faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Para adormecer meninos e meninas

"Havia uma velha que tinha um gato e que debaixo da cama o tinha...", assim contavam as avózinhas aos netinhos, nos tempos de haver avós e netos e carochinhas nas histórias. Nos tempos em que não havia televisão e os ingleses eram lá longe e eram moravam lá longe ou para os lados do Porto e não conheciam o Allgarve, embora fosem conhecidos pelos telephones, carros eléctricos, marcas de vinho do Porto (Sandeman, por exemplo) e outras coisas de que eram os donos. E até havia um livro para os netos mais crescidinhos que se chamava "A Família Inglesa", do senhor Júlio Diniz, que contava estas histórias em romances muito bonitas que acabavam bem, isto é, em casamentos felizes.
Agora as histórias (as que se contam) são outras: "Havia um tio que tinha um sobrinho e que no ministério do ambiente o tinha...". E as histórias contam-se na televisão a cores, e em repetição até à exaustão. E há DVDs que, afinal, não servem para nada. Mas, em compensação, há cabalas a correr. Diz-se. E as historias não são nada bonitas, apesar das meninas tocarem piano e falarem francês.
Tudo muito free e muito pouco fair.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Ditos e factos

Falava-se de frio. Do frio que está.
O homem confirmou o que vinha mostrando. Que era... um homem! Dos "antigos". Dos "a sério". Sem ambiguidades. Muito... homem. E não digo mais para não repetir coisas por ele ditas sobre "sítios" onde os tinha e a cor (ou ausência de cor) dos "ditos", e o acordo que tinha (mas só nessas matérias...) com o Papa relativamente à homosexualidade (ele não disse homossexualidade, claro...), e com o Retor do Santuário sobre isso da tão falada violência doméstica onde não se deve "meter a colher".
Mas falava-se de frio. Do frio que está.

"... o quê?, collants?, ou lá como se chama?
Eu?! Isso são modernices amaricadas... um homem não usa collants.
Eu cá sou muito homem... eu uso ceroulas!"

Fartei-me de rir.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O Flávio

O Flávio tinha 19 anos.
O Flávio continua, em cada um de nós, com 19 anos!
O Flávio era um homem, um amigo, um camarada.
Sabemos que o Flávio é uma nuvem, uma sombra, um "buraco negro" na vida de muitos de nós:
dos pais, do irmão, dos amigos, dos vizinhos, dos que foram seus colegas, dos que foram seus professores, de quem o conhecia. Dos camaradas.
Porque morreu quando começava a viver.

O Flávio tinha 19 anos.
O Flávio continua vivo, em cada um de nós. Com 19 anos! Como há já mais de 3 anos.
O Flávio merecia viver uma vida. A sua vida. Para contribuir para que a vida fosse melhor para os outros, para nós todos.
Nós não merecíamos ter perdido o Flávio. Por isso, o guardamos dentro nós.
Temos de preencher a muita falta que ele nos faz.
Fazendo o que sabemos – ah! sabemos – que ele faria se estivesse entre nós. Fazendo o que ele faria, como um homem, adulto e digno, como um amigo, como um camarada.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Avulsos do Caderno Vietname - 5

