faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Histórias ante(s)passadas (na prisão) - 6A

Se havia “trânsito” na “enfermaria geral”, quer de entradas e saídas, quer ao longo do comprimento da sala, havia, também, os que se julgavam um pouco como os “residentes do lugar”. Pelo menos eu assim os via porque, quando lá cheguei, encontrei aqueles dois perdidos no espaço imenso (vinha, de há séculos atrás, de um cubículo com um metro e dez por um metro e setenta, e da passagem sem tempo por dias e noites no “inferno” da tortura do sono… mas adiante).
Um, era alto, enorme – ao tamanho da sala –, aviador trazido de Angola pela revolta e recusa de ser obrigado a lançar napalm contra homens em greve na “baixa de Cassange”; outro, era miúdo, pequeno, pequeno, pequeno, em quase nada se tornara.
Com o primeiro, criança grande, houve empatia imediata, como que um regresso à Humanidade, que depois se transformou em amizade e acerto de posições logo logo de luta.
Muito conversámos e há pormenores que têm de vir para estas estórias.
Mostrava-me ele, o Zé Maria Ervedosa, os seus poemas, alguns de grande qualidade, falava-me com enorme ternura do seu amor, da sua Alma encontrada em Alexandria, via-se que tinha grande necessidade e gosto de conversar e conviver. E contou-me que, quando chegou à sala, o primeiro e sozinho naquela imens(ol)idão, estabelecera uma relação de simpatia com o servente de escala ao andar, com quem conversava no umbral da porta enquanto os guardas andavam por outras vigilâncias. Quando tinham de interromper as falas sobre vidas e situações tão diferentes, contou-me ele que o Martins, assim se chamava o servente, lhe dizia “que pensa o senhor major?, quando o fecho aí dentro, fico eu fechado aqui no corredor…”.
E o Zé Maria ainda me contava que, nesse tempo sem medida, a sua imaginação construíra vários planos de fuga, mas nenhum concretizável porque em nenhum conseguira eliminar um acto indispensável: pôr o Martins a dormir, tirá-lo do caminho da fuga. Confessava que “... além de muito me custar fazer mal ao servente… depois, quando viessem os carcereiros e descobrissem que tinha havido alguma facilitação da sua parte, mesmo que involuntária, que consequências iria ter para o pobre homem... ainda por cima com um "galo" ou a cabeça partida?!”.

5 comentários:

Maria disse...

Relações estranhas, algumas, que se estabelecem nas prisões... esta de (quase) ternura...

Obrigada, Sérgio
Um beijo

samuel disse...

Bela história!

Justine disse...

...ou como é possível encontrar filósofos humanistas até numa prisão política!
Enternecedor mesmo:))

Maria disse...

Vai um sorriso?

http://sobretudoeparcadeverao.blogspot.com/2008/11/protesto-legtimo-no-blog-educao-do-meu.html

Beijo

GR disse...

O Zé Maria tinha um coração grande, quase inocente.
E eram homens assim que estavam presos!

GR