faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

De um livro "em estaleiro": quando o assassinado é "culpado" do assassínio...

continuação
«Mas, se foi este o libelo acusatório, isto é, acusação, com base na legislação, para os factos provados, suas agravantes e atenuantes (isto na “tradução” de um leigo…), a sentença não deu como provada a intenção de matar para poder convolar (o que quer dizer passar rapidamente de um estado a outro) a acusação do crime previsto punido pelo tal art.º 349.º (homicídio voluntário) para a do crime do art. 361.º do mesmo Código, que é apenas o de “ofensas corporais voluntárias de que resulta privação de razão, impossibilidade permanente de trabalhar ou a morte”.
(...)
Se o libelo acusatório referia 4 agravantes – espera, noite, especial obrigação e arma – o tribunal militar decidiu que não existia a agravante espera… “pois até à chegada da vítima o réu não formulou o propósito de sobre ele disparar” o que é verdadeiramente inacreditável, pois, existindo a espera, se poderia perguntar como formularia o réu o propósito de disparar e de matar (ou de causar ofensas corporais…)? Disparando tiros para o ar, ou treinando-se atirando sobre outros alvos que não Dias Coelho?
Mais inconcebível ainda considero o apagamento deste agravamento por, relativamente ao objectivo deste meu escrito…, me considerar testemunha privilegiada para a agravante “espera”, pois dela tive a percepção e sensibilidade quando, pouco antes das 20 horas circulava pelas cercanias para tomar posição para o encontro com Dias Coelho no lugar antes marcado.
Por outro lado, o mesmo tribunal acrescentou quatro atenuantes, que deu como provadas, o bom comportamento anterior do réu;
. a confissão espontânea;
. o possuir vários louvores;
. o ter agido, com os seus disparos, para evitar que se frustrasse a missão que estava desempenhando.
Custa a acreditar!
Quanto à primeira “atenuante”, não resisto a usar, em resumo que me imponho, parte da argumentação do advogado da recorrente, invocando imagem comparativa com a quadrilha de Al Capone: «só por ridículo, com efeito, se diria que um gangster “filiado” em semelhante quadrilha, e em ablativos do seu primeiro assalto, ou do seu primeiro assassinato, pudesse considerar-se bem comportado pela simples razão de ainda não ter nem roubado nem morto ninguém.»
A confissão espontânea não existiu, até porque, entre outras coisas, o Tribunal deu como provada a voluntariedade do disparo e o réu negou a voluntariedade do disparo… mas confessou (e não espontaneamente!) o que era de todo impossível de negar: que disparou! E, em tudo o mais, foi falso e mentiroso. Como se comprovou.
Relativamente à atenuante “louvores” que o réu possuía, chega a ser surrealista que eles tenham sido concedidos pela PIDE, e é escandaloso que o primeiro louvor tenha sido atribuído a 27 de Dezembro de 1961, oito dias depois do crime de assassinato para que serve de atenuante. Ler esse louvor define bem a instituição criminosa que era a PIDE e como era servida por criminosos. Apenas o deixo em rodapé[1].
Por último, a atenuante de que o réu teria disparado para evitar que se frustrasse a missão que executava nem merece que com ela se percam muitas palavras. O réu teria disparado dois tiros, o segundo à queima-roupa (!)[2], sobre um homem agarrado por um seu “colega”… para que a sua missão não se frustrasse! A não ser que a missão fosse a de matar um homem por ser suspeito de pertencer ao Partido Comunista Português. Quase só faltou acrescentar que a culpa do assassinato foi do assassinado, de Dias Coelho por ter tentado fugir à prisão e, assim, impedir os agentes da Pide de cumprirem a sua missão de o prenderem.
A cada passo me confronto, ao recordar ou ao informar-me sobre o “caso Dias Coelho”, com questões verdadeiramente essenciais.
E não termino esta introdução ao que era minha intenção inicial de escrever sobre os meus 50 anos de economia e militância, sem sublinhar o “pequeno pormenor” deste julgamento e desta sentença de que me aproveitei para contar o dia 19 de Dezembro de 1961, ter sido a seguir ao 25 de Abril de 1974, com finalização em 1976/princípio de 1977, tempos de que memória dos mais novos está envenenada com “informação histórica” completamente contrária ao que estes factos revelam.
A luta de classes nunca deu tréguas em Portugal (nem noutro lado qualquer) e os fautores desta sentença serviam uma classe, a mesma que era servida pelos agentes da PIDE, que prendiam, torturavam e matavam, e que, quando a relação de forças obrigou a que fossem julgados, tiveram quem os defendesse em vez de os julgar, ao menos com neutralidade na aplicação das leis. Para aqueles juízes, acima de tudo, antes de tudo, José Dias Coelho era comunista!

