faz de conta que o que é, é!... avança o peão de rei.

...
o mistério difícil
em que ninguém repara
das rosas cansadas do dia a dia.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Assim vão as coisas...

Artigo que mandei para o jornal da minha terra e que acho que, como prosa, me não me saiu mal:
Assim vão as coisas…

… e, por assim irem as coisas, há quem desista, há quem desespere, há quem procure “soluções”, há quem nem saiba que fazer…

Mas, por assim irem as coisas, o que me parece que há a fazer é redobrar os esforços para tentar perceber porque é que vão assim as coisas. E, consequentemente, ou coerentemente, procurar contribuir para que as coisas assim não vão.

Pelo meu lado, tento. Mas, confesso que, muitas vezes, me tenho de lembrar do poeta. Daquele que terminou o seu poema gritando (mais ou menos…) que a raiva cresce e a esperança se multiplica.

Então não é que andei, com mais umas centenas ou milhares de gente que pensa como eu ou próximo do que penso, a estudar o País, a fazer trabalhos, a juntar e a procurar tornar consistentes dados e conceitos (dos ditos operativos), fizemos o que as regras (as nossas, por nós adoptadas) mandam, juntámo-nos todos numa grande sala, éramos quase dois mil, tínhamos convidados (muitos, embora nem todos os convidados tenham ido, saibam lá eles porquê…), e tínhamos também os que, muitos!, não sendo nem delegados nem convidados, estavam lá porque queriam estar e participar, assistindo e ouvindo e aprendendo, e chegámos a uma proclamação e a uma decisão (nossa, mas decisão a todos endereçada)… e não é que nada ou pouco nos ligaram?!

Estarão no seu, deles, direito, no direito de não nos ligarem a nós, a nós que somos o que somos. Mas eu fico assim. Fico aborrecido, para não dizer pior! E procuro romper os muros do silêncio. O que nem me é muito difícil porque, ao longo da vida, muitas vezes me vi obrigado a este exercício.

E, por isso, venho juntar-me a outros como eu, ou de mim próximos, que acharam estranho, mais: escandaloso, que no mesmo jornal, um jornal de referência, como se costuma dizer, um jornal público, no dia seguinte a todo o trabalho que tivemos, de meses, e de gentes, e de estudo, e de reuniões, e de proposta, e de discussão, e de proclamação, tivesse dedicado pouco mais de uma meia centena de linhas ao discurso de encerramento feito pelo nosso secretário-geral, enquanto que, repito, na mesma edição do mesmo jornal, quase uma centena de linhas fosse preenchida com a referência e as citações que um outro líder partidário proferiu, por tal sinal de um partido com menos votos que o que chamo nosso porque meu é, num jantar para comemorar uma data. Não está bem… ou talvez esteja, lá a critério deles.

Fiquei bera, pronto. Achei injusto. Não para mim, não para nós, mas para quem não é informado como tinha o direito a sê-lo. E que se fica. Assim…

E não resisto a deixar um parágrafo do que tive a oportunidade de dizer lá no tal encontro final de todo o nosso trabalho, que durou dois dias, sobre umas coisas chamadas produtividade e competitividade:

“…o mesmo número de horas de trabalho, com a mesma intensidade de trabalho, produz diferente valor acrescentado num outro contexto, quer de meio ambiente ou infra-estruturas, quer de organização do processo de trabalho, quer em outras condições materiais e financeiras exógenas ao processo produtivo. Por exemplo, em termos de “economia de mercado”, o diferencial entre os valores acrescentados por Manueis e Marias com as mesmas horas de trabalho em França e em Portugal, mostra que o produto desse tempo de trabalho é mais competitivo em França do que em Portugal, ainda que os salários em França sejam substancialmente mais elevados. De onde se concluiria que os mesmos Manueis e Marias têm maior produtividade em França, apesar dos salários serem mais elevados que em Portugal. Porque as outras determinantes são… outras! (…)”

Só tinha 7 minutos (havia muito mais gente que queria falar e dizer destas e doutras coisas, sobre questões económicas e sociais), mas fiquei satisfeito por as ter dito, depois de muito as ter estudado e pensado. E não me venham dizer que isto são… rabujices da idade de quem quer andar a dizer coisas. Estavam muitos mas muitos, mas mesmo muitos, muito mais novos que eu.

Será por isso que não querem que se saiba?!

