faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

croniqueta sobre estórias em papéis perdidos e uma fotografia não encontrada

Há 25 anos, em Moçambique, escrevi umas estóriazinhas e fiz uma fotografia. Para quebrar a aridez do trabalho, ou melhor, para doutra forma "agarrar" o que vivia. Intensamente. Em Lichinga, em Metângula, lá no norte, perto do Niassa.
Estoriazinhas que recordo quando me preparo para partir para Moçambique. Com tudo tão diferente. Diferenças também em mim mas, se acaso não é ilusão minha, sou o que menos terá mudado.
Não vou ter a alegria de ir para casa de amigos, com quem tinha uma relação quase fraterna, não vou ver, na televisão, Samora Machel fazer um dos seus gestos espectaculares, com o derrube de letreiros que dividiam moçambicanos que enchiam uma plateia, não irei a Lichinga e Metângula...
À excitação de um regresso, passageiro mas regresso, junta-se a tristeza do que não vou encontrar. Outras razões para alegria encontrarei.
As estoriazinhas que então escrevi estão entre os papéis em que naufrago. Encontrá-las-ei quando não as procurar.
A fotografia, essa, não estou certo de a vir a encontrar.
Era do que chamei "monumento a uma guerra colonial". Entre os ramos de uma enorme árvore africana, perto de Lichinga (ou de Metângula?), lá no cimo e sob os focos de um sol que os fazia brilhar, os restos de uma viatura do exército português que uma mina fizera saltar.
Pedi para pararem o carro e, no meio do maior silêncio, fiz a fotografia. Há 25 anos. Veio no rolo para Lisboa, mandei-a revelar, vi-a, várias vezes, sempre emocionado. Não a encontro.
Mas não desisto, apesar da pouca esperança.
Outras trarei desta viagem. Até porque vou acompanhado... de companheira que fotografa e não perde papéis avulso e outros documentos!

«De todas as sementes lançadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas»
- legenda da gravura do José Dias Coelho, como me foi lembrado por um amigo.
E como há quem não queira que haja searas, tudo se faz para apagar da memória colectiva que houve mártires que derramaram o seu sangue. Não o consentiremos... porque cremos nas searas. E queremos as searas!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Hoje, agora...

Chove,
os pingos, grossos, tamborilam nas claraboias.
À volta,
tudo está cinzento, triste, magoado.

É o som e é a cor do dia,
mas, mais que o som e a cor do dia em volta,
é como oiço e vejo, bem cá de dentro, o som e a cor do dia,
oiço a chuva e vejo(-me) cinzento, triste, magoado.

19 de Dezembro,
hoje de 2007,
19 de Dezembro que também é,
- e que, pelo que foi, sempre será -
19 de Dezembro de 1961!

Mas, hoje, o dia 19 de Dezembro é de 2007!
E hoje, agora, há que lembrar
mas, e depressa, há que reagir,
há que continuar a vida e a luta que é a vida.

Começo a ouvir os pingos grossos de chuva como música,
ensaio tons para pintar de outra cor o cinzento do dia,
não deixo o pastor que chora pintar doutra cor as papoilas dos trigais,
estou, aos poucos, a trazer o vermelho vivo cá para dentro
... é o seu lugar!

Um dos últimos desenhos de José Dias Coelho


19 de Dezembro de 1961!

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.
Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.
- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)
- Comes outra fatia, camarada?
- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...
Através da janelado quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.
Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.
Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.
Mário Castrim
(«Viagens», edição da Célula do PCP da Renascença Gráfica/Diário de Lisboa, para a Festa do Avante/77)

Com um apertado abraço de reconhecimento ao Fernando Samuel e ao Cravo de Abril

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

ninguém dá lume ao Jorge Palma

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

De outros...

E porque:
pedras contra canhões disse...
se tivesse de escolher uma foto para ilustrar este conto, seria esta. muito embora, claro, dentro dessa casa não se passem destas tempestades.
apenas a imagem. sem outras ideias.
.
(comentário a esta foto, e sua legenda,
em foto&legenda)

De outros...

