faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Vocês...

Às mulheres que estão, agora, nos 60 anos

Vocês são o outono do meu contentamento
Vocês foram as teen-agers dos anos 60
Vocês descobriram (ou inventaram!) a pílula,
…...e o twist e o rock+roll
Vocês leram e escreveram páginas de amor livre
Vocês são os caboucos da mulher-que-ainda-não-é
Vocês atiraram-se ao mercado do trabalho
Vocês não foram todas para Letras
Vocês não ficaram à espera do casamento
…...enquanto davam umas aulitas para entreter a espera
Vocês,
…...quando foram à guerra com “eles”,
…...não se ficaram por serem
…...as-esposas-do-senhor-oficial-
…...que-se-deus-quiser-voltará-vivo-lá-da-“frente”
Vocês secretariaram grandes senhores
…...que, às vossas ordens, pequeninos se fizeram
Vocês começaram a criar e a dirigir empresas
…...sem que isso fosse notícia ou escândalo
Vocês abriram caminhos no caminho do futuro
…...e iguais - homens e mulheres – o faremos
Vocês são, hoje, as reformadas activas, e vivas, e belas[1]
Vocês são o outono do meu contentamento
…...ou melhor:
Vocês são o contentamento do meu outono[2]
.
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[1] - e carmens e carmos e ermelindas e graças e ivas e luísas e margaridas e marias e marianas e odetes e paulas e ritas e zés
[2] - e uma muito em particular

A morte da adolescência - 4

Naquela quinta-feira, como em todas as quintas-feiras, era o dia de mercado semanal. Lá em baixo. Na vila.

O meu pai decidira – o meu pai decidia coisas! – que o almoço seria uma boa sardinhada. E também convidara amigos para um lanche. Ia ser um dia em cheio. E cheio de trabalho para a minha mãe e para a Júlia.

E tudo começava logo de manhãzinha, com a partida, cedo e preparada de véspera, para a vila.

Havia uma certa excitação no ar. O meu pai marcava o rutmo. A toque de palavras de ordem ou de franzires de sobrolho. Só teve uma hesitação ou dúvida, com prerrogativa de endosso de decisão para a minha mãe ”A rapariga também vai ao mercado?”.

Os meus sentidos concentraram-se na resposta, que a minha mãe deu, à sua maneira, não afirmativa, deixando as decisões definitivas para o homem “Como és tu que queres escolher as sardinhas e o que for preciso para o lanche, e pareces disposto a carregar com os sacos, é capaz de não ser preciso… há tanto para limpar e arrumar cá em casa… depois ainda temos o lanche…”, “Tá bem, ‘tá bem… despacha-te!”.

E lá passaram por mim, todo entregue à educação física (ou do físico). Ele, o meu pai, no passo largo e apressado de sempre, ela a minha mãe, logo atrás, em corridinhas de passo miúdo. Ele, a voz paterna, grossa “Não queres vir? Estás sempre a querer ir a Ourém… agora que fazia jeito, não deixas essa porcaria das ginásticas… ’inda me sais um Tarzan!”, ela, a voz materna, meiga “Até logo, filho… vê lá, não te constipes…”

A morte da adolescência - 3

Cansado, suado, passava a uma segunda etapa. Como se fosse um ritual.

Descer o balde com ralo-chuveiro do camarão da trave do tecto da casa de banho, ir buscar o enorme panelão com água a ferver que estava em cima do fogão – ensaiando posições em que os músculos se valorizassem à vista da Júlia se estivesse por perto… e estava quase sempre -, encher o balde-chuveiro, temperar com água fria, subir a uma cadeira, elevá-lo e colocá-lo, cheio e bem pesado, no camarão da trave do tecto.

Era mais um exercício, e o último da sessão de ginástica matinal.

Depois, vinha o duche tão laboriosamente preparado.

Não sem que, antes, procurasse que o espelho, em posição estratégica, me dissesse quais os resultados de tanto exercício e preocupação com o corpo a atingir a sua exacta formação. Posições “à Charles Atlas”, a “tensão dinâmica”, com a ajuda do corpo já ensaboado e a semi-obscuridade.

