No regresso do que senti ser,
tardia e irremediavelmente,
o corte definitivo da ligação viva
com o meu passado vivido
escolhi o Requiem, de Mozart
“para este domingo” do anónimo do século xxi,
“para este domingo” do anónimo do século xxi,
E juntei a nota de que teria “memória”
- ou histórias ante(s)passadas - em docordel
Aqui, e também nos dias de agora.
Histórias ante(s)passadas – 58 (?)
Não vou “literalizar” a questão, e muito menos como “ficções do cordel”, mas sinto necessidade de transformar o luto duplo que sinto em escrita catártica. Porque não foi bem o corte de uma ligação viva, a última, com o meu passado vivido, mas mais o desfazer de um laço, brutalmente, e sentido ao longo de quilómetros ao volante e de horas em que estive voltado para o mais fundo em mim.
Sucederam-se cenas como num filme a episódios.
O mais antigo, as vistas a uma casa onde a Casimira vivia com uma tia, depois de um nunca esclarecido divórcio (isto nos anos 30!), como que em reclusão, e onde a mãe e os familiares maternos a podiam visitar e onde havia uma janela num andar sobre a Duque d’Ávila, muito alto para mim, habituado a rés-do-chão e a sentir vertigens.
Depois, a vinda da Casimira para a nossa companhia no canto familiar da Rua do Sol ao Rato. Os três primos! A Casimira, a mais velha, rodeada de mistério e silêncios (porque havia coisas de que não se falava), o José Luís, com o pai na Penitenciária, por vício do jogos e desvios de dinheiro (também coisas de que não se falava em frente das crianças), onde eu, o mais novo dos primos, o conheci.
A seguir, o namoro da Casimira com o Agnelo da Trafaria, quando, dizia-se…, de quem ela gostava era do José, e cenas insólitas como o Agnelo, baixinho e todo garboso na sua farda de oficial, a subir a íngreme Rua do Sol para passar debaixo da janela da sua amada a comandar um pelotão, num desvio ao RDM (Regulamento de Disciplina Militar)!
A seguir, o namoro da Casimira com o Agnelo da Trafaria, quando, dizia-se…, de quem ela gostava era do José, e cenas insólitas como o Agnelo, baixinho e todo garboso na sua farda de oficial, a subir a íngreme Rua do Sol para passar debaixo da janela da sua amada a comandar um pelotão, num desvio ao RDM (Regulamento de Disciplina Militar)!
E o casamento. Daqueles de fato de cerimónia, em que para mim se arranjou a solução da “capa e batina” feita no A.Lemos da Rua Augusta, e que veio marcar a minha vida de estudante lisboeta a sonhar com Coimbra.
Do casamento nasceu o António Alberto, que estaria agora nos 60 anos se não tivesse morrido há uns quatro ou cinco anos, de uma morte anunciada e de certo modo antecipada para os pais e, também, para mim. Por isso, quando ontem, no cemitério, me disseram que o António Alberto, além do corte total com todos os laços familiares, morrera de sida, senti estar a fazer um duplo luto.
Esta fotografia tem escrito nas costas, com a letra da Casimira, António Alberto com 3 anos e meio – Restauradores 1955
Tudo foi revivido.
O António Alberto foi o meu primeiro bébé! Andava eu no liceu, no D. João de Castro, no Alto de Santo Amaro, e organizava a minha vida para estar com ele, que quase vira nascer. Com os meus 16/17 anos passei horas a brincar com o TóBé, no encantamento de ver um ser humano ganhar corpo e sentidos e consciência. (O que estou a voltar a viver numa terceira etapa da minha vida).
O miúdo cresceu e sempre o fui acompanhando. Com uma enorme ternura. Retribuída, E lembro a alegria que lhe teria dado quando, no começo da sua adolescência, consegui ir ver o sarau de ginástica na Académica da Amadora, em que ele participou e para que me convidara com alguma insistência..
Depois, adolescente inquieto e com um difícil relacionamento com os pais, uma fuga de casa para uma "aventura" por Espanha, terminada em Barcelona com um regresso atribulado, em que também tive um papel bem difícil. Em que fui uma espécie de mediador, fisicamente no meio dele e do pai a impedir a violência, e com a insólita confissão que ele me fez de que terminara a sua “aventura”… por ter sentido a falta do "champoo"!
E cada um foi fazendo a sua vida. Sempre com a Casimira a dar-me notícias, e a encontrá-lo de vez em quando.
Até que chegou um 25 de Abril. Em 1974. Ele com 20 e poucos anos, eu a chegar aos 40. Tempos em que nos teríamos reencontrado. Em que soube coisas dele, na empresa em que trabalhava e do seu impeto revolucionário. Cruzando-nos e abraçando-nos em manifestações. No meio da alegria e do futuro que procurávamos ajudar, eu um pouco preocupado porque ele queria a revolução-já e eu não tinha nem arte nem tempo para lhe provar que as revoluções não se fazem já. Que se fazem sempre. Todos os dias, e mais difíceis são os dias em que se julga que ela está feita.
Ter-se-á perdido, ou terá procurado encontrar-se por outros lados. Por Moçambique e não sei mais por que paragens. Rompendo laços, cortando ligações. Perdi-o!
Soube da sua morte. Quase com indiferença. Até ontem. Até ao acompanhamento da Casimira ao cemitério do Feijó, e ao ter-me sido confirmado, por voz amiga e comovida, que o António Alberto morrera, e como morrera.
1 comentário:
Triste com a tua tristeza...
Enviar um comentário