Na véspera, a sandália dera o berro… Abrira a bocarra, e ficou incalçável.
Deitei-me com essa preocupação. Ao levantar-me, antes da partida para o delta do Mekong, tive de, a contra-gosto, calçar meias e sapatinhos. A Zé, apercebendo-se, deu logo sábios conselhos: “metes a sandália aí num saco de plástico para, se houver tempo, vermos se há por aí um sapateiro que te cole ou coza isso …”. Assim fiz. Disciplinadamente.
Ao chegarmos à carrinha, eu de saco de plástico na mão, foi dito à Chau o que se passava e perguntado se não haveria, no regresso, possibilidade de arranjar a sandália. Eu, fazendo-me forte, ainda disse: “… ou então, onde comprar umas sandálias novas, que não me sinto nada bem com meiasinhas e sapatões” (isto, claro, em inglês para ela perceber…).
E lá fomos, na madrugada, a caminho do mítico delta do Mekong…
Viagem longa. Mais de três horas. Conversando com a Chau, procurando saber mais coisas sobre a terra e a gente dela. E ela dando troco. Simpática, informativa.
Parámos numa estação de serviço vietnamita, a meio do percurso, para o que necessário fosse nos cómodos à disposição. Sempre agradável, sempre calmo. Uma grande serenidade. Nada de autoestradas e de correrias.
Voltámos aos nossos lugares – embora por vezes mudássemos de posições entre nós… –, sempre com a Chau e o motorista no banco da frente. De vez em quando conversando os dois, lá na língua deles. E nós, cá atrás, a conversar na língua nossa ou só a ver paisagens e outros viveres.
Chegámos a Cai Be e… embarcámos. Para um fim de manhã, almoço e princípio de tarde que fica nas recordações vivas, depois daquele delta ter sido memória longínqua de tempos idos.
Mas não é do Mekong, e dessa experiência tão rica, que venho contar. Venho contar que, depois de passar pelo mercado nos passeios, e de termos convivido com quem ali fazia a sua vida, voltámos à carrinha,

onde nos esperava o motorista, que em terra ficara. No meu lugar, o saco de plástico com a sandália, como o deixara. Perdão... não como eu o deixara. É que a Chau pediu-me para ver se estava tudo bem. E eu vi. E não estava tudo bem, estava tudo muito melhor, com a sandália impecavelmente colada, de goela fechada. Fiquei eu de boca aberta.
Tinha sido o motorista (como é que não sei o nome do homem?) que, durante o nosso passeio, resolvera o problema que eu até desconhecia que ele conhecia. Ah! e, servindo a Chau de intérprete, deu-me um recado do sapateiro: que a sandália era de muito boa qualidade, e que eu não precisava nada de comprar sandálias novas!

Que gente esta!

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um gato é um gato mas podia chamar-se panela de pressão ou ter outros nomes como os que me apetece chamar ao nosso gato depois de mais esta noite