Admirava-me como quem tem 17 anos (quase 18, quase 18, diria eu então...), se sente cheio de saúde e força, e se desconhece Narciso e a auto-crítica.

Era assim todas as manhãs.

Naquela quinta-feira…

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A morte da adolescência - 2

A Júlia, nas passagens, nos percursos da sua “ginástica” de marcha com baldes cheios de água em cada mão, não escondia os sorrisos de troça, e o seu corpo parecia ganhar ainda mais vida e saúde.

E fazia com que uns salpicos de água saltassem dos baldes para as minhas costas, perturbando as insistências (insiste!, insiste!) das flexões de braços.

A aparente indiferença mútua era disfarce. Era mútuo desafio e era provocação, só insinuados mas cúmplices.

Aquele seu corpo, o modo como o vivia, como o fazia movimentar-se, bulia comigo, nos meus 17 anos.

E quantos teria ela? Tantos como eu, ou um pouco menos, ou um pouco mais, até porque o corpo feito mulher por vezes se escondia para logo se revelar, numa gaiatice, numa vontade de brincar em que havia uma criança a recuperar a infância não vivida.

Mas também não valia a pena perguntar quantos eram os seus anos de vida. Talvez nem soubesse ao certo, ou propositadamente respondia com evasivas “sei lá… parece que vou nos dezoito, já sou grandita… mas não vou às” sortes”… isso da tropa é p’rós rapazes… eles é que têm de saber a idade que têm”.

A vida fizera dela, depressa, muito depressa, uma mulher para quem a idade não contava. Parecendo vender saúde e força, era uma bela mulher. A meus olhos, pelo menos.

E era para ela que eu me exibia. Como para mim próprio, quando olhava os músculos em pose nos vidros das janelas. De soslaio. Com alguma auto-satisfação.

A morte da adolescência* - 1

Então, o sol parecia mais quente. Mais sol. Não porque aquecesse mais. Nem necessário era porque o calor estava dentro de mim. Mas que era um sol mais forte, mais vivo, mais vivo que este que hoje me toca de leve, tantas vezes pálido e triste, lá isso era. Ou parecia…

Cada manhã saltava da cama para o ar livre. Para a última benfeitoria – a daquele ano – introduzida pelo meu pai na casa onde ele nascera, o acimentado terraço, onde começava o dia a saltitar, a fazer flexões, a abrir os braços e o peito ao ar ainda húmido, cacimbento, do dia iniciado.

“Vê lá, João Luís, não te constipes”. Eram os bons dias da minha mãe, espreitando as matutinas movimentações do filho, e preocupada porque me via despir o casaco do pijama, ficar de tronco nu, atirar o corpo empranchado para o chão frio para começar as inevitáveis flexões de braços. Era, também. o sinal de partida para umas corridas à procura de espaço no pequeno quintal, entre a minúscula vinha e as árvores, o poço e o tanque para regas e lavagens.

Mas não era só a minha mãe que por ali andava e me espreitava enquanto eu, ginasticadamente, acordava para mais um dia de férias. Também a Júlia, “a servir” em nossa casa desde o começo do verão, à experiência para ver se iria connosco para Lisboa, fazia parte da paisagem em que os corpos adolescentes eram o centro do mundo. Pelo menos, do mundo deles…
.
Na sua lida doméstica, a Júlia ia buscar lenha para o fogão, ia tirar água do poço com a picota para os baldes que, depois, levava, cheios e um em cada mão, para a cozinha, onde se preparavam os pequenos-almoços, a que me atirava, sempre sôfrego, de passagem e em passo de corrida, pelo meio das actividades ginásticas.
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* - capítulo de livro
que, com outros escritos, há anos alterna "trânsito" e "gaveta"

