faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 24 de março de 2009

"O Caso do Homem do Guincho" ou... - 9

9.

O comboio parou em Cascais. Sem que ele, o Homem, parecesse ter dado conta disso.
O Guarda-republicano não deixara, por um momento da viagem, de estar atento ao Homem. Para si mesmo, gracejou “… era só o que me faltava!… fazer de anjo da guarda… republicana…”.
O facto é que estava preocupado. Vira o Homem não tirar os olhos da paisagem. Indiferente a tudo. A quem entrava, a quem saía. Aos lugares por onde passavam, às paragens que se iam fazendo. E parecia boa pessoa… Que lhe teria acontecido? E que iria fazer?
O Homem ficou no seu lugar. Agarrado à janela. Preso nos seus pensamentos. O Guarda-republicano aproximou-se. Pôs-lhe a mão no ombro e sacudiu-o levemente. “Oh!, homem… já chegámos a Cascais, ao fim da linha. Quer voltar para Lisboa? Desculpe lá estar a meter-me… mas o senhor está a preocupar-me…”.
O Homem olhou-o. Sem o ver. Não deu mostras de reconhecer quem, ao atravessar da Praça Duque de Terceira para a estação, evitara que fosse atropelado. Olhou o outro. Balbuciou “…estou bem, estou bem… obrigado… não se incomode…”. “Veja lá… eu sou guarda-republicano, vou entrar ao serviço, no turno da tarde e começo da noite, pode vir comigo se precisar de ajuda, vou só apresentar-me, fardar-me, almoçar, e posso conversar consigo, levá-lo a qualquer lado… sei lá…”. “Não!, não… eu estou bem… só um problemazito pessoal que me está a fazer pensar… mas isto passa já, isto passa já….”
Saíram juntos do comboio e da estação, e mergulharam no bulício da cidade. Lado a lado, andaram ruas. Um sem dizer nada, o outro sem saber que dizer. À porta do posto, o Guarda-republicano insistiu para que o Homem entrasse, ou esperasse por ele enquanto cumpria formalidades da entrada ao serviço. “Não, não… estou bem… obrigado pelo seu cuidado.”.
O Guarda-republicano entrou no posto. O Homem continuou a caminhar. Como se tivesse um caminho para fazer. Andando.
A alternativa casa ou livraria inundara-o por completo. Afogara-o. Desde sempre aquela casa era o seu “canto”, o seu “refúgio”.
Tantas coisas na memória!... Coisas dele e coisas do pai que para si tomara. Nunca pusera a hipótese de ter outro fim de vida que não fosse ali. Ali. Todas as suas viagens tinham um regresso. Ali. Mesmo a livraria era uma espécie de complemento do seu viver ali. Ali, naquele canto. Seu. A sua única propriedade. O seu espaço. Que fora moldando a si, e ele àquele espaço se moldando.
Mesmo quando dera a casa como garantia para a livrança não o fizera a não ser como hipótese absolutamente virtual, irrealizável, para que aquela garantia pudesse ser… uma garantia.
A frieza com que o Senhor Administrador pusera a possibilidade de se transformar “a quinta” em turismo rural, ou até aliená-la, provocara-lhe um choque de que não se conseguia libertar.
Preparara-se para uma outra conversa. Que, no limite, poria em causa a continuidade da livraria. Mas nunca que a casa pudesse ser uma solução para o problema da empresa, da livraria, daquele outro espaço que criara – via-o agora – como uma extensão da sua casa na aldeia.
Procurava arrumar ideias. Mas o choque fora brutal. Não queria falar com ninguém Só queria estar só. Pensar. Pensar. Recuperar(-se).
Mais do ver-se com o mar ali ao lado, ouvia-o batendo nas muralhas e nas rochas. Deixava que as pernas o levassem onde quisessem.
Reconheceu, surpreendido, estar na Boca do Inferno. Lugar habitual dos passeios dominicais no carro então recém comprado pelo pai. Há bem 50 anos. Há mais de… E a memória trouxe-lhe a presença viva do pai. E da casa onde este nascera.
Não! Impossível. Nunca o trairia! Aquela era… a casa deles.
Estava cansado. Sentou-se. Agora a olhar o mar.

3 comentários:

Anónimo disse...

Até sexta-feira. Que remédio senão esperar.

Campaniça

Maria disse...

Seguramente que o mar vai acalmar o Homem. Dar-lhe uma certa paz interior.
E pensar é mesmo o que ele precisa, embora perder-se no infinito também não fosse mau...

Sexta-feira. Aqui.

Sérgio Ribeiro disse...

É 5ª feira, minhas Amigas. E já lá está, como o de sábado. Dias impares!
Beijos