A civilização, ou aquilo a que se dá o nome de civilização, ou de sociedade, ou lá do que for e na língua que for, faz-se de palavras, comportamentos, convívios, conceitos. De várias espécies e géneros, e entre espécies e géneros, inclinações e idiossincrasias.
A um animal com determinadas características, em que são identificadores o pêlo, as orelhas, os olhos, as recolhidas garras e os afilados dentes, dá-se o nome de gato ou gata, segundo o sexo. Isto em português, porque noutras línguas se lhes dá o nome de chat, de cat, de Katz, e outros que cultura do escriba não alcança. Porque se lhe chama gato? Vá lá saber-se. Haverá quem saiba, mas não vem ao caso. Poderia chamar-se-lhe, em onomatopaico ou esperanto, ron-ron (ou panela de pressão, como já ficou no título). Mas, insiste-se, não vem ao caso.
Ao caso vem que, ontem, quando deslizei para a cama que é dela e minha, para onde ela se retirara mais cedo como acontece com frequência, já o panela de pressão lá estava. Aconchegadinho no sovaco e em vias de silenciamento e surdina depois dos ron-rons que tanto enternecem. Como acontece com frequência para não dizer (quase) sempre.
E assim se começou a dormir. A três e em espaço encurtado.
Até que, às tantas da madrugada – poucas horas – o dito gato resolveu ir lá fora. Até se pode compreender… Mas voltou excitado. Chovia e ele, o gato, vinha todo molhado. Vá de fazer uma das suas cenas. Muito expressivo linguisticamente, começou com os miaus adequados e, claro, teve resposta de dentro da cama, do meu lado direito e directo. Tento traduzir o gatês em palavras e expressões de gente: “Minha dona, chove a cântaros…” “Humm… está bem, gatinho querido…”, “Pois é, mas estou todo encharcado…”, “Ah, pois… pois… mas… queres que te enxugue, não é?”, “Claro, donaminha, de que é que estás à espera?!”, “Tá bem, tá bem…”
E lá saltou ela da cama, pegou num felpudinho pano para estas ocasiões e, às 3 da madrugada, esteve a secar o gatinho, que se rebolava de gozo, oferecendo os flancos ainda não suficientemente enxutos. Ron-ronando…
E eu a resmungar, incompreensivo e incompreendido.
Tudo acalmou, não sei bem ao fim de quanto tempo, e lá se conseguiu nova ajustada acomodação corporal de gatos e homens (no caso uma mulher, um gato e eu).
Mas o sono do bichano (também se lhes chama assim) foi curto, de breves horas, pois resolveu ir, de novo, experimentar as delícias de chuva a cair-lhe no sedoso pêlo e nos fartos bigodes. E voltar para a acariciante acção de enxugo e festinhas da barrigota (é assim que ela diz…). Não vou repetir a prosa que seria o relato, antes das 7, do que aconteceu depois das 3. Da madrugada e manhã.
Ela, a dona, ainda tentou re-readormecer mas desistiu. E disse, com ar compreensivo, em resposta à minha resmungada e irredutível incompreensão para com os eventos, “vou deixar-te dormir mais um bocadinho…”. “Obrigadinho...”, disse eu, se é que disse alguma coisa. E lá foram. Os dois.
Aproveitei todo o espaço e mergulhei de decúbito ventral, isto é, de barriga para baixo e pernas esticadas, numa derradeira tentativa de sono.
E estava mesmo a começar o verdadeiro matinal mergulho, quando o bichano voltou. Ao que parece, por informações posteriores, o gajo foi com a dona à casa de banho, comeu um frugal pequeno almoço e, às escondidas, quando julgado no quintal, escapou-se para o leito conjugal de que eu julgara ter tomado posse total. Foi muito cauteloso, e tal e coisa. Pata ante pata saltou para cima da cama, sem fazer quaisquer ondas, escolheu o espaço entre as minhas pernas, aninhou-se, e pousou a cabecita no meu tornozelo como se fosse fofa almofada. Uma ternura poisada naquele meu verdadeiro calcanhar de Aquiles.
Ainda passei pelas brasas, mas o apelo da prosa chamou-me aqui, ao computador. Porque esta noite, isto!, tinha de ser contado. Ele ficou lá. Ele, sim, com posse (e pose) total.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Vietname no anónimo

Se algum visitante destas ficções do cordel (que nem todas o são) quiser ver o que publiquei sobre o Vietname pode ver aqui.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Carnet de prison

A ler
“L’anthologie des mille poètes”


Os Antigos gostavam da natureza e de a cantar:
Rios, montes, nuvens, neve e flores, lua e vento.
Hoje, há que vestir de aço os versos do nosso tempo;
Os poetas estão no combate e têm de saber lutar!








(quando Ho Chi Minh rimava para que o tempo de prisão passasse mais depressa)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Avulsos do Caderno Vietname - 4

21 de Dezembro
.
(...) Num desses “resorts” ficámos. Recente, acolhedor. Na recepção… fomos muito bem recebidos. E depois!, bem… depois, chegados aos quartos, fomos agradavelmente surpreendidos pela simplicidade delicada, cheia de bom gosto, de delicadeza, confirmando e reforçando as impressões que vínhamos acumulando. E por mais uma surpresa. Boa.

É que eis senão quando, estávamos, a Zé e eu, roupões vestidos, a descansar do transporte e do arrumo das bagagens, quando bateram à porta e entraram duas jovens empregadas do hotel com os parabéns num ramo de flores e num bolo com uma vela. E em muito riso e alegria. E quando pensávamos que por aí se ficariam as comemorações, desfolharam, pétala a pétala, as rosas do ramo de flores, com elas formaram um enorme coração em cima da cama, colocaram no meio o bolo com a vela. Sempre em grande alegria, com risos e ditos.Acabada a obra (de arte), as duas só queriam cantar o "merry (?) birthday", os parabéns a você (o você que era eu!).
Quisemos associar a Iva e o Manel, mas eles demoravam e as duas jovens estavam impacientes. Excitadas. Queriam cantar.