domingo, 28 de outubro de 2007

Apontamentos e historiazinhas do quotidiano - 4

Olho o televisor e reconheço o personagem. Mais figurante que personagem… Envelhecido, baço.
Recordei coisas e tempos passados.
Há quase 20 anos, lá para o final dos anos 80, escrevi-lhe uma carta. De camarada para camarada.
Terminava assim (mais ou menos…): “de tão brilhante tornaste-te vedeta, como vedeta fizeram-te instrumento… vê lá onde vais parar?!”
Foi parar àquilo. Secretário de Estado (ou subsecretário?).
Sem brilho. Baço.
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Nunca me considerei brilhante, mas tive o aceno do vedetismo. Senti, talvez…, algum começo de deslumbramento. Mas reagi a tempo, isto é, de imediato, ou então foram canhestros os agentes do envolvimento.
Optei por não engavetar ou adiar ou moderar a coerência. E estou muito satisfeito. Embora… cada vez mais insatisfeito.
Terei, decerto, envelhecido. Mas não me vejo baço. E reconheço-me no “espelho da juventude”.
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(do caderno de apontamentos e historiazinhas do quotidiano)

Apontamentos e historiazinhas do quotidiano - 3

... eu esqueci-me que já tinha acertado o meu relógio pela "hora de inverno", se calhar ontem à noite já meio a dormir, e fico irritado contigo por não teres sido tu a fazê-lo... pois, se tivesses sido tu, não teria sido eu a esquecer-me do que eu fiz.
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... eu digo-te as "coisas", tu esquece-las... e ficas irritada comigo por as teres esquecido.
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Ah! estas cabecinhas...

(do caderno de apontamentos e historiazinhas do quotidiano)

Apontamentos e historiazinhas do quotidiano - 2

Toca-se o hino!
(ou eu ouço-o...)

Heróis do mar...mas bem mais de surfistas que de pescadores
.....que essa coisa de barcos e pesca nos mares nostros
.....é para outros... "comunitários"
.
Nobre povo...demasiado plebeu para o gosto dos "nobres"
.....que não se querem povo
.
Nação valente...com a diversão da valentia dos do rugby
.....(muito na moda)
.....e dos forcados e dos dos desportos motorizados
.....e não dos que trabalhan muito e ganham pouco e regateado
.
... e imortal...porque resistirá aos federalismos e outros eufemismos
.....para imporem (ao nobre povo!)
.....ainda mais neo-liberalismo e militarismo
.
.
Viva Portugal!

(do caderno de apontamentos e historiazinhas do quotidiano)

Apontamentos e historiazinhas do quotidiano - 1

No "expresso" Fátima-Lisboa:

Estou farto de viajar com beatas (valha-me São Brel e as suas "bigotes")
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E eu que nunca fumei... nem uma ervita... rodeado de beatas por todos os lados, feito ilha perdida... das graças do senhor e da senhora!
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Aquelas duas tagarelas são verdadeiramente incansáveis. Maratonistas do paleio. As línguas devem estar a ficar azuis...
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Esta, aqui no banco mesmo ao lado, "terça" como se estivesse a fazer crochet. Já estive para lhe dizer que hoje não é terça, que é quinta.
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Valha-lhe deus, minha senhora! Terá assim pecado tanto?
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Respeito-a muito - respeito, sim senhora - e à sua tanta crença... mas também tenho direito a uma maldadezinha: vou abrir ostensivamente o ávante!, com a foice e o martelo bem visíveis, e ler um bocadinho do meu "terço", mas eu estou no meu dia... é quinta.
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Ai! que deus me perdõe por ter vindo introduzir um t'arrenego no terço que a senhora terça.

sábado, 27 de outubro de 2007

dedicatória para este retrato de ti

tu, no retrato
tu, fixada no retrato
tu. viva no retrato
tu, no retrato que bem te retratou
.
eu, amando-te
também no retrato
porque és tu que estás neste retrato

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Aqui estive, ontem, como se outro fosse!

Aqui estive,
adormecido e aberto.
Aqui me tiraram, de mim,
o monstro em mim alojado.

