faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Do que gosto mais? De estar vivo, e vivo!

Ao sair da reunião, na Voz do Operário (é preciso preparar bem as comemorações do 35º aniversário do 25 de Abril!), hesitei. Qual o caminho a tomar para ir até Sete Rios, ao terminal rodoviário? Não valia a pena tomar um táxi porque o tempo não pressionava (estranho…), fazer, a pé, o percurso inverso da vinda, até ao metro do Intendente, não me estava a apetecer muito, embora o sol convidasse e, na volta, fosse a descer o que custara alguma coisa a subir. Mas valera bem o custo…
Estava nesta dúvida, nada cruel, quando a passagem do eléctrico, do 28, com o destino Estrela, me decidiu. Assim seria.

Há que anos não entrava num eléctrico!
Agora, entra-se pela frente, paga-se ao condutor (por acaso uma condutora, bem morena, com todo o ar de fundas raízes caboverdeanas). Já não há os cobradores que percorriam o carro e ameaçavam os penduras com o alicate.
Procurei um lugar sentado, coisa que raro havia mas que encontrei, e como gostava. Na fila dos bancos individuais, logo… ali à janela. E só para mim.
E foi cá um passeio por uma cidade a descobrir! Sempre. Bela como nenhuma outra.
O percurso pareceu escolhido para encantar o turista que eu era na cidade iluminada e aquecida pelo sol. Ruelas estreitíssimas pela cidade velha, vias únicas em que o eléctrico que vem para cá tem de esperar que passe este que vai e onde vou, tangentes a pessoas que andam pelos passeios em passeio e na lida diária, um carrocel por uma das colinas que sete serão.
De repente, a chapada de luz de S. Tomé, o Tejo a oferecer-se à vista, embora do outro lado da janela em que tinha o privilégio de ir. Depois, Santa Luzia, a continuar a oferta começada um pouco antes, no outro das santidades.
Logo, a descida em que a passagem pelo antigo Aljube despertou recordações sempre vivas. Cá bem dentro. Largo da Sé, descida para a Baixa, onde cheguei a pensar descer mas de que desisti. Ia ali tão bem, de tudo esquecido e tudo lembrando.
A jovem caboverdeana ao volante, que não é volante mas manípulo, atacou a subida até à Victor Cordon, seguida da descida para de novo se subir, pela rua onde está o Hospital da Ordem Terceira dos meus dois meniscos, as traseiras da António Maria Cardoso, para onde vinha, trazido em carrinha do Aljube e dos “curros”, para os interrogatórios e a tortura.
Mas… adiante. Que logo ali está o largo do S. Carlos e, depois, o do Chiado, as duas igrejas, o largo Camões, deixando à direita a Rua do Mundo, da Prelo e de mais coisas vivas na memória, como o Teatro da Trindade da revista de finalistas, e outras menos confessáveis. Como as que, ainda à direita, me são trazidas pelo Bairro Alto. Também as dos jornais, sobretudo do Diário de Lisboa, na Luz Soriano
Nova descida, pelo sobe-e-desce da Calçada do Combro, de que fiz uma das minhas crónicas no DL que recordo e que, pelo impacto que então tiveram, pensei que seria para sempre, na ingénua ilusão de verdes anos. Tudo esquecido, só a ser de mim lembrado. Como agora, quando descia aquela calçada, à janela do eléctrico para a Estrela.
De repente, o esperado, e decerto muito repetido, engarrafamento. Os eléctricos vão pelos trilhos, deles não podem sair, o estacionamento dos automóveis ocupa passeios, as cargas e descargas ocupam o espaço de passagem. Alguma tensão, colorida de buzinadelas irritadas. Espreitei o Récord do vizinho do banco da frente, e decubro o Henrique Calisto numa entrevista de página inteira. "Tenho de comprar o jornal..." Estou mesmo vietnamófilo! (Sobre esta entrevista, farei outros respigos e comentários… vietnamófilos).
Lá se desenrolou o novelo, e subiu-se a Calçada da Estrela, com passagem pela Assembleia da República. Como tudo está diferente! Ainda espreitei, à esquerda, para o jardim e para a Rua Miguel Lupi e o ISCEF que hoje é ISEG. Para a direita não olhei. Habituei-me a evitar a Rua da Imprensa onde “habitam” os Presidentes do Conselho que deviam ser Primeiros-Ministros.
Subiu-se outra calçada, que não é a de Carriche ou do António Gedeão mas da Estrela, e chegámos, eléctrico e eu lá dentro, ao Largo também da Estrela.
