrescentando com as parcas economias, que lha deixara como única herança. E a casa. A casa que ele se habituara a ver como coisa sua, e para onde fora viver a tempo inteiro logo que arranjara condições para isso. A casa onde tudo o que ganhara fora aplicado, quer em arranjos para harmonizar as sucessivas transformações que o pai fizera, quer para a tornar confortável, quer para nela criar um espaço com condições para trabalhar. Para viver. Com ela, com a Mulher.
Nunca, mas nunca!, pusera a possibilidade de se desfazer daquela casa, de a trocar fosse porque palácio fosse, fosse para que Pasárgada fosse. Aquela sugestão do Senhor Administrador deixara-o em estado de choque.
A pasta prolongava-lhe o braço, mas era como se nem ela o ligasse à vida. O telefone tocava e ele não ouvia.
Era, decerto, a Mulher a querer saber “como correra” a entrevista. Mas ele não ouvia, ele não via, embora os seus olhos se perdessem no horizonte que corria ao lado do comboio.

2 comentários:

Maria disse...

A primeira parte deste post surpreendeu-me...
Caramba, ainda sou ingénua...

Sérgio Ribeiro disse...

Surpreendeu-te? Era o que eu pretendia!
Mas, espero..., ainda vais ter mais surpresas até à supresa final. Feliz? Aparentemente...
Obrigado!