faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um gato é um gato mas podia chamar-se panela de pressão ou ter outros nomes como os que me apetece chamar ao nosso gato depois de mais esta noite

A civilização, ou aquilo a que se dá o nome de civilização, ou de sociedade, ou lá do que for e na língua que for, faz-se de palavras, comportamentos, convívios, conceitos. De várias espécies e géneros, e entre espécies e géneros, inclinações e idiossincrasias.
A um animal com determinadas características, em que são identificadores o pêlo, as orelhas, os olhos, as recolhidas garras e os afilados dentes, dá-se o nome de gato ou gata, segundo o sexo. Isto em português, porque noutras línguas se lhes dá o nome de chat, de cat, de Katz, e outros que cultura do escriba não alcança. Porque se lhe chama gato? Vá lá saber-se. Haverá quem saiba, mas não vem ao caso. Poderia chamar-se-lhe, em onomatopaico ou esperanto, ron-ron (ou panela de pressão, como já ficou no título). Mas, insiste-se, não vem ao caso.
Ao caso vem que, ontem, quando deslizei para a cama que é dela e minha, para onde ela se retirara mais cedo como acontece com frequência, já o panela de pressão lá estava. Aconchegadinho no sovaco e em vias de silenciamento e surdina depois dos ron-rons que tanto enternecem. Como acontece com frequência para não dizer (quase) sempre.
E assim se começou a dormir. A três e em espaço encurtado.
Até que, às tantas da madrugada – poucas horas – o dito gato resolveu ir lá fora. Até se pode compreender… Mas voltou excitado. Chovia e ele, o gato, vinha todo molhado. Vá de fazer uma das suas cenas. Muito expressivo linguisticamente, começou com os miaus adequados e, claro, teve resposta de dentro da cama, do meu lado direito e directo. Tento traduzir o gatês em palavras e expressões de gente: “Minha dona, chove a cântaros…” “Humm… está bem, gatinho querido…”, “Pois é, mas estou todo encharcado…”, “Ah, pois… pois… mas… queres que te enxugue, não é?”, “Claro, donaminha, de que é que estás à espera?!”, “Tá bem, tá bem…”
E lá saltou ela da cama, pegou num felpudinho pano para estas ocasiões e, às 3 da madrugada, esteve a secar o gatinho, que se rebolava de gozo, oferecendo os flancos ainda não suficientemente enxutos. Ron-ronando…
E eu a resmungar, incompreensivo e incompreendido.
Tudo acalmou, não sei bem ao fim de quanto tempo, e lá se conseguiu nova ajustada acomodação corporal de gatos e homens (no caso uma mulher, um gato e eu).
Mas o sono do bichano (também se lhes chama assim) foi curto, de breves horas, pois resolveu ir, de novo, experimentar as delícias de chuva a cair-lhe no sedoso pêlo e nos fartos bigodes. E voltar para a acariciante acção de enxugo e festinhas da barrigota (é assim que ela diz…). Não vou repetir a prosa que seria o relato, antes das 7, do que aconteceu depois das 3. Da madrugada e manhã.
Ela, a dona, ainda tentou re-readormecer mas desistiu. E disse, com ar compreensivo, em resposta à minha resmungada e irredutível incompreensão para com os eventos, “vou deixar-te dormir mais um bocadinho…”. “Obrigadinho...”, disse eu, se é que disse alguma coisa. E lá foram. Os dois.
Aproveitei todo o espaço e mergulhei de decúbito ventral, isto é, de barriga para baixo e pernas esticadas, numa derradeira tentativa de sono.
E estava mesmo a começar o verdadeiro matinal mergulho, quando o bichano voltou. Ao que parece, por informações posteriores, o gajo foi com a dona à casa de banho, comeu um frugal pequeno almoço e, às escondidas, quando julgado no quintal, escapou-se para o leito conjugal de que eu julgara ter tomado posse total. Foi muito cauteloso, e tal e coisa. Pata ante pata saltou para cima da cama, sem fazer quaisquer ondas, escolheu o espaço entre as minhas pernas, aninhou-se, e pousou a cabecita no meu tornozelo como se fosse fofa almofada. Uma ternura poisada naquele meu verdadeiro calcanhar de Aquiles.
Ainda passei pelas brasas, mas o apelo da prosa chamou-me aqui, ao computador. Porque esta noite, isto!, tinha de ser contado. Ele ficou lá. Ele, sim, com posse (e pose) total.

6 comentários:

Anónimo disse...

Estória linda, cheia de ternura e muito bem contada. Fez-me lembrar outras parecidas passadas com o Gorby,o meu cão, um dos maiores amigos que já tive. O Gorby não sabia fazer ron-ron mas dava uns suspiros de felicidade que nos punham em paz com o mundo.

Campaniça

Maria disse...

És um excelente contador de estórias reais... é claro que o Mounti nem imagina o número de caracteres que lhe dedicas - nem sei como é que sobreviveu à vossa viagem ao Vietnam...
... não era por aí que alguém queria um neto?
:)))

Beijos

samuel disse...

Ele está é viciado nestas histórias... vaidoso!

GR disse...

Citando a Campaniça,
"que nos punham em paz com o mundo" e continuam.
Haverá maior felicidade que um gato ou cão?
Este ternurento Mounty, com a compreensiva e carinhosa donadele e o orgulhoso Sérgio, por momentos faz-nos esquecer todos os males do mundo.
Mounty,
Já estava com saudades tuas.
Parabéns, por mais esta tão Linda crónica.

GR

Sérgio Ribeiro disse...

O gajo, perdão, o gato, não me deixa dormir, obriga-me a escrever uma estória de desabafo (e ternura...), e é aqui apaparicado como se tivesse feito uma boa acção, coitadinho do bichano.
Vá lá... gostaram do contar da estória. Serve-me de consolação... E, é curioso, estou a escrever com o gajo, perdão, o gato, aqui ao meu lado, dormindo refastelado, a ocupar a secretária e com o rabo em cima do teclado... o que vale é que o rabo do gajo/gato é curto.

Abreijos, amigos (meus e dele)

Justine disse...

"isto", apesar de muito bem contado, está um bocadinho tendencioso...:))
Acho eu!