Thursday, December 13, 2007

o mito segundo narciso
quando ela morreu, o mundo, infelizmente, não cessou. e os dias passavam agora penosos, eras a cada lua. na floresta onde caçavam, vagueava inconscientemente, entorpecido. havia um vazio nos seus olhos que só viam saída nas lágrimas cheias que pendiam, permanentes.


quando ela morreu, o mundo, infelizmente, continuou. e ele, perdia a continuidade do seu ser, um pedaço de alma, como um pedaço da vida. narciso arrastava os pés por entre as árvores. eco seguia-o sentindo a dor.


nas sombras oblíquas da floresta, por onde haviam passeado as musas nas horas matinais que se iam e por onde hades passearia nos instantes que se seguiam em busca de perséfone para se saciar, jazia um lago que reflectia o céu por entre folhagens. quando caiu, debruçou-se, infinitamente triste, sobre as águas espelhadas e serenas.


ali, mesmo ali, jazia a imagem gémea dela. não mais desviou seus olhos da água que chorava com ele. eco, bela, olhou seu corpo moribundo e chorou. no lugar onde narciso adorou a sua irmã, deixou uma flor que ali cresceu.



(posted by pedras contra canhões at 10:52 PM em open-source poetry.blogspot.com)

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Porque!

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

ninguém dá pela vida
porque
ninguém dá sangue

(isto é o que se pode deduzir de um cartaz, ali ao Lagarinho...)

domingo, 16 de dezembro de 2007

apeteceu-me, pronto!,
publicar esta foto do Nuno Abreu...

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

ninguém dá nada por mim
ninguém dá nada por ti
ninguém dá nada por ele
ninguém dá nada por nós
ninguém dá nada por vós
ninguém dá nada por eles

Pinçamentos, sintenças e afodismos

ninguém dá horas
(nem o relógio de pulso, nem o sino da capela)

sábado, 15 de dezembro de 2007

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

ninguém dá avanço ao adversário*
* - a não ser o Juventude Ouriense ao FêCêPê
E hoje por aqui me fico, porque
ninguém dá mais de 2 por dia

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

Digo eu, debaixo do duche, o tempo não dá para nada!
E logo me lembro do que ele, o homónimo Faria, anda p'raí a escrever danadamente, a partir da cesariana das neves sentença de que não há almoços grátis, que é digna dos tribunais plenários de antanho, mas não tão antanho como isso porque eu os vivi.
Vai daí, com a devida informação a quem tem direitos de autoria (e imprimatur genérico por ele concedado), passei o resto do dia em catárt(astróf)ica anotação.
Sai o primeiro afodismo, que outros virão vindo(-se):
.
ninguém dá a César o que é das Neves

"Pinçamentos, sintenças e afodismos"

Amigos meus (alguns só conhecidos) insistem na ideia de que tenho muitas vitudes e outras qualidades para mais isto e mais aquilo. Mas logo acrescentam que as terei apesar de ser comunista. Pelo que nem isto nem aquilo ou só um bocadinho. E a levar porrada em todas as oportunidades.
Hoje, apetece-me escrever o que tantas vezes sinto e penso. Sou o que sou e como sou porque sou comunista. Ponto final.

