faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Histórias ant(s)passadas (na prisão) - 5A

Na sala enorme, no último andar do Aljube, a que ficou dado o nome de enfermaria geral por em tempos o ter sido, iam chegando e saindo novos “hóspedes” naquele começo de verão de 1963.
A “colheita” tinha sido farta.
Aviadores, funcionários públicos, economistas, engenheiros, bancários, médicos, investigadores, estivadores, vendedores ambulantes. Um corropio! Era assim a modos de um lugar de “trânsito” antes dos interrogatórios na António Maria Cardoso, para uns, e de pausa nos ou de regresso dos interrogatórios, para outros.
Depois da honra de termos tido um Carlos Darwin entre os nomes de registo, e de ele nos ter bem explicado que nem era o “original” nem o filho dele mesmo, e que, por isso, estava ali por engano, o vendedor ambulante, que com ele teria vindo na “leva” lá da Outra Banda, teve uma reacção curiosa.
Era um homem atarracado, pernas arqueadas, de andar bamboleante como se carregasse sempre grandes pesos. De tanto os ter carregado, as suas costas, o seu corpo, o seu andar, tinham-se moldado ao ofício. Calado, durante os primeiros tempos apenas parecia querer ouvir, ouvir todos e tudo. Parecia um pouco surpreendido, perplexo.
E um dia, não me lembro se ao segundo ou terceiro da estadia, mas depois de ouvir o Carlos Darwin insistir nos enganos, acompanhou as suas longas e lentas passeatas ao comprimento da sala, no espaço entre as camas, com um resmungar, tipo cantilena. Dizia ele: “Já percebi, já percebi! A gente estamos cá todos por engano! Todos por engano!”
E andou assim horas.
Até que chegou a sua vez do “prepare-se para ir à polícia”.
Foi.
E não voltou. Parece que, depois de uns bons “apertos”, o puseram em liberdade. Estaria cá por engano?!... Sabia lá ele alguma coisa daqueles jornais em papel fininho que lhe tinham encontrado no meio da mercadoria! Ele nem sabia ler…

5 comentários:

Maria disse...

Às vezes interrogo-me se alguns dos tipos que interrogavam os presos sabiam pensar, se tinham massa cinzenta...
Caramba!
Quantas estórias tens ainda para nos contar aqui...

Abreijo

Sérgio Ribeiro disse...

Inúmeras. Todas com uma base real, verdadeira... mas permitindo-me ficcionar. Puxando pelos cordeis.
Mas contá-las ou não depende da disposição, da disponibilidade, e de ter marias a ler e a comentar...
Obrigado e grande beijo.
Por tua causa, hoje talvez saia mais uma... se arranjar um buraco no tempo das tarefas.

Maria disse...

Obrigada...
:)

Um beijo

Justine disse...

Acho esta história enternecedora pelo toque de humanidade que mostras em sítios de difícil humanização...

Sérgio Ribeiro disse...

Então... vai outra, que acho ainda mais enternecedora.