faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

domingo, 4 de janeiro de 2009

Avulsos do Caderno Vietnam - 3

Entraram os dois no avião em Bang-Coque. Como um casal no regresso de lua de mel ou isso. Muito altos e magros, os dois. Ele, calmo, diria... normal. Ela, agitada, “eléctrica", hiper-activa. Gestos rápidos, bruscos, duros.
Logo à partida, antes da dita. Na arrumação das bagagens. Arrumou, desarrumou, arrumou. Desarrumou, abriu um saco de onde tirou um baralho de cartas. Que, assim que se sentaram – sentado estava ele há que tempos… –, ainda como o avião com as rodinhas no chão, ela baralhou e baralhou e baralhou com uma perícia profissional, casinamente.
Jogaram uma suecada lá da terra deles. Se calhar, a Suécia…
Ele, evidentemente, por arrastamento e bonomia. Mas ela depressa se cansou. Estava ainda o avião a ganhar altura e já ela subia mais que o avião. Amarinhou para o porta-bagagens, desarrumou, tirou o saco, abriu o saco, meteu lá as cartas, fechou o saco. E a portinhola.
Ele, sossegado que estava, sossegado ficou. Ela desembrulhou um apoio pneumático para o pescoço, soprou, soprou, encheu-o, colocou-o, fez menção de ir dormir. Fechou os olhos. Eu, a três-quartos, bem vi fecharem-se-lhe os olhos.
Logo os abriu. Os olhos, e a luz do tecto, e um livro. Começou a lê-lo, com o dedo a correr as linhas e a virar a página antes de a acabar de ler, levando os olhos e o corpo todo, magro e maleável - apesar dos gestos duros -, para as primeiras linhas da página par. Parecia concentrada, tranquila para a viagem em cruzeiro. Qual quê?! Engano...
Cansou-se depressa da leitura. Foi à casa de banho. Fazer o que presumo. Voltou no tempo adequado (acho eu, relativamente ao que presumi). Sentou-se. Em posição de ioga. Por minutos. Que digo eu? Esteve segundos na postura.
Levantou-se. Abriu o local das bagagens, e tirou o saco e abriu o saco, um saco. Gestos breves, secos. Tirou um kispo com capuz. Fechou o saco, colocou-o no sítio, fechou a portinhola. Enfiou os braços no kispo e o capuz na cabeça (ou foi a cabeça no capuz?). Pôs uma mascarilha. Deu um beijo, de fugida, no companheiro que estava ali, lendo indiferente a toda a movimentação ao lado, sempre posto em sossego. Esteve quieta dois minutos, se a tal chegou, na posição de lotus.
Só tinhamos levantado de Bang-Coque há meia hora!... e a viagem tem p’raí umas treze horas, vinte e seis meias-horas. Eu já estava estoirado, e não era nada comigo. Aquele frenesim dera cabo de mim. E não podia mudar de lugar. Apelei a todas as minhas forças para abstrair da vizinhança. Tinha de seguir o exemplo de ele. Deve ter cá um treino!...
Conheço o género dela, embora esta exagere. Conhecer conheço, mas só por observação. Porque não me saiu nenhuma destas nas rifas do destino. A que me saiu – premiado fui! –, a que dorme aqui ao lado, de boca entre-aberta, só acordará em Paris, se não for só em Lisboa.

No avião Ho Chi Minh-Paris, 30 /31 de Dezembro de 2008

2 comentários:

Maria disse...

Estava linda a J. posta em sossego, de boca semi-aberta, para teu sossego...
A vizinha, "ai que nerves"...
A tua capacidade de contar estórias pegando num "quase nada" é fantástica...

Abreijos

GR disse...

Soberbo, magnificamente contada.
Excelente crónica.
Contudo, não sabia que “eu” ai nessa viagem!!! Afinal, até nem me portei tão mal como é costume.
Parabéns!

GR