sábado, 8 de dezembro de 2007

"Desfruitando" e cronicando

Aqui estou eu, com os meus maduros anos colhendo o doce fruito (ando com esta do Camões metida na cabeça, que é que se há-de fazer?!) desta manhã esplendorosa. Agora posto em sossego, que talvez melhor se dissesse em ressaca, depois de uma noite... agitada.
E sobre ela reflectia. Sobre a noite e o seu final. Que intempestivo foi, com abandono de agradável jantar de empresários do concelho (onde estava como membro da Assembleia Municipal e empresário, pois então), e aproveitamento da deserção para ir assistir, num "café da noite", à representação de textos a que dei as versões finais. O que não estava no programa das "minhas festas".
Mas é que ele há coisas!
Quando, no jantar, começavam as hostilidades pós-repasto que iriam desembocar numa "oração de sapiência" de Bagão Félix sobre a empresa, que até estava com curiosidade de ouvir, eis que a preliminar entrega de prémios, medalhas e essas coisas, aos empresários distinguidos no ano, começou com um relambório a justificar a entrega da 1ª medalha de ouro da ACISO (associação do comércio, indústria e serviços de Ourém), como se fosse um relato histórico com início em 13 de Maio de 1917 e uns pastorinhos que viram (não foi que teriam visto... foi que viram!) uma senhora em cima de uma azinheira, mais brilhante que não sei quantos sóis, e que disse coisas(teria dito, digo eu, até porque tem havido alterações ao que dito foi que teria sido dito...), coisas que depois foi repetindo até Outubro e por aí fora.
Primeiro, fui apanhado de surpresa, a seguir tomei-me do siso que estaria faltando ao aciso relato em jeitos de crónica histórica, e abalei porta fora. Nem a tempo de saber quem iria receber a tal primeira medalha de ouro dos empresários oureenses, mas já confirmei que foi o santuário. Pois... empresário com medalhinha de ouro.
Resmungando, melhor diria blasfemando, fiz os alguns quilómetros entre para lá de Boleiros e Ourém, e aproveitei para ir ao tal "café da noite" ver a dita representação. E cheguei a tempo de em tudo participar. Em mais uma manifestação de ausência de respeito pelos outros, com o espaço dividido em dois públicos, um desinteressado, perturbando, agredindo com "bocas" e aplausos soezes o que não ouviam, outro interessado, a ver e a fruir da esforçada (naquelas condições...) e excelente interpretação de "o cliente nunca tem razão" e "vende-se coração".
E ainda sobrou para, na casa de banho dos deficientes, se juntar o grupo todo a fazer o "briefing" (isso...), para que também fui convidado e em que participei com todo o gosto, tentando ajudar a levantar alguns "estados de espírito", alguma moral que estava, injustamente, pelas ruas da amargura.
Cá por mim, gostei de ouver, assim dito e representado, o que teve a minha redacção final. Naquelas condições, foi excelente. Noutras, mais excelente será.
.
E o sol aquece-me os pés desclaços e a alma. Vamos lá a ver o hóquei daqui a bocado, lá para o fim da tarde.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

De um livro "em estaleiro": quando o assassinado é "culpado" do assassínio...

continuação
«Mas, se foi este o libelo acusatório, isto é, acusação, com base na legislação, para os factos provados, suas agravantes e atenuantes (isto na “tradução” de um leigo…), a sentença não deu como provada a intenção de matar para poder convolar (o que quer dizer passar rapidamente de um estado a outro) a acusação do crime previsto punido pelo tal art.º 349.º (homicídio voluntário) para a do crime do art. 361.º do mesmo Código, que é apenas o de “ofensas corporais voluntárias de que resulta privação de razão, impossibilidade permanente de trabalhar ou a morte”.
(...)
Se o libelo acusatório referia 4 agravantes – espera, noite, especial obrigação e arma – o tribunal militar decidiu que não existia a agravante espera… “pois até à chegada da vítima o réu não formulou o propósito de sobre ele disparar” o que é verdadeiramente inacreditável, pois, existindo a espera, se poderia perguntar como formularia o réu o propósito de disparar e de matar (ou de causar ofensas corporais…)? Disparando tiros para o ar, ou treinando-se atirando sobre outros alvos que não Dias Coelho?
Mais inconcebível ainda considero o apagamento deste agravamento por, relativamente ao objectivo deste meu escrito…, me considerar testemunha privilegiada para a agravante “espera”, pois dela tive a percepção e sensibilidade quando, pouco antes das 20 horas circulava pelas cercanias para tomar posição para o encontro com Dias Coelho no lugar antes marcado.
Por outro lado, o mesmo tribunal acrescentou quatro atenuantes, que deu como provadas, o bom comportamento anterior do réu;
. a confissão espontânea;
. o possuir vários louvores;
. o ter agido, com os seus disparos, para evitar que se frustrasse a missão que estava desempenhando.
Custa a acreditar!
Quanto à primeira “atenuante”, não resisto a usar, em resumo que me imponho, parte da argumentação do advogado da recorrente, invocando imagem comparativa com a quadrilha de Al Capone: «só por ridículo, com efeito, se diria que um gangster “filiado” em semelhante quadrilha, e em ablativos do seu primeiro assalto, ou do seu primeiro assassinato, pudesse considerar-se bem comportado pela simples razão de ainda não ter nem roubado nem morto ninguém.»
A confissão espontânea não existiu, até porque, entre outras coisas, o Tribunal deu como provada a voluntariedade do disparo e o réu negou a voluntariedade do disparo… mas confessou (e não espontaneamente!) o que era de todo impossível de negar: que disparou! E, em tudo o mais, foi falso e mentiroso. Como se comprovou.
Relativamente à atenuante “louvores” que o réu possuía, chega a ser surrealista que eles tenham sido concedidos pela PIDE, e é escandaloso que o primeiro louvor tenha sido atribuído a 27 de Dezembro de 1961, oito dias depois do crime de assassinato para que serve de atenuante. Ler esse louvor define bem a instituição criminosa que era a PIDE e como era servida por criminosos. Apenas o deixo em rodapé[1].
Por último, a atenuante de que o réu teria disparado para evitar que se frustrasse a missão que executava nem merece que com ela se percam muitas palavras. O réu teria disparado dois tiros, o segundo à queima-roupa (!)[2], sobre um homem agarrado por um seu “colega”… para que a sua missão não se frustrasse! A não ser que a missão fosse a de matar um homem por ser suspeito de pertencer ao Partido Comunista Português. Quase só faltou acrescentar que a culpa do assassinato foi do assassinado, de Dias Coelho por ter tentado fugir à prisão e, assim, impedir os agentes da Pide de cumprirem a sua missão de o prenderem.
A cada passo me confronto, ao recordar ou ao informar-me sobre o “caso Dias Coelho”, com questões verdadeiramente essenciais.
E não termino esta introdução ao que era minha intenção inicial de escrever sobre os meus 50 anos de economia e militância, sem sublinhar o “pequeno pormenor” deste julgamento e desta sentença de que me aproveitei para contar o dia 19 de Dezembro de 1961, ter sido a seguir ao 25 de Abril de 1974, com finalização em 1976/princípio de 1977, tempos de que memória dos mais novos está envenenada com “informação histórica” completamente contrária ao que estes factos revelam.
A luta de classes nunca deu tréguas em Portugal (nem noutro lado qualquer) e os fautores desta sentença serviam uma classe, a mesma que era servida pelos agentes da PIDE, que prendiam, torturavam e matavam, e que, quando a relação de forças obrigou a que fossem julgados, tiveram quem os defendesse em vez de os julgar, ao menos com neutralidade na aplicação das leis. Para aqueles juízes, acima de tudo, antes de tudo, José Dias Coelho era comunista!