Fim de viagem. Fiquei com pena. Devia ter tomado a carreira que vai até aos Prazeres. Não importa. Sai do carro eléctrico-carreira 28 como quem se despede, e atirei-me para o Jardim da Estrela, depois de passar pelo quiosque onde comprei o dito Récord com o Henrique Calisto, em férias de Vietname.
O Jardim da Estrela! Tão na mesma e tão diferente. Atravessei-o, saboreando o passeio de hoje – ah! este sol… – e as recordações. Ali foi que, e acolá que… olha o coreto, onde está aquele sítio em que?, mudou de lugar ou eu tinha-o mal arrumado dentro de mim?
Atravessados tantos anos na travessia do jardim, eis-me na rotunda com a estátua do Pedro Álvares Cabral, à direita a escola do João de Deus (como se alargou!) e, no passeio deste lado esquerdo para quem sai do jardim, o meu velho Liceu Pedro Nunes. Não resisti a entrar. No grande átrio, olhei-me nas paredes e no que está exposto. Fixei-me na lápide ao professor Jaime Leote, de que tantas vezes me lembro, como agora ao ler o Chagrin d’école do Pennac (mas como é que eu faltei a esta homenagem ao Jaime Leote?!).
Num placard, vejo que o Medeiros Ferreira vem fazer uma conferência sobre a União Europeia. Quando? Hoje, a esta hora! Decidi-me. Quero ir. Tentei convencer a empregada-guardiã, que ainda telefonou, simpática, mas nada conseguiu – Sabe?..., não é pública e, aliás, a conferência está a terminar!
Senti pena. Ainda tentei uma subida-escapadela pela aquela escadaria tantas vezes subida, que espreitei, e ir lá acima aos pátios: desculpe, mas não pode ser… estamos em obras! Com mais pena fiquei. E com penas sai do “meu” Pedro Nunes.
Na rua, ao longo do gradeamento, confirmei que o liceu está em obras. Operários faziam a sua pausa do almoço e estavam a “apanhar sol”, conversando lagartamente.
Desci a Avenida, de que me lembro com um passeio a meio, espreitei, neste percurso feito de espreitadelas para dentro e para fora de mim, o Jardim Cinema, deixei-me ir andando.
Chegara a hora de almoço. Porque não a Parreirinha ou a Esplanada, ambas do Rato? Tentei. Uma deixou de existir, a outra nem fui ver porque dois “desgostos” seguidos seria demais para um senhor da minha idade e a viver o que estava a viver.
Decidi-me pelo restaurante do começo da Rua do Sol ao Rato que sabia que estava aberto. Porquê? Porque sabia, pronto. É aquele que está no espaço entre o cubículo dos jornais de há sei lá quantas décadas, e que desapareceu, e a “loja do sr. Neves”, e era uma carvoaria de onde saltou o gato que arranhou o estafado Tarzan quando voltávamos, o meu pai, ele e eu, do passeio ao Parque Eduardo VII, cujo era, então, um parque.
Entrei, sentei-me, fui recepcionado por empregados que conheço muito bem mas que me não conhecem de lado nenhum (nem da televisão…). São os mesmos, mas estão um bom bocado mais velhos… Confirmei-o.
Sopa do lavrador e carapauzinhos com açorda. Para beber? Uma meia garrafinha de Borba vqprd. Tinto, claro!
E ali fiquei, saboreando o passeio saboreado e os carapauzitos que eram dos de comer todinhos (tadinhos), e a açorda, e o tintinho, gatafunhando na toalha de papel. Umas coisas aqui transcritas. Outras que o serão. Talvez…

6 comentários:

Maria disse...

Um dos passeios às saudades que vamos tendo...
Bonito, mesmo.

Um beijo

Anónimo disse...

Que rico passeio!
E não foi em busca do tempo perdido porque tu nunca foste de perder tempo, como se vê por esta crónica tão colorida e com tanto ritmo.
Se é verdade que o tempo transforma os lugares, também nos transforma a nós.Por isso estamos no tempo. E vivos.

Campaniça

Justine disse...

Passeio por dentro de Lisboa e por dentro de ti - do que foste e do que és, porque assim foste.
A crónica é de fazer crescer água na boca - queres repetir um dia destes, partilhando?

Sérgio Ribeiro disse...

Durante todo o percurso pensei nisso, Justine. Mas, devo dizer, que me soube muito bem assim.
Obigado, Maria e Campaniça, pela vossa companhia amiga.

samuel disse...

Nunca se farão "gêpêésses" que ensinem assim os caminhos e que nos falem desta maneira... ao coração.

Abraço

cristal disse...

Que lindo passeio por fora e por dentro... Obrigada por assim os partilhares a ambos.