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[1] “…louvo o agente de 2ª classe António Domingues porque, cumprindo sempre com zelo, dedicação e espírito de sacrifício, as missões que lhe foram confiadas, contribuiu grandemente para que fossem capturados elementos subversivos qua na associação secreta denominada Partido Comunista Português desenvolvem larga actividade directiva e cuja acção representa ameaça e perigo para a ordem social estabelecida”.
Ordem de serviço nº 361/61 da Pide, assinada por Homero de Matos.

[2] - A morte de Dias Coelho
I. O disparo sucessivo de dois tiros de um agente da Direcção Gerai de Segurança sobre um suspeito, militante do Partido Comunista Português, sendo o segundo tiro com a arma muito próxima da roupa da vítima, perfurando a bala o esterno, a cartilagem da 5ª. costela, o pericárdio e o coração, provocando a sua morte, consubstancia a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 361 § único do Código Penal de 1886 (ofensa corporal que produz a morte).
(revista Sub Judice 25 - Justiça e Memória, Almedina)

4 comentários:

Maria disse...

Acabo de ler pedaços da nossa História que é preciso preservar, para que não se apague a memória colectiva e de cada um.
À medida que te lia "passava" um filme aqui mesmo, e como foi triste relembrar todos estes acontecimentos e outros que, por acréscimo, vieram à memória.
Tenho um post já preparado para dia 19, com dois poemas para Dias Coelho, mas sinto-me tentada a fazer uma referência a este blogue e a estes dois posts.... Posso?
Abreijos

Sérgio Ribeiro disse...

Se podes?!
Agradeço-te muito.
Porque, para além do muito que estou ligado pessoalmente a esse "episódio", me dás a prova de que é útil a minha lembrança dele.
Abraços

GR disse...

O grande problema dos julgamentos da PIDE nos finais dos anos 70. Os juízes eram do regime fascista de Salazar!
Permaneceram durante muitos anos e depois foi o que se viu!
Escandaloso!

5ª feira 20 de Dezembro seria interessante, relembrar este triste episódio.
Com o teu texto, imprimia-o e colocava-o no Avante!
Naturalmente com o nome do autor, Sérgio Ribeiro.

O blog, O Castrense (António Vilarigues) depois de eu pedir, simpaticamente autorizou-me a imprimir uma intervenção do camarada Álvaro. Saiu em 4 semanas, agrafadas ao Avante! Foi uma experiência muito positiva, muito interessante. Os camaradas e amigos foram lendo semana, após semana, com bastante interesse, alguns até pediram mais fotocópias. Foi uma forma de lerem um grande texto que alguns, de outra forma não o fariam. Alguns quase exigiram a presença do camarada Vilarigues, para debater o texto!

Este texto tem que ser lido, passado, debatido, para que
Não Apaguem a Memória!

Sem querer abusar, aguardo autorização tua.

Para além da amizade o respeito que por ti tenho é imenso.
Obrigada Camarada Resistente,

GR

Anónimo disse...

O texto é bem mais longo. São as páginas 9 a 24 do tal "livro em estaleiro", o primeiro capítulo, na sua fase actual, isto é, ainda susceptível de "mexidas".
Estou a pensar no que me propõem, queridas camaradas, com uma serena mas muito gratificante satisfação e reconhecimento. Até porque foi um extemporâneo desabafo.
Vamos conversando sobre isso...