.
[1] “…louvo o agente de 2ª classe António Domingues porque, cumprindo sempre com zelo, dedicação e espírito de sacrifício, as missões que lhe foram confiadas, contribuiu grandemente para que fossem capturados elementos subversivos qua na associação secreta denominada Partido Comunista Português desenvolvem larga actividade directiva e cuja acção representa ameaça e perigo para a ordem social estabelecida”.
Ordem de serviço nº 361/61 da Pide, assinada por Homero de Matos.

[2] - A morte de Dias Coelho
I. O disparo sucessivo de dois tiros de um agente da Direcção Gerai de Segurança sobre um suspeito, militante do Partido Comunista Português, sendo o segundo tiro com a arma muito próxima da roupa da vítima, perfurando a bala o esterno, a cartilagem da 5ª. costela, o pericárdio e o coração, provocando a sua morte, consubstancia a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 361 § único do Código Penal de 1886 (ofensa corporal que produz a morte).
(revista Sub Judice 25 - Justiça e Memória, Almedina)

De um livro "em estaleiro": O assassinato de José Dias Coelho... mais um "único" crime da PIDE?

Ontem, no Público-P2, havia larga referência, com chamada na primeira página, ao assassinato, há 42 anos, do dr. Ferreira Soares, pela PVDE, depois PIDE, depois DGS, pela criminosa polícia política do fascismo. No seu blog - o tempo das cerejas -, Vitor Dias colocou um post que, pela sua oportunidade e pertinência, transcrevi em o anónimo do séc. xxi.
No entanto, ficou a roer-me cá por dentro aquela qualificação de "único", embora interrogativa, para o crime, e a insídia de que assim teria o PCP construído mitos, criando os seus mártires.
Tudo isso é tão baixo!
Único... o assassinato de Ferreira Soares? Não resisti a antecipar-me à que será a eventual publicação no próximo ano de um livro que estou a preparar, e a transcrever um curto trecho que ficará entre as suas primeiras páginas:Sei, sei hoje, que este acontecimento, que o assassinato de Dias Coelho, aquele dia 19 de Dezembro de 1961, se tinha gravado bem dentro de mim.