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Um grande cansaço...
e a recordação de um muito velho escrito (dos do cordel):

Dói-me este silêncio em volta da minha luta
dói-me este silêncio em volta da luta
dói-me este silêncio em volta
dói-me este silêncio
dói-me!

(talvez mais do que todos os silêncios... dói-me "este" silêncio)

Mas a luta continua. Contínua!

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

2 que sairam assim... de 1 vezada

O falso e a idade
(esta é de… falsário)

As falsidades
… as falsas idades
As universidades
… as universais idades
As adversidades
… as adversas idades
As contrariedades
… as idades ao contrário:

estou a um mês de a fazer 27 anos!
(estou um homenzinho...)






Quando não estás

Quando não estás aqui
… faltas-me
Às vezes, estás aqui
… e faltas-me
(mas é só às vezes,
e raras são as vezes).

Pelo que és para mim
… faltas-me
… quando comigo não estás.


21.11.2007
O teu rosto
o teu esboço

o teu braço
o teu abraço

contigo, o passo
contigo, o nó
... muitas vezes, o nós

em nós, o traço,
em nós, o laço,
o mais largo
troço de vida,
... tua e minha!

refazendo o que em cada dia - e madrugada - se refaz

domingo, 18 de novembro de 2007

Uma janela em Amsterdam... e não só

Esta foto teve alguns comentários que, a meu juizo, são muito curiosos. Aqui e no anónimo do séc. xxi.
E eu, calado e regaladinho, a ler os comentários diferentes de alguns amigos/as, não é?
A fotografia desta janela foi uma daquelas coisas boas que, às vezes, aparecem na vida cá das gentes...
.
Recuperava de quilómetros de andarilhança, no cimo do meu beliche, naquele quarto não sei se de reformatório se de coisa parecida, e atirei uma vista de olhos lá para fora para ver como estava o tempo. E, pelos olhos dentro, entrou-me uma visão parecida com esta que vou reproduzindo.
Quis guardá-la e, para isso, fiz um percurso agitado até conseguir dispor da máquina de fixar momentos, depois tentei escolher o melhor ângulo, fazendo acrobacias e contorcionismos que já não são para a minha idade... e saiu isto. Para mim... melhor que a encomenda!
Quis, e quero, mostrar.
Ora, como diz a Justine, num dos seus judiciosos comentários, há comentários muito diferentes e significativos, e ela até enveredou pelo tema das sensibilidades de género. Talvez fosse um caminho...
Cá por mim, cheguei a elucubrar sobre as janelas... enquanto vistas para fora e vistas de fora para dentro, sobre o que elas mostram e o que elas escondem. E esta, particularmente esta janela do "hotel" de Amsterdam, desafiava-me para essas elucubrações... mas embrulhei-me e desisti. Por agora.
Por agora, e entrando nessa do género - embora não seja o meu género! - apenas deixo dois comentários, nesta cronicazita, sobre os comentários vindos do lado do... meu género.
O Samuel ironiza com a sua inveja por a janela não ser sua. Só lhe dou razão pelo que a janela permitiu fixar de um momento em Amsterdam, e esse foi meu e acho que, sim, senhor, merece "inveja". Não por ela, janela, que até tinha um vidro partido, não estava lá muito bem limpa (o que terá ajudado aos efeitos fotográficos), e fazia parte de um conjunto (interior) pouco "invejável". Mas as janelas fazem parte, também, parte de um conjunto que lhes é exterior e esse... bem, bem, não me vou embrulhar outra vez. Por agora.
Quanto ao PG, que lhe hei-de dizer sem entrar em conversas "sérias"?
Essa conotação de Amsterdam com "outras janelas" (mehor - ou pior! - vitrinas, montras...) e com outras coisas, podem dar algum sal e pimenta à imagem da cidade mas ela, cidade, não só não precisa como as dispensa e não as merecerá. Desta vez não calhou passar pelo "red light", e não foi por não ter andado quilómetros, léguas, maratonas..., e até me parece que senti melhor a cidade sem esse infeliz folclore.
Mas... adiante, até porque estou a pensar nas excelentes fotos que o tão sensível fotógrafo que se assina com as duas iniciais faria para dentro de algumas janelas de Amsterdam (essas, por exemplo), ele que tão bem capta o corpo, a face, o humano, as situações.
.
Amsterdam... uma cidade para fotografar. Bem agasalhado!

