Em 8 de Março de 2002, escrevi uma carta à companheira (ficcionada!... ou talvez uma auto-crítica datada e invertida).
7 anos depois retomo-a, adapto-a e publico-a. Com uma ilustração de Álvaro Cunhal (pormenor de um desenho inédito), em homenagem às mulheres, e com a lembrança comovida das operárias têxteis de Nova York de há 152 anos.
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Carta à querida companheira
por acaso... no dia 8 de Março de 2009,
ano de tantas lutas e eleições
Querida Companheira,
Acordei cansado.
Adormeci tarde, já depois de tu teres chegado da reunião (ou foi de uma sessão de esclarecimento?).
Jantei sozinho, arrumei a cozinha e fiquei, amodorrado, a ver um bocado de televisão. Não havia nada com interesse, já tinha visto o filme da Hollywood, e fui deitar-me com o Expresso… e a intenção de avançar pelo livro que me ofereceste.
Ao ler o jornal, dei-te razão nuns desabafos irritados que te ouvi. Mas há ali matéria para conversa... entre nós. Por isso, fiquei acordado, mesmo depois de desistir de abrir o livro e de ter apagado a luz... para pensar melhor.
Quando chegaste, pressenti os teus esforços para me não acordares, e deixei-me ficar como se estivesse a dormir. Devias vir muito cansada e não seria a altura oportuna para uma conversa a dois.
Hoje de manhã, saíste para um porta-a-porta, como me disseste a correr porta fora, depois de engolir o pequeno almoço e, claro, não era o momento adequado para te dizer o que me foi suscitado pela leitura e pelas reflexões. Assim perdeste o primeiro porta-a-porta, e dentro desta nossa casa...
Ainda pensei que talvez logo à noite... mas é mais que certo que, logo à noite, ou haverá uma reunião, ou haverá um artigo para escreveres, ou haverá um documento para elaborar ou corrigir, ou haverá uma entrevista para preparar, ou, pura e simplesmente, vais cair no sofá, morta de cansaço, incapaz de prestar atenção ao noticiário quanto mais aos meus comentários e à conversa que precisamos de ter. Sim, porque precisamos de ter uma conversa!
Agora, hoje de manhã, quero começar a trabalhar e não sou capaz de o fazer antes de pôr no papel duas ou três reflexões. Por isso, te escrevo esta carta, que não substitui nenhuma conversa mas pode ser dela um intróito.
Sem qualquer dúvida ou hesitação, estou contigo na luta que adoptaste como tua. Conheço, e partilho, as motivações, os princípios, os valores. Sabes que podes contar com a minha ajuda e com toda a minha compreensão. Mas não podes esquecer-te de ti e de nós. Há que colocar alguns limites à entrega, que nunca e em nada pode ser total e incondicional. Há que, de vez em quanto, olhar, parar e escutar como se adverte nas passagens de nível que ainda por aí existem.
Dir-me-ás que sabes tudo isso muito bem mas que, agora, não é possível por causa da manifestação de 13 de Março. Mas também não o foi por causa da preparação do Congresso, como não o foi por causa do pós-Congresso, como não o foi por causa do sim!, é possível, como não o foi por causa dos debates sobre “a crise”, como não o será por causa das “europeias”, e das legislativas, e das autárquicas.
Eu compreendo. Eu sei que não é possível. Mas sei, também, que tem de ser possível. Não falo só por mim. Falo, talvez, mais por ti e pela tua luta, que também é minha embora em escalas muito diferentes. E vejo-me a pensar, e a quase concluir, que é isso mesmo que “eles” querem, que tu e os nossos camaradas não tenham tempo para mais nada a não ser para lhes dar resposta, ou melhor, para lhes dar troco. Mas vocês, melhor: nós temos de inventar tempo e não o gastar todo nesta lufa-lufa a que nos obrigam. Tempo para ler, para estudar, e também!, para nós mesmos e para quem a nós está ligado afectivamente, na relação fundamental, básica de que falava o Marx (gostaste desta?). Como tu e eu que tão ligados estamos como se as nossas vísceras tivessem dado um nó. Mas, atenção!, até os nós mais apertados se desfazem ou cortam... e eu quero ser o teu companheiro, mas não só nas batalhas político-partidárias. Que são a vida mas que não são a vida toda, nem a vida que essas batalhas são se pode fazer sem que as incluamos na vida toda.