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«(...) É certo que frequentemente referia o episódio a camaradas e amigos, e que, de vez em quando o lembrava, ou ainda que, nalguns dias 19 de Dezembro e quando o enterro de amigo ou familiar me levava ao cemitério de Benfica, ia visitar a pequena campa do camarada, onde um quase desapercebido grupo escultórico de uma mãe amparando um filho (uma “Pietá”) assinalava o local.
É certo que, depois do 25 de Abril de 1974, segui atentamente o julgamento dos pides que o assaltaram e assassinaram, e senti a vergonha das sentenças. Mas também é certo que, talvez por pudor, por não pretender qualquer protagonismo em tais circunstâncias, não tomei posições, embora ao mesmo tempo sentisse alguma pena por ficar completamente à margem de acontecimento de que fora testemunha (ou quase).
Mas tive a prova da enorme importância que tem para mim o assassinato de Dias Coelho a partir de dois factos.
O primeiro foi o de, ao acordar de uma anestesia, parte de uma delicada intervenção cirúrgica a que fui submetido em Julho de 2006, ter sido dos acontecimentos da minha vida que mais depressa me vieram ao consciente, com todos os seus pormenores.
O segundo foi o facto de, ao decidir fazer esta espécie de “balanço” da minha vida, ou melhor, do meu meio século de economista e de militante do Partido, antes mesmo da lembrança do encontro com Carlos Aboim Inglês, em Junho de 1958, me ter lembrado do dia 19 de Dezembro de 1961, e o primeiro documento que procurei (embora não tenha a intenção de fazer muitas buscas documentais, e querer, sobretudo, contar aquilo de que me lembro e como o vivi) foi o pequeno caderno O caso Dias Coelho, da autoria de Fernando Luso Soares, advogado de Maria Tereza Tengarrinha Dias Coelho, assistente no recurso para o Supremo Tribunal Militar da sentença do julgamento de António Domingues, o assassino confesso de Dias Coelho.
(...) com esse caderno, e a possibilidade de conhecer a vergonhosa sentença de que se recorria, fiquei a saber, em pormenor, o que acontecera naquele dia.
Dizia o libelo acusatório:
«O Ex.º Promotor de Justiça (…) acusa o réu António Domingues (…) de ter cometido um crime previsto e punido pelo art.º 349.º do Código Penal, concorrendo as agravantes 11.ª (espera), 25.ª (noite) e 28.ª (arma) do art.º 34.º do mesmo diploma porquanto, no dia 19 de Dezembro de 1961, os então agentes da pide António Domingues, Manuel Lavado e Pedro Ferreira (…) foram encarregados pelo seu chefe de brigada da mesma polícia, José Gonçalves, de localizar e prender José António Dias Coelho, também identificado nos autos e militante do Partido Comunista Português. Para tal efeito, deslocaram-se à zona da Rua dos Lusíadas, desta cidade de Lisboa, onde se colocaram já de noite, pelas 19 horas, a uns cem metros uns dos outros, aguardando a vinda do referido José António Dias Coelho. Tendo este passado pela Rua dos Lusíadas cerca das 20 horas e tendo-se apercebido até da presença dos referidos agentes, começou a correr pela mesma artéria, derivando depois para a Rua da Creche no sentido do Largo do Calvário. Em sua perseguição correram os agentes referidos. Já na Rua da Creche, sensivelmente em frente do nº 30 de polícia, foi o José António Dias Coelho agarrado pelo agente Manuel Lavado. Entretanto, chegou junto dele o réu que desfechou dois tiros de pistola marca “Star” – calibre 7,65 mm, examinada nos autos e que lhe estava distribuída – sobre o referido José António Dias Coelho.»
continua