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Com saudades de por aqui viajar... e vossas!

Quando, depois das visitas ao museu Van Gogh,
e à casa Rembrandt,
e ao museu da cidade,
e de tanto e tão belo termos visto,
quando, equilibrado no beliche da espécie de hotel onde ficámos,
usei a máquina fotográfica para fixar a imagem que queria guardar,
e ela me devolveu esta desejada (mas inesperada...) composição,
nasceu em mim um desejo dos raros que nunca tive,
o de pintar!

sábado, 10 de novembro de 2007

Já depois de encerrada a xafarica, ainda dei uma volta antes de dar as voltas às chaves que encerram tudo deixando-nos de fora e de partida. Até ao nosso regresso.
E, procurando um "danado" que me anda a faltar aos encontros, vim encontrá-lo em sítio onde raro o procuro, e por onde também s'alberga.
Lá estava, com última presença em dia chamado de fiéis defuntos. Com esta "sentença" por oferta:
.
sentença
hão-de morrer os poetas, como morrem os outros
e os loucos. e tu, que és só e tudo o que és,
hás-de morrer não tarda, a bem ou a mal, por bem
ou por mal. matar-te-á o tempo, se nada antes. s. d’o.
.
(em almanaque de ironias menores)




"Sentença" com décadas
de vida:
.
é pelo S.Martinho
que o homem sabe o que é
em-velho-ser


sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Apontamentos e historiazinhas do quotidiano - 5

Todos os dias,
no "expresso" das 14,
que vem de a 20/30 metros da qui,
da caixa que é geral e dos depósitos
(e outras coisas foi),
ele chega.
Para cumprir,
rigorosamente,
o horário:
almoço às 14 e 8!

Traz,
debaixo do braço,
o diário económico,
ou o jornal de negócios,
ou um jornal ou diário de notícias,
aberto na página económica,
que, agora, só de negócios é.

Vem,
sempre,
de casaco pelas costas
e gravata de botão desabotoado;
cumprimenta.
sorridente e simpático,
os que ainda não acabaram
o seu (deles) almoço.

Come lendo
ou lê comendo,
meticulosaamente.

Sai às 14 e 54, e está de regresso,
ao seu posto de trabalho,
às 14 e 58!

Todos os dias,
salvo sábados,
domingos.
feriados,
e nas férias do contrato individual de trabalho.

Nunca alguém
o viu constipado,
ou soube de outra inibição,
que o impeça de cumprir esta rotina.

É,
ou parece ser,
a vida
... dele

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 12 (e fim)

Agarrei-a por um braço, tentei que me olhasse. “Júlia!... que se passa?… porque não me disseste nada?... porque não me dizes nada?... que se passa?... diz-me tudo?”.

Respondeu-me com um sorriso triste. Talvez o único que lhe vi. Os olhos estavam baixos, mortiços, sem desafio. “’Teja quedo. Veja lá a sua mãezinha que deve estar quase a levantar-se…”.

Escapou-se-me para o abrigo do seu quarto. Quase logo (ou foi muito tempo depois?) voltou. Recuperada. A Júlia.

Passou por mim, parado onde me deixara, imóvel. Deu-me um pequeno encontrão. "Acorde! Vá mas’é p’rás aulas. A sua mãezinha está mesmo a levantar-se. Veja lá se quer que ela saiba mais do que já desconfio que sabe…”.

Quase me empurrou até à escada e fechou a porta comigo do outro lado.

Ao passar, no canto da cozinha, perto da porta de serviço por onde saíra, jvi uma mala e uns sacos atados com corda forte que já estavam preparados para a partida.

No autocarro, a caminho da faculdade, uma lágrima teimou em escorregar-me pela cara abaixo. Sei, hoje, que algo da minha adolescência acabava. Em definitivo.
.
.
______________________________________


Olhei aquelas três mulheres. A Júlia, a filha, a miúda, com os seus 12 anitos e tão parecida com a avó quando eu a conheci. Há bem 40 anos!

