faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sábado, 12 de julho de 2008

Histórias ante(s)passadas - 23

O meu tio Cardoso. Pois… o meu tio Cardoso. Que conheci nas visitas à Penitenciária. De quem fui “construindo” uma imagem de homem injustiçado, ou excessivamente castigado pela justiça, atrás de portões e grades a ver crescer o sobrinho que eu era, e sobretudo o filho que de mim tinha um avanço de ano e meio.
Mas tudo tem um fim e, a partir de certa altura, só se preparava o regresso do tresmalhado membro da família, que vivia toda (excepto a Casimira, filha do primeiro casamento da tia Guilhermina, que fora viver com o pai e muitas vezes nos visitava… mais um mistério familiar nunca muito bem deslindado) naquele espaço da rua do Sol ao Rato. Os avós e patriarcas (Damásia e Albino) no 77, 1º dtº, os Adriões no 1º esqº, os Ribeiros no 85, rés do chão dtº e a tia Ermelinda e o Zé Luís no 2º dtº. Com o pátio por detrás, para onde se entrava por um arco entre o 77 e o 85 (mais tarde corrigidos para 25 e 27),
O regresso do Cardoso preparou-se como um acontecimento. Lembro-me de andar alvoroçado. Para isso, contribuía muito o meu pai. Eu bem o via e ouvia. Arranjou uma pasta de mostruário com artigos seus e de fornecedores que representava e, em surdina, ia preparando aquele regresso.
Bem... o Cardoso saiu e foi uma festa. Lá se deixou que ele subisse ao 2º dtº e tomasse posse da casa. E da mulher e do filho. Mas não por muitos dias, e sem essas coisas de agora de pegar num carro e irem dar uma volta…
Menos de uma semana depois, a Judite, a (co)mando do Joaquim, combinou com a Ermelinda um jantar lá em casa, no rés do chão. Tudo bem, tudo na melhor... O Zé Luís e eu brincámos, depois da escola, no quintal e, em vez da tia Ermelinda o chamar da janela das traseiras para ele subir, desceu ela e o tio Cardoso para jantarmos todos juntos.
Refeição melhorada, com arroz doce com certeza, tudo na “baixela” das grandes ocasiões, um palhete especial, muita alegria para nós todos. Até que, acabado o jantar, os homens foram conversar. Para o escritório.
E o meu pai avançou com a proposta que preparara e acarinhara durante dias ou semanas. Convidou o Cardoso para vir trabalhar com ele, para “fazer a praça”, “à comissão”, na venda de artigos de papelaria, depois de um estágio(zito).
O Cardoso teria ouvido, agradecido e arrumado a questão em dois tempos. Que ia descansar uns meses e depois veria que rumo profissional dar à vida.
O meu pai ficou perplexo. Frustrado, desiludido. «Descansar uns meses…?, então não lhe tinham chegado os 10 anos “de descanso”?!» Não lhe disse isto a ele, nem outras coisas. Mas disse-nos a nós, à minha mãe e a mim, quando nos relatou o grande choque que tivera. Foi uma das minhas – e das primeiras – lições de vida e idiossincrasias…

1 comentário:

Maria disse...

Não sei muito bem o que te diga.
É que conheço gente, muito próxima de mim, que também está sempre cansada, há anos... só não passou (ainda) pela experiência dos 10 anos...
E quem fez o arroz doce? A tia Ermelinda? Normalmente as avós e as tias fazem sempre um arroz doce apetecível...

Um abraço