faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 7A

Durante algum tempo fomos apenas três os residentes da "enfermaria geral". Não foi mais que uns dias, mas o tempo tinha, ali, outra dimensão.
O "outro" era um homem pequeno, muito pequeno, quase nada. Funcionário público, chefe de secção do Ministério das Finanças, dera o seu contributo, estimável como todos, para a luta mas aquele vendaval que levara a tantas prisões apanhara-o, e as suas raízes foram arrancadas pondo-o a flutuar, à deriva, ao sabor do vento. E disto não digo mais que, aqui, é para contar estórias...
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À medida que a sala ia sendo povoada, e as famílias iam mostrando todo o apoio e solidariedade, tornou-se necessário organizar a nossa vida. Distribuiram-se tarefas e responsabilidades.
"Ele", o chefe de secção do MF, foi nomeado uxeiro, isto é, encarregado da gestão da "cantina", mesa onde se arrumava o que as famílias, com sacrifício e amor, nos iam fazendo chegar, depois de passar pelos carcereiros. Eram "mimos" para sentirmos o seu apoio, tão necessário.
Mas o uxeiro tomara o encargo muito a peito e estabelecera normas rígidas. Uma delas a de só se poder consumir o recém-chegado depois de consumido o que já chegara antes. Começou por ser aceite como boa norma, mas à medida que os dias corriam e traziam mais "hóspedes", tornou-se frequente comermos coisas já velhas, algumas em duvidoso prazo de validade, enquanto, ao lado, outras fesquinhas e apetitosas esparavam estarem em igual estado de velhice e decomposição para, então, serem consumidas. Os resmungos e os protestos batiam no muro da intransigência do responsável pela "uxaria".
Até que, uma noite, o Areosa e eu, cama ao lado de cama, nas nossas conversas antes de adormecer, fizemos o "ponto da situação" e resolvemos uma acção directa. Com a argumentação de que não era justo que as nossas famílias nos estivessem a mandar aqueles "mimos", alguns decerto com grande sacrifício, e que tão mal os tratássemos até deixando alguns apodrecer, levantámo-nos e pé ante pé fizemos uma ceiazita com as primícias que nos tinham sido enviadas.
Na manhã seguinte, descoberto a "crime" na inventariação do uxeiro-mor (e único), foi convocado por ele um "tribunal" para julgamento dos réus que tinham confessado e justificado aquela gravíssima infracção às normas ditatorialmente impostas.
Fomos absolvidos e o uxeiro demitido.
Fim da estória,

4 comentários:

Maria disse...

E a grande conclusão é: temos que nos organizar para demitirmos quem é prepotente, mesmo que seja nos "mimos"...

Um enorme sorriso. e um beijo

Justine disse...

Há praí uns uxeiros-mor a comerem as primícias todas e a deixarem-nos só os restos. Vamos a eles??

Anónimo disse...

Acompanho, com um misto de entusiasmo e curiosidade este blog. A cada leitura de "Histórias ante(s)passadas(na prisão) não consigo evitar que um sorriso, pleno de ternura, se me desprenda do coração e se junte à grande admiração que o autor sempre me suscitou.
Como seria bom que muitos dos que hoje detêm o poder tivessem conhecido e vivido esses tempos...
Que "estórias" terão os políticos de hoje a contar?
Por muitas que sejam, rara será aquela que não tenha prepotência,arrogância, corrupção e uxeiros à mistura.

GR disse...

Adoro a maneira como escreves.
Dás cor aos dias cinzentos, com bastante humor.
Bjs,

GR