Pareceu-me ver, nelas projectado, um filme. Um filme em que eu entrava. Com um papel que não sabia muito bem qual era, qual tinha sido. Um papel que, estava certo, nunca viria a descobrir. Um filme que não era “cor de rosa” nem “negro”, um filme com todas as cores que a vida tem.
.
.
FIM... do que talvez venha a ser um capítulo
de uma história mais longa

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 11

“… até estava a dar muito boa conta do recado… Mas vai para França… vai ter com o Xico da Soutaria, que foi para lá há para aí uns dois anos mas que veio cá neste verão. Às escondidas. Parece que acertaram tudo… Vão casar. Vai amanhã. De comboio. Arranjou papéis e tudo … A rapariga é mulher danada!”

O meu pai, já afundado no sofá coçado e perfeitamente afeito aos volumes do seu corpo, mergulhou os olhos no jornal, não sem antes ter deixado a sua sentença, resmungada e quase inaudível, mas que andava à volta de qualquer coisa como ingratos e mal-agradecidos.

A minha mãe continuou, como se nada tivesse ouvido mas respondendo a um e dirigindo-se – parecia-me… – a outro. “Pois é! Vamos ficar descalços… Mas já esperava. Não foi surpresa. Ela tinha-me avisado quando fizemos o ajuste. É namoro antigo… e se calhar eles apressaram-se… É lá com eles. Que sejam felizes. Nós cá nos arranjaremos. Não é, filho?”. Levantei-me da mesa, dei-lhe um beijo e fugi para o meu quarto.

Era verdade, lembrava-me bem do Xico, com mais um ou dois anos que eu, companheiro de brincadeiras de cachopos e, depois, da bola e dos copos. Do que me tinha esquecido é que, entre miúdos, se dizia que ele andava de beicinho pela Júlia, que a queria para conversada. Depois, como se, para mim, ele tivesse crescido de repente, soube que abalara “de salto”, esse caminho feito por tantos e tantos jovens da aldeia, alguns antes de irem às sortes.

Mas estava em estado de choque. Incapaz de juntar duas ideias. Já não sai do quarto, como às vezes fazia quando tinha matérias para estudar. E se tinha!… mas não eram da universidade.

Dormi mal, sobressaltado. De manhã, ainda mais cedo que o costume, levantei-me excitado, nervoso. Não queria tomar qualquer iniciativa. Vi que tinha sido o primeiro a levantar-me. Demorei-me na casa de banho. Ela não foi ter comigo.

Não aguentava mais. Arranjei-me à pressa e procurei-a. Estava na cozinha, atarefada, numa grande (ou simulada) azáfama.
.
.
(amanhã termina esta estória, episódio de um "livro na gaveta",
ficções... do cordel)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 10

A Júlia parecia cada vez mais segura de si. Cada vez mais controlava a situação. Um dia disse-me ”só não emprenho porque não quero… havia de ser bonito”. E riu-se!

Pelo contrário, eu estava cada vez mais obcecado, e havia obsessões que vinham juntar-se. Uma começava a tomar-me. Queria dormir com a Júlia. Deitar-me com ela na mesma cama e no mesmo sono depois de, saboreadamente, termos satisfeito os nossos insaciáveis corpos. Estava mesmo disposto a correr riscos. Ela ia adiando. “Um dia, talvez…”. Depois ria-se “... mas isso é só com quem eu casar… não q’eria mais nada!” E recusava que eu sequer entrasse, mesmo de dia, no seu quarto.

Estava a ficar desorientado. Andava na minha vida nova de universitário como um sonâmbulo. O que me valia era que, naquele tempo, o trabalho “a sério” só começava mais tarde, depois de “arrumados” os exames de admissão (de que eu dispensara) e outros da chamada “época de Outubro”.

Até que, de repente, no final de um dia cinzento do Outono lisboeta, a minha mãe, à mesa, ao jantar, disse que a Júlia se ia embora.

Assim. Como se fosse uma notícia indiferente, embora me parecesse descobrir um desconfiado espreitar para dentro da minha reacção. Talvez à espera de uma pergunta. Um talvez ansioso mas porquê?, talvez receoso da resposta.

A notícia fora dada como se se preenchesse um vazio, um silêncio à mesa que estivesse a incomodar.

Consegui controlar-me. Ou julguei que o fazia. O meu pai, calado, aparentemente desatento. Eram “coisas da cozinha”…

O silêncio tinha de ser cortado. Levei para a ironia que completasse o inevitável mas porquê?.