Há uma coisa que me ensinaste na teoria e que tens de meter no que comanda a tua - ou a vossa, ou a nossa - prática quotidiana: embora sejamos iguais, somos todos diferentes. É verdade que as circunstâncias fazem o homem e a mulher, mas só nos fazem a partir daquilo que a mulher e o homem são, que cada homem e cada mulher é. Não há circunstâncias que façam de um coxo recordista dos 100 metros, nem há ginásticas e plásticas que façam de mim um Apolo, nem tenho os olhos do Paul Newman, com quem tu, ainda hoje…, me fazes ciúmes (platónicos, platónicos). Temos diferentes cromossomas e os nossos genes não têm a mesmo coloração. Os teus são mais vermelhos que os meus!
A organização é, para o colectivo da tua/nossa luta, fundamental. Mas a organização tem de ter em conta que um colectivo é formado por unidades, todas diferentes, e que existe para mudar a sociedade, sociedade que é formada, na sua esmagadora maioria, por gente tão diferente de nós que está longe de perceber por que sociedade lutamos, até porque há meios gigantescos usados para se impedir essa tomada de consciência e para darem, de nós, de ti e de todos nós-camaradas, uma imagem que é uma horrenda caricatura.
Mas, voltando a nós, o que quero sublinhar é que não podemos exigir o mesmo a todos. Não se pode exigir, a todos, a mesma entrega total, a mesma dedicação absoluta, decerto excessivas quando desenquadradas das realidades. Se a alguém se exige mais do que ele pode dar, corre-se o risco de não se poder contar, para a luta colectiva, com o contributo único, imprescindível, que é o seu.
Querida, este é o começo de um desabafo. Quero fazer, a teu lado, o meu caminho, não quero seguir as pisadas do teu caminho. Quero ser o teu companheiro, quero que tu sejas a minha companheira de uma vida a dois, por isso duas vidas, não quero ser o acompanhante de uma vida, da tua vida.
E não julgues – sei que nunca o julgarás... se puderes arranjar tempo para ler esta carta calmamente... e para a conversa sequente – que tenho qualquer desejo que diminuas a tua militância, que sejas menos aquilo que és. Quero é que... pares, olhes e escutes os outros, a começar por mim, para melhor seres o que és. E de que muito me orgulho.
Acordei cansado.
Adormeci tarde, já depois de tu teres chegado da reunião (ou foi de uma sessão de esclarecimento?).
Jantei sozinho, arrumei a cozinha e fiquei, amodorrado, a ver um bocado de televisão. Não havia nada com interesse, já tinha visto o filme da Hollywood, e fui deitar-me com o Expresso… e a intenção de avançar pelo livro que me ofereceste.
Ao ler o jornal, dei-te razão nuns desabafos irritados que te ouvi. Mas há ali matéria para conversa... entre nós. Por isso, fiquei acordado, mesmo depois de desistir de abrir o livro e de ter apagado a luz... para pensar melhor.
Quando chegaste, pressenti os teus esforços para me não acordares, e deixei-me ficar como se estivesse a dormir. Devias vir muito cansada e não seria a altura oportuna para uma conversa a dois.
Hoje de manhã, saíste para um porta-a-porta, como me disseste a correr porta fora, depois de engolir o pequeno almoço e, claro, não era o momento adequado para te dizer o que me foi suscitado pela leitura e pelas reflexões. Assim perdeste o primeiro porta-a-porta, e dentro desta nossa casa...
Ainda pensei que talvez logo à noite... mas é mais que certo que, logo à noite, ou haverá uma reunião, ou haverá um artigo para escreveres, ou haverá um documento para elaborar ou corrigir, ou haverá uma entrevista para preparar, ou, pura e simplesmente, vais cair no sofá, morta de cansaço, incapaz de prestar atenção ao noticiário quanto mais aos meus comentários e à conversa que precisamos de ter. Sim, porque precisamos de ter uma conversa!
Agora, hoje de manhã, quero começar a trabalhar e não sou capaz de o fazer antes de pôr no papel duas ou três reflexões. Por isso, te escrevo esta carta, que não substitui nenhuma conversa mas pode ser dela um intróito.
Sem qualquer dúvida ou hesitação, estou contigo na luta que adoptaste como tua. Conheço, e partilho, as motivações, os princípios, os valores. Sabes que podes contar com a minha ajuda e com toda a minha compreensão. Mas não podes esquecer-te de ti e de nós. Há que colocar alguns limites à entrega, que nunca e em nada pode ser total e incondicional. Há que, de vez em quanto, olhar, parar e escutar como se adverte nas passagens de nível que ainda por aí existem.