Aqui reacordei (ou renasci?),
no recobro do sentir e do ser.
Aqui, regressei da longuíssima viagem
e revi(vi) as caras queridas.

Aqui, nu, estiveram
todas as minhas misérias expostas,
isto é, postas em exposição
... no seu estado mais miserável.

Aqui gritei,
e todas as minhas dores vos foram ditas,
isto é, dores mal ditas
... e ouvistes o que queria calar.

Aqui volto,
e aqui me reencontro
cada vez que aqui volto.

(18.10.2007,
na enfermaria dos HUC onde fui operado a 14 e a 28.07.2006)

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Breve crónica

Em Vale de Vargos. Terra (e gente!) heróica na resistência antifascista e na reforma agrária.
Onde se realizava uma sessão da iniciativa "Civilização ou Barbárie", com base em Serpa.
Na sala da Junta, uma "plateia" bem composta naquela manhã de sábado, mais de meia centena de presentes. Depois das intervenções iniciais da mesa (onde estava também o "camarada presidente da Junta"), de um jornalista estado-unidense, de um mexicano, e de dois portugueses, passou-se ao debate.
As análises eram de grande seriedade e muita preocupação relativamente à conjuntura política (estas expressões...), mas o ambiente era caloroso, fraterno, de esperança porque de informação e de luta. Para a luta. Que continua.
E pede a palavra um homem. Daqueles dali. Daquela terra e daquela gente.
Com o seu cerrado "jêto de falari", começou por usar os termos vindos da mesa, agradecendo os contributo e o diagnóstico e, de repente, muda de rumo ao discurso...
Ó amigos... vou mazé contar uma estória:
Numa escola, a professora vê um aluno que lhe pareceu triste "que tens tu, mê filho?" "é que lá na nha casa nasceram uns gaticos...", "atão e não estás contente?", "nã tou não, senhora professora!, nã têm graça nenhuma... são cor de rosa... devem ser do pêesse...". A professora achou por bem não comentar e mudou de assunto. Dias depois, o mesmo aluno parecia muito contente, "olha lá ... já gostas dos gatinhos?", "atão não havera de gostar... já abriram os ólhos! ... são do pêcêpê."
.
(Que pena não ter ficado gravado... tinha muito mais graça!)

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Revolução

A revolução não é o revolucionário
.....e a sua luta
.....e a sua coragem
.....e a sua entrega
.....e a sua dádiva
.....e o seu sacrifício

A revolução é os que a fazem
.....com a sua luta
.....com a sua coragem
.....com a sua entrega
.....com a sua dádiva
.....com o seu sacrifício

A revolução não é o protagonista
.....e os seus ideais
.....e os seus gestos
.....e as suas palavras
.....e os seus poemas
.....e os seus actos

A revolução é a luta de todos
.....com as suas ideias
.....com os seus gestos
.....com as suas palavras
.....com a sua poesia
.....com os seus actos

A revolução não é hoje
.....como não foi ontem
.....como não será amanhã

A revolução é todos os dias!

E há os “imprescindíveis”
.....os que assumem e cumprem as tarefas revolucionárias
.....os que fazem as greves anónimas
.....os que não faltam às manifestações
.....os que resistem às prepotências
.....esquecendo o seu “tempo livre”
.....perdendo dias do seu salário tão curto
.....arriscando a repressão surda
.....sofrendo a violência cega e bruta

Mountolive

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

No dia do idoso


As maravilhas do buffet do INATEL

Aquela senhora tem 5 peças de fruta que mal cabem no pequeno prato.
Depois de ter comido 2-pratos de sopa-2, a corvina do prato de peixe, e a vitela do prato da carne, e de ter repetido os dois, vai atirar-se à sobremesa que tem sobre a mesa e deve, ainda, sobrar espaço dentro dela para a gelatina (faz bem às pessoas de idade...) e o leite creme.
Tudo a que tem direito, e em dose dupla. Assim se mata a fome ante(s)passada, ancestral.
.
Isto não é ficção. É um conto curto... com moral.