[Conversei com elas no mau inglês (de parte a parte). Para compensar o que já está escrito por aí, páginas atrás: “Quantos anos faz?” “Quantos me dá?” “50?!” (se bem traduzi fifty…) “73!” “It’s not possible…”. Recuperei muito da anterior “avaliação”... dos "eighty"!]

Finalmente se cantou. E se bateram palmas. E se riu muito. Foi mesmo bonito!

Já, noutras alturas e circunstâncias, outras mas sempre parecidas, escrevi coisas assim como esta que me está a apetecer escrever agora:

Que fazer da vida?
vivê-la,
vivê-la com,
conviver,
aniversariá-la!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

“Hoje vai ser um dia assim…”
(disse ela)



Hoje vai ser um dia assim…
de aeroportos.

Hoje vai ser um dia assim…
de voos e sonos.

Hoje vai ser um dia assim…
a transbordar para amanhã.

Hoje vai ser um dia assim…
de Paris antes de Lisboa.

Hoje vai ser um dia assim…
da Élio do Rego antes do Zambujal.

Hoje vai ser um dia assim…
do regresso a casa e ao Mounti


30 de Dezembro de 2008

(e foi um dia assim… e quase transbordou para 2009
... e o papelito em que isto foi rabiscado esteve quase a ser rasgado!)

Pinça mentes

Miguel Ângelo bateu com o martelo no joelho da estátua de Moisés e ordenou-lhe “fala!”. A estátua, ainda que de Miguel Ângelo, não falou. Não tinha vida, por perfeita que fosse a pedra trabalhada.
O escritor queria que as palavras por si escritas tivessem vida, e pediu-lhes que fizessem balanço do que ele com elas escrevera. Mas as palavras, porque só às suas palavras pediu, não lhe puderam responder.
E se ele tentasse, sei lá… de vez em quando..., ouvir ou ler as palavras dos outros? Sei lá… por exemplo..., se aceitasse comentários nos seus blogs?, ainda que, relativamente a intrusos, usasse os cintos e os suspensórios de todas as cautelas e seguranças para todos os efeitos. Sei lá… é que os outros não são nem de pedra nem só existem nas suas palavras e pelas palavras suas. Dele.
Há mais palavras, por geniais que as suas, quando se juntam, consigam, por vezes…, ser. De qualquer modo, as palavras entre si, para si e para ele-escritor, não falarão nem farão balanço. Como nada disseram ou dirão se não se cruzarem com outras palavras. De outros. Só assim tiveram, e terão, vida.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Avulsos do Caderno Vietnam - 3