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Há muitos anos, tantos que somam umas boas décadas, havia uma colecção de cadernos, creio que se chamava “mosaico”, que publicava contos de autores conhecidos.
Muito jovem, lia-os com sofreguidão e de alguns me lembro com frequência. Ainda agora, neste fim-de-semana, ao olhar para uma capa de um semanário, o que me veio à memória foi um conto sobre “o homem que deixara de dormir”, que estou quase quase certo que era de Pitigrilli mas não consegui confirmar.
Contava esse conto, a que talvez eu acrescente ou diminua uns pontos, uma entrevista que uma jornalista fora fazer a um homem que estava a ser famoso porque… deixara de dormir.
A jornalista começou, naturalmente, por perguntar, ao homem que deixara de dormir, porquê essa sua decisão. E o homem respondeu que resolvera deixar de dormir porque achava que dormir era uma perca de tempo, que era assim uma espécie de antecipação da morte, ou uma morte a prestações. Perguntado, depois, como conseguia ele esse objectivo, o homem explicou que fora um esforço de vontade, algum treino, alguns truques.
A jornalista, interessada no tema, continuou a colocar perguntas, a fazer comentários, e a conversa parecia animada quando, no final de um dos seus comentários, talvez um bocadinho longo, a jornalista perguntou, ao homem que deixara de dormir, se não tinha saudades de uma boa soneca. Não teve resposta. Estranhou. Levantou os olhos do caderno onde tomava notas, olhou mais atentamente o homem, no sofá em que estava amodorrado, e percebeu: o homem adormecera!

Que me perdoe o Pitigrilli, se acaso é dele o conto e se puder…, porque o conto só mais ou menos seria assim.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Como se fosse ficção (do cordel)

Estória de um adormecer e de um acordar
com gato
Regressara tarde (isto é, a más horas) da digressão hoquista. Nevoeiro e paragens necessárias tinham atrasado a chegada.
Despi-me na casa de banho para não perturbar o sossego em que já estava posta a casa e a bela, mais ou menos como Inês antes de chegarem os horríficos algozes, ou carrascos, que deram cabo dela. Carrasco que, neste caso, seria eu, ao dar cabo, mas só do sono!, da minha Inês, que nem Inês se chama….

Quer dizer, deixando os Lusíadas para outra altura…, enfiei-me na cama sorrateiramente, com a grande preocupação de não incomodar quem nela dormia. Para não agravar as coisas…
Adivinhava o adormecer resmungado “…nunca mais chega… já estou cheia de sono… vou mazé para a cama… amanhã conversamos… vai ouvir das boas… isto dos hóqueis! … ainda por cima não telefonou”.

Pois não. Não telefonara. E não fora por esquecimento. Conhecedor dos hábitos da casa e dos seus moradores, receara, quando me apercebi do atraso, que já fosse tarde demais e já ela tivesse tomado a decisão de ir para a cama… e, se estivesse a começar a adormecer quando tocasse o telefone, seria pior a emenda do telefonema que o soneto do atraso na chegada.
Em resumo, retomando o contar e deixando as reflexões e justificações para a conversa matinal, enfiei-me na cama sem minimamente perturbar o sono de quem já lá estava.
E rapidamente adormeci, até para recuperar dessoutro atraso, do atraso relativamente a quem já teria o avanço de umas boas meias horitas de sono.

Só fui acordado, mas pouco…, pelo levantar dela, cauteloso para não me incomodar – não fez mais que retribuir o que eu já tinha feito ao deitar-me…–, e resolvi fazer o que se faz nestas circunstâncias, virar para o outro lado…só mais um bocadinho!

Foi nessa altura que me apercebi de movimentações na cama que é de nós dois mas que um terceiro também considera sua. O senhor Mounti, esse mesmo, hesitava e deambulava. Hesitava entre acompanhar a dona no seu levante ou acompanhar o dono em mais uns restos de sono. Deambulava, em cima da cama – e de mim! –, enquanto hesitava.

Eu, cá pelo lado, na minha decisão de ficar mais uns quartos de hora, procurava a posição mais confortável. E estaria quase a encontrá-la, quando, numa das voltas que estava a dar ao corpo, coloquei o pé de maneira que o dito Mounti achou a adequada para se aninhar. Encostou o corpito todo à concha do pé e decidiu-se: é aqui que fico!
E pronto, tive eu de parar ali, assim naquela posição, tive eu de parar, ali e assim, com a busca da que poderia ser a minha posição e deixei-me ficar, sossegadinho, com o gajo-gato aconchegadíssimo ao meu pé.

Bom, para acabar a estória, em vez de quartos de hora alonguei para meias-horas o que me poderia ainda faltar de sono. Por culpa dele. Que ainda lá ficou quando me levantei e vim para aqui fazer desta. Que assino

Sérgio Ribeiro