faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A morte da adolescência* - 1

Então, o sol parecia mais quente. Mais sol. Não porque aquecesse mais. Nem necessário era porque o calor estava dentro de mim. Mas que era um sol mais forte, mais vivo, mais vivo que este que hoje me toca de leve, tantas vezes pálido e triste, lá isso era. Ou parecia…

Cada manhã saltava da cama para o ar livre. Para a última benfeitoria – a daquele ano – introduzida pelo meu pai na casa onde ele nascera, o acimentado terraço, onde começava o dia a saltitar, a fazer flexões, a abrir os braços e o peito ao ar ainda húmido, cacimbento, do dia iniciado.

“Vê lá, João Luís, não te constipes”. Eram os bons dias da minha mãe, espreitando as matutinas movimentações do filho, e preocupada porque me via despir o casaco do pijama, ficar de tronco nu, atirar o corpo empranchado para o chão frio para começar as inevitáveis flexões de braços. Era, também. o sinal de partida para umas corridas à procura de espaço no pequeno quintal, entre a minúscula vinha e as árvores, o poço e o tanque para regas e lavagens.

Mas não era só a minha mãe que por ali andava e me espreitava enquanto eu, ginasticadamente, acordava para mais um dia de férias. Também a Júlia, “a servir” em nossa casa desde o começo do verão, à experiência para ver se iria connosco para Lisboa, fazia parte da paisagem em que os corpos adolescentes eram o centro do mundo. Pelo menos, do mundo deles…
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Na sua lida doméstica, a Júlia ia buscar lenha para o fogão, ia tirar água do poço com a picota para os baldes que, depois, levava, cheios e um em cada mão, para a cozinha, onde se preparavam os pequenos-almoços, a que me atirava, sempre sôfrego, de passagem e em passo de corrida, pelo meio das actividades ginásticas.
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* - capítulo de livro
que, com outros escritos, há anos alterna "trânsito" e "gaveta"

5 comentários:

Maria disse...

Muito bem, então temos por aqui mais um conto...
Não sei bem porquê já "cheirei" a Júlia. Será talvez porque vai buscar a lenha, e o cheiro que vem do fogão é mesmo "apetitoso"...
Esses pequenos almoços, que eu imagino com pão cozido em forno de lenha, manteiga fresca, compotas caseiras, e um bolo (ah!, e o cheirinho a café caseiro) deviam ser degustados com tempo, sentado à mesa, e não a correr pelo "meio das actividades ginásticas"...
Fico à espera de mais...

Anónimo disse...

Eu também.

Justine disse...

Promete...

GR disse...

Filho único, mimado que bom era ser criança, com tanta liberdade.
Vou continuar a ler.

GR

Anónimo disse...

Essa do filho único foi bem apanhada... e, de certo modo, denuncia algo de demasiado auto-biográfico que deverei corrigir.
Tenho de meter uma irmãzita no episódio quando o autonomizo, embora no "romance" (salvo seja) se deva manter o personagem com essa carga de narrador auto-biográfico.
Obrigado. Muito me ajudam estas leitoras...