faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O dia acordado

Acordaram para o dia
ainda nem madrugada era
(mas tantos não acordaram para o dia
porque dormido não teriam…)
Acordaram para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4
e do ano de 74
Vestiram a farda de capitão
e juntaram mais um galão
aos três do regulamento,
o galão de um cravo.
Acordaram para o dia
que iam fazer o dia novo
o dia povo
o dia ovo.
----------
Acordou para dia,
sozinho na cela,
com a unha riscou na parede suja
uma outra manhã acordada em Caxias.
Acordou para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4
e do ano de 74.
Lembrou os camaradas,
em Peniche e noutros lugares
punham mais um risco em paredes sujas
como calendários de dias assim contados.
Seria aquele o dia de ir para a tortura?
NÃO!
Acordava para o dia
que ia ser o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.
-----------
Acordaram para o dia,
na casa clandestina,
para mais um dia de luta,
de sobressaltos, de tarefas.
Acordaram para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4
e do ano de 74.
Reviram as agendas e as gentes a ver
um encontro, uma reunião,
o chumbo para a tipografia,
o papel para imprimir o avante!,
uma luta no seio da luta.
A vigilância, camaradas,
a segurança, camaradas,
não falhar um pormenor, um sinal
que tudo e tantos poria em risco,
de prisão ou até mortal.
Poucos sabiam que acordavam para o dia
que vinham preparando
dia a dia, todos os dias,
o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.
-----------
Acordou para o dia,
no leito vazio e frio,
já cansada de espera,
mais um dia de trabalho e luta
Acordava para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4
e do ano de 74.
Preparou o pequeno-almoço,
acordou o miúdo,
ajudou-o a vestir,
levou-o à carrinha,
ouviu a pergunta de todas as manhãs
desde que o tinham levado…
“Mãe… quando é que o pai volta?... será hoje?”
Respondeu, com um sorriso triste,
“Não sei, filho, era tão bom que fosse…”
Foi!
Acordava o dia
que ia ser o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.
-----------
Acordaram para o dia
com a rádio a dar notícias estranhas,
depois do “Depois do adeus”
e de “Grândola, vila morena…”
para mais um dia de trabalho.
Acordaram para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4
e do ano de 74.
Hesitaram,
entre as recomendações para ficarem em casa
e a vontade de ir para as ruas,
de serem massas e revolução.
Saíram à procura de cravos e liberdade,
juntaram-se no Largo de Carmo,
exigiram a libertação dos presos políticos
e da Pátria que recuperavam.
Acordava o dia
que ia ser o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.
-----------
Do outro lado da vida,
acordaram estremunhados
e não querendo acreditar.
Alguns saberiam de alguma coisa,
muitos apenas se preparavam
para ir prender e torturar.
Acordaram para o dia,
para o dia que 25 era
e do mês 4

e do ano de 74.
Uns, em desespero,
e assustados com gente e gente nas ruas
que julgavam suas,
ainda disparam os últimos tiros,
ainda cometeram os últimos assassinatos.
Acordava o dia
que ia ser o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.








23 de Abril de 2008

10 comentários:

Anónimo disse...

Felicito-te pela verdade feita poema!
Até amanhã camarada!
Manangão

Maria disse...

"o dia ovo"....
que poema mais bonito, Sérgio, fiquei arrepiada e com a fatal lagrimita no olho....
Obrigada pelas palavras bonitas que aqui deixaste.

Abreijos

Anónimo disse...

Sérgio, este poema é ... não consigo encontrar um adjectivo. Só posso dizer parabéns, mas é pouco. Consegues, numa sequência de momentos e numa síntese de palavras, dar-nos UM DIA. Pela parte que me toca foi mesmo assim. Como adivinhaste? Até parece que estavas lá, naquela casa da Amadora. Obrigada. Este dia 25 de Abril começa bem.

Campaniça

Justine disse...

Grande poema, anónimo meu do secxxi!

Sérgio Ribeiro disse...

José Manangão: obrigado pela pela verdade nossa que viste no que escrevi.
Maria: dia ovo saiu-me como dia povo como dia novo, não por ser rima mas por ser o que sinto... com a lagrimita no olho.
Ó Campaniça, peguntas como adivinhei... porque sem o ter vivido tudo vivi como se o tivesse vivido, como tu. Como viveste o que eu vive, no Aljube, na António Maria Cardoso, em Caxias. Como vivemos o que foi vivido em Peniche, nos Tarrafais, pelos nossos camaradas.
Viva 25 de Abril.

Sérgio Ribeiro disse...

Obrigada, minha justine, que vens de longe do anonimato nosso do século passado, pouco depois depois do 25 de Abril, que no Jamor nos encntrámos em Festa, e comigo atravessaste o que já deste século se foi.

Sal disse...

Depois do que li... post e comentários.. que mais se pode dizer?
Nada.
Está tudo dito.

beijinhos

beta disse...

Como diz a Sal, que mais se pode dizer? Com este poema dizes tanto camarada... Com este poema vemos Abril pelos teus olhos, pelos deles, pelos delas, pelos outros, pelos nossos...
Obrigado camarada.
Um abraço
Beta

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
GR disse...

A História feita poema.
O sofrimento, a Luta, o amor.

Palavras novas, para dizer Abril. LINDO!

“Acordava o dia
que ia ser o dia novo,
o dia ovo,
o dia povo.”

Parabéns pelo poema e por seres como és!

GR