Dir-me-ás que sabes tudo isso muito bem mas que, agora, não é possível por causa da manifestação de 13 de Março. Mas também não o foi por causa da preparação do Congresso, como não o foi por causa do pós-Congresso, como não o foi por causa do sim!, é possível, como não o foi por causa dos debates sobre “a crise”, como não o será por causa das “europeias”, e das legislativas, e das autárquicas.
Eu compreendo. Eu sei que não é possível. Mas sei, também, que tem de ser possível. Não falo só por mim. Falo, talvez, mais por ti e pela tua luta, que também é minha embora em escalas muito diferentes. E vejo-me a pensar, e a quase concluir, que é isso mesmo que “eles” querem, que tu e os nossos camaradas não tenham tempo para mais nada a não ser para lhes dar resposta, ou melhor, para lhes dar troco. Mas vocês, melhor: nós temos de inventar tempo e não o gastar todo nesta lufa-lufa a que nos obrigam. Tempo para ler, para estudar, e também!, para nós mesmos e para quem a nós está ligado afectivamente, na relação fundamental, básica de que falava o Marx (gostaste desta?). Como tu e eu que tão ligados estamos como se as nossas vísceras tivessem dado um nó. Mas, atenção!, até os nós mais apertados se desfazem ou cortam... e eu quero ser o teu companheiro, mas não só nas batalhas político-partidárias. Que são a vida mas que não são a vida toda, nem a vida que essas batalhas são se pode fazer sem que as incluamos na vida toda.
Há uma coisa que me ensinaste na teoria e que tens de meter no que comanda a tua - ou a vossa, ou a nossa - prática quotidiana: embora sejamos iguais, somos todos diferentes. É verdade que as circunstâncias fazem o homem e a mulher, mas só nos fazem a partir daquilo que a mulher e o homem são, que cada homem e cada mulher é. Não há circunstâncias que façam de um coxo recordista dos 100 metros, nem há ginásticas e plásticas que façam de mim um Apolo, nem tenho os olhos do Paul Newman, com quem tu, ainda hoje…, me fazes ciúmes (platónicos, platónicos). Temos diferentes cromossomas e os nossos genes não têm a mesmo coloração. Os teus são mais vermelhos que os meus!
A organização é, para o colectivo da tua/nossa luta, fundamental. Mas a organização tem de ter em conta que um colectivo é formado por unidades, todas diferentes, e que existe para mudar a sociedade, sociedade que é formada, na sua esmagadora maioria, por gente tão diferente de nós que está longe de perceber por que sociedade lutamos, até porque há meios gigantescos usados para se impedir essa tomada de consciência e para darem, de nós, de ti e de todos nós-camaradas, uma imagem que é uma horrenda caricatura.
Mas, voltando a nós, o que quero sublinhar é que não podemos exigir o mesmo a todos. Não se pode exigir, a todos, a mesma entrega total, a mesma dedicação absoluta, decerto excessivas quando desenquadradas das realidades. Se a alguém se exige mais do que ele pode dar, corre-se o risco de não se poder contar, para a luta colectiva, com o contributo único, imprescindível, que é o seu.
Querida, este é o começo de um desabafo. Quero fazer, a teu lado, o meu caminho, não quero seguir as pisadas do teu caminho. Quero ser o teu companheiro, quero que tu sejas a minha companheira de uma vida a dois, por isso duas vidas, não quero ser o acompanhante de uma vida, da tua vida.
E não julgues – sei que nunca o julgarás... se puderes arranjar tempo para ler esta carta calmamente... e para a conversa sequente – que tenho qualquer desejo que diminuas a tua militância, que sejas menos aquilo que és. Quero é que... pares, olhes e escutes os outros, a começar por mim, para melhor seres o que és. E de que muito me orgulho.
Beijo-te, com amor companheiro,
XY (como o cromossoma!)
XY (como o cromossoma!)
Ainda a tempo: Claro que não esqueci o 8 de Março e que vou à comemoração daqui a pouco. Como sabes, estou nessa luta há décadas. Podias era ter conversado comigo sobre a iniciativa... não devem ser só as mulheres a lutar contra a discriminação de que são alvo (repara que não escrevi vítimas!).
2 comentários:
Não tenho palavras para adjectivar esta carta...
... apenas vários sorrisos...
E dois abraços!
Li o post vários dias depois, mas penso nele, penso, penso... e vejo ali coisas tão .... enfim... às vezes conheço bem demais grande parte da realidade que ali aparece escrita...
Pano para mangas, camarada, pano para mangas...
beijinhos a dobrar
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