faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 8 de abril de 2008

Histórias ante(s)passadas - 16

Vamos povoando o nosso cemitério interior. Foi em Santiago, na Praia, que um húngaro, Imre Marton, num seminário sobre Amílcar Cabral, no 10º aniversário do seu assassinato, me deu este mote. Foi em 1983, e Marton começou a sua intervenção dizendo que Amílcar fazia parte do seu cemitério interior, aquele em que mantinha vivos os que já nos tinham deixado e que preciso era que vivos continuassem.
De vez em quando lembro-o. Naturalmente. Porque alguém morreu e vem povoar o meu cemitério interior, onde vivo quero que continue enquanto vivo eu for. E bem povoado ele está! Porque, nestes 25 anos, tanta gente passou a só estar viva dentro de mim. E enquanto.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
Eugénio de Andrade



A minha mãe era uma mulher curiosa. A mais nova das “3 irmãs”! Aparentemente submissa. Quem a conhecesse mal talvez a visse como a sombra do meu pai. Que ela acompanhava, como se sombra fosse, para todo o lado… em que ele não arranjasse as coisas para que até a sua sombra estivesse ausente.
Meu pai era o "chefe de (ou da) família", a minha mãe a “dona de casa”. Sendo "chefe do governo”, mas não do “governo da casa”, o meu pai acumulava com o lugar de “ministro das finanças”, dotando a “dona de casa” de um orçamento diminuto para a gestão corrente (e regateado ao centavo). Só ele é que trabalhava (!), ele é que ganhava e repartia as receitas, ela é que geria a casa, de que era “dona”, com os escassos meios à sua disposição.
Já então o défice era obsessão e o “chefe do governo” e “ministro das finanças” era intransigente. Nada de orçamentos rectificativos... e cumpria escrupulosamente as ordens do FMI e os PEC, atacando sempre pelo lado das despesas.
Também já então o crédito aparecia como saída. E a “dona da casa”, a menina Judite para os donos das lojas da rua, tinha crédito! E usava-o quando se via aflita… ou queria comprar ou mandar fazer um vestido novo. E mais aflita ia ficando porque o dito chefe não o podia saber, e menos ainda que o crédito subia e estava tudo a ficar mal parado.
Até que, era inevitável..., surgiu a crise. E lá teve de intervir um jovem candidato a economista, talvez a sua primeira intervenção séria no seio do governo e relativamente ao estado da nação.
Não foi fácil. Mas a crise – essa - foi ultrapassada.

5 comentários:

Justine disse...

O retrato (de há quantos anos atrás?), bem feito sim senhor,é infelizmente bem mais suave do que o que poderia representar as famílias actuais...

Anónimo disse...

Andava eu a tirar a "carta de economista"..., isto é, há mais de meio século ((:-(

GR disse...

Naquela altura um filho jovem interferir numa crise matrimonial, tinha que ser corajoso, como mais tarde se veio a comprovar. Contudo, o “chefe” tinha uma certa abertura, para permitir a interpelação.
Momentos difíceis para as corajosas Mulheres/Mães.

No meu cemitério interior há alegria, ternura e tanta saudade!
Gostei da nova e estranha definição “cemitérios interiores”.
Era linda a Srª D. Judite. Tua doce mãe.

GR

Maria disse...

Descrição perfeita de um tempo ido, menos de crise (ou de menos crise) do que este, e do qual me lembro de ouvir falar.
Hoje quem não pode, por causa da crise, muitas vezes fecha os olhos e usa o cartão de crédito.... só que se esquece que vai ter que o pagar...
Gostei da tua (do Marton) expressão "cemitério interior". Nunca tinha pensado nisso, mas descreve em absoluto o que sentimos...

Abreijos aí

Sal disse...

Por graça (ou desgraça?) a minha família sofria do mesmo "mal".
Uns quantos anos mais tarde, é certo, mas eram ainda as consequências dos longos anos de ditadura fascista.

beijinhos