Entraram os dois no avião em Bang-Coque. Como um casal no regresso de lua de mel ou isso. Muito altos e magros, os dois. Ele, calmo, diria... normal. Ela, agitada, “eléctrica", hiper-activa. Gestos rápidos, bruscos, duros.
Logo à partida, antes da dita. Na arrumação das bagagens. Arrumou, desarrumou, arrumou. Desarrumou, abriu um saco de onde tirou um baralho de cartas. Que, assim que se sentaram – sentado estava ele há que tempos… –, ainda como o avião com as rodinhas no chão, ela baralhou e baralhou e baralhou com uma perícia profissional, casinamente.
Jogaram uma suecada lá da terra deles. Se calhar, a Suécia…
Ele, evidentemente, por arrastamento e bonomia. Mas ela depressa se cansou. Estava ainda o avião a ganhar altura e já ela subia mais que o avião. Amarinhou para o porta-bagagens, desarrumou, tirou o saco, abriu o saco, meteu lá as cartas, fechou o saco. E a portinhola.
Ele, sossegado que estava, sossegado ficou. Ela desembrulhou um apoio pneumático para o pescoço, soprou, soprou, encheu-o, colocou-o, fez menção de ir dormir. Fechou os olhos. Eu, a três-quartos, bem vi fecharem-se-lhe os olhos.
Logo os abriu. Os olhos, e a luz do tecto, e um livro. Começou a lê-lo, com o dedo a correr as linhas e a virar a página antes de a acabar de ler, levando os olhos e o corpo todo, magro e maleável - apesar dos gestos duros -, para as primeiras linhas da página par. Parecia concentrada, tranquila para a viagem em cruzeiro. Qual quê?! Engano...
Cansou-se depressa da leitura. Foi à casa de banho. Fazer o que presumo. Voltou no tempo adequado (acho eu, relativamente ao que presumi). Sentou-se. Em posição de ioga. Por minutos. Que digo eu? Esteve segundos na postura.
Levantou-se. Abriu o local das bagagens, e tirou o saco e abriu o saco, um saco. Gestos breves, secos. Tirou um kispo com capuz. Fechou o saco, colocou-o no sítio, fechou a portinhola. Enfiou os braços no kispo e o capuz na cabeça (ou foi a cabeça no capuz?). Pôs uma mascarilha. Deu um beijo, de fugida, no companheiro que estava ali, lendo indiferente a toda a movimentação ao lado, sempre posto em sossego. Esteve quieta dois minutos, se a tal chegou, na posição de lotus.
Só tinhamos levantado de Bang-Coque há meia hora!... e a viagem tem p’raí umas treze horas, vinte e seis meias-horas. Eu já estava estoirado, e não era nada comigo. Aquele frenesim dera cabo de mim. E não podia mudar de lugar. Apelei a todas as minhas forças para abstrair da vizinhança. Tinha de seguir o exemplo de ele. Deve ter cá um treino!...
Conheço o género dela, embora esta exagere. Conhecer conheço, mas só por observação. Porque não me saiu nenhuma destas nas rifas do destino. A que me saiu – premiado fui! –, a que dorme aqui ao lado, de boca entre-aberta, só acordará em Paris, se não for só em Lisboa.

No avião Ho Chi Minh-Paris, 30 /31 de Dezembro de 2008

sábado, 3 de janeiro de 2009

Equilibrismo?, passo de dança?, saudação?, Paz!



Avulsos do Caderno Vietnam - 2

Saigão (e não só)
.
No cansado regresso a Ho Chi Minh Ville (ou City), fomos apanhados pela “hora de ponta” numa cidade de 8 milhões que se deslocam sobretudo em duas rodas. Verdadeiramente espectacular.

Entra-se num vespeiro de Hondas ou numa onda de Vespas (e multplicar-se-iam as marcas e os veículos sem marca). Circo! Milhares de malabaristas, nalguns casos famílias inteiras, um casal e duas crianças. Aparecendo de todos os lados e de todas as direcções. Desaparecendo por todos os lados e em todas as direcções. Cruzando-se milimetricamente, parecendo desafiar os carros, os de 4 rodas (“Vá! Atropelem-nos! Atrevam-se!”). Senhoras “todas produzidas” e de saltos altos, trabalhadores indiferenciados, transportadores de tudo. Alguns a falar ao telemóvel. Indescritível. Mas que tem de ser descrito… ou que tem de tentar sê-lo.

Um caso tem de ser contado (e tantos o teriam de ser!):

Um homem numa bicicleta no meio de uma multidão a circular. Com o porta-bagagens traseiro carregado até mais não. Em altura e em largura. Equilibrado no quadro da bicicleta, à sua frente, amparado pelos braços, um grande vaso com uma árvore. Cada vez que a perna direita empurrava o pé e o pedal para baixo, inclinava a cabeça para esse lado e espreitava o caminho e tudo o que cruzava, que o passava, que o ultrapassava, que quase lhe acertava, mas logo que, no movimento normal de pedalar, o pé direito chegava acima e era a perna e o pé esquerdo que serviam de embolo nesse lado era também a cabeça que, num movimento pendular, de metrónomo, se inclinava para a esquerda para ver o caminho, e tudo que o cruzava, que o ultrapassava, que ele ultrapassava.

Assim o vi, cabeça para a direita, cabeça para a esquerda, sei lá… como um limpa pára-brisas, vencendo espaço e obstáculos que, para ele, nem obstáculos eram.

De circo! A minha visão perdeu o homem numa bicicleta no meio da multidão, com uma árvore entre os braços presos ao guiador e a, pendularmente, inclinar a cabeça ora para a direita ora para a esquerda. A carrinha não perdoou o caminho a fazer. Até ao hotel. Não deu para fotografar.

Avulsos do Caderno Vietnam - 1

Hanoi (e não só!)

Já tínhamos visto da janela da carrinha, ao atravessar a cidade em busca nossos destinos. O trânsito numa representação do caos organizado. Como que encenado por um génio da movimentação em cena, ou sob a batuta invisível de um maestro que nenhum von Karajan igualaria. Absoltamente indescritível.
O guia tinha proposto uma visita ao “coração da cidade”, uma passagem por aquele turbilhão de bicicletas, de motorizadas, de vespas, de lambrettas, de hondas, de gente de todas as idades e coisas de todos os tamanhos em gincanas de duas rodas com alguns carros pelo meio a dificultarem as provas. Ou a darem-lhes algum sentido ou direcção porque “mão”, “contra-mão”, prioridades, são figuras de pura retórica do eventual código das estradas e ruas daquela(s) cidade(s) infestada(s) de pequenos veículos motorizados a meterem-se por todos os lados, como piolhos em costura.
E a proposta incluía o metermo-nos em “ric-chós” e deixarmo-nos conduzir. Qual quê?! A gente queria era ir a pé, a pezinho, para o meio da turba-malta. O gajo-guia olhou-nos de lado. Logo houve quem desconfiasse que havia ali comissões para os ricos primos dos “ric-chós”. E que nos iria boicotar o passeio.
Afinal, não boicotou nada e, com paciência asiática, serviu-nos de guia e salva-vidas naquela travessia. Indescritível.
A tirar fotografias, pois então!
De repente, perco-lhe o contacto, sinto-a atrasada.
Chegado eu, são e salvo, a um passeio (pouco seguros, pouco seguros), procurei-a com os olhos.
Quase assustado. Mas vejo-a. Parecia bem. Decidida, como sempre, segura de si e do que trazia na mão. A máquina de fotografar, claro.
Descansado – mais ou menos –, preparo a minha para a apanhar em flagrante de atravessar a rua. Na faixa de rodagem desenhada no pavimento, note-se bem.
Procurei o momento crucial. Iria ser o grande flagrante. A gincana pedestre na gincana a duas rodas.
A identificá-la, ficou o cabelo branco, os óculos escuros.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Bom ano, amigos!

2008-2009
O nosso último dia de 2008 teve mais horas.
Saímos de Phon Thiet às 14 horas locais do dia 30, de carrinha para o aeroporto de Ho Chi Minh Ville (Saigão), fizemos escalas em Bang-Cok e em Paris, descemos na Portela, fizemos três escalas técnicas terrestres já em solo pátrio, e chegámos ao Zambujal às 14 horas locais de 31, o que daria 24 horas se não houvesse que somar as 7 que o relógio andou para trás quando aterrou em Lisboa, pelo que foram 31 horas de viagem.
Em resumo, algum (!) cansaço, com um jet lag cheio de insónias, que é bem melhor que insónias com jet set…, com um enorme gosto de estar de novo em casa e próximo de todos. Com tanto para contar!
E se de 2007 se passou para 2008 a voar (Maputo-Lisboa), de 2008 para 2009… dormiu-se e acordou-se cedo para começar o ano já com algumas quatro horitas de 1 de Janeiro.
Tanto para contar. O tal de Vietnam que estava tanto na nossa memória e na memória colectiva de tantos, é mesmo o Vietnam. Há 40 anos, há milhares de anos. Em 2009!