“Mas porquê?... partiu mais loiça que o regulamento permite?”. Com uma indiferença forçada. Com dificuldade de disfarçar e, talvez… sei lá, num tom que me trairia para quem quisesse confirmar suspeitas. Se é que havia…

Ela servia à mesa. Tirava e punha pratos. E fazia de conta que não reparara que se estava a falar dela e que as suas entradas e saídas, pontuavam as falas e os silêncios.

“Não, não! Pelo contrário… até estava a dar muito boa conta do recado…”

domingo, 4 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 9

Depois daquela quinta-feira, no resto das férias, vivi um período difícil. Complicado. De obsessão.

Todos os meus esforços, toda a minha disponibilidade, toda a minha organização de vida, tinham o objectivo de arranjar tempo e espaço para ficar a sós com Júlia. E repetir, em todos os lugares e qualquer que fosse a hora, os mesmos gestos nascidos do desejo.

Ela sabia-o, e geria com grande habilidade o que parecia incontrolável. Moderava impulsos e excessos. Evitava riscos e aventuras, criava condições inimagináveis para que os nossos corpos se encontrassem e misturassem. Apressada, furiosamente.
__

No fim das férias, no regresso a Lisboa, tudo se modificou. E tudo continuou.

A Júlia passara o “período experimental” e fora admitida ao serviço da casa, com aquele paternalismo que os “senhores de Lisboa” praticavam nas relações com a “gente” da terra. Relações em que também havia amizade mútua, que outra não há.

Mas era assim a vida de então.

E tudo mudou. E tudo continuou. Noutros espaços, não livres e abertos, com horários apertados, numa outra ainda mais difícil clandestinidade.

Na universidade, para onde entrara nesse ano, tinham-me colocado numa chamada “turma de empregados”, e as aulas práticas, a que não se podia faltar, começavam às 8 da manhã. Tinha de sair de casa pouco depois da 7, quando os meus pais ainda dormiam profundamente.

Levantava-me muito cedo, deslizava para a casa de banho, e muitas manhãs, quase todas as manhãs, era logo seguido pela Júlia, que ainda mais cedo se levantara e fora para a cozinha começar a labuta.

E eram manhãs loucas. Abraçávamo-nos quase com desespero, beijávamo-nos fazendo de cada manhã uma surpresa, num frenesim as nossas mãos trocavam de corpos e percorriam o do outro em todos os caminhos. Sentava-me na sanita e o seu corpo, rijo, belo, carnudo, fazia-se penetrar pelo meu sexo erecto, rolávamos na banheira ou nos azulejos do chão num abraço em que os dois corpos se misturavam com pijamas, camisas de dormir, toalhas, Sempre numa sôfrega correria, calando gargalhadas, amordaçando os gritos da explosão do prazer.

E a correr, bebido o leite e com a “carcaça” na mão, ia para rua e para o autocarro, enquanto a Júlia, com um controlo e uma eficiência espantosos preparava tudo para o acordar dos meus pais. Desde o apagar dos sinais das nossas “loucas manhãs” até aos pequenos-almoços e outras lidas.

sábado, 3 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 8

“E agora?, e agora?”, perguntava eu. Aturdido. Queria gritar que fora a primeira vez. Que nunca antes…

De um salto, a Júlia levantou-se. “Agora… toca a arrumar e a arranjar esta cama antes que os paizinhos cheguem… salta daí!”. Foi uma ordem, como outras se seguiram, tratando-me, por vezes, por tu.
.
Segura de si, tomou as rédeas do que havia a fazer, depois de um rápido roçar dos lábios pela minha cara e de um piparote cheio de malícia no meu sexo “toc’andar… vai-te lavar e vestir… enquanto dou aqui um jêto; mexa-se, corra!”

Foi uma correria para se pôr tudo como se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido!... Para a Júlia, até parecia, até parecia que a única coisa que importava era criar um ambiente neutro, inócuo. Como se nada se tivesse passado!...

Surpreendia-me o seu controlo total da situação.

Colocou uma cadeira no sítio certo do pátio, fez-me sentar nela, foi buscar livros e jornais que me meteu nas mãos e atirou para o chão, à roda da cadeira como se a leitura tivesse horas, apagou todos os sinais e marcas detectáveis, nela e em mim e nas coisas, com alguns pequenos gestos de ternura só adivinhada, acendeu a telefonia, arrumou a loiça do pequeno-almoço, começou a descascar batatas e a avançar com os preparativos do almoço.

Sorria…”bem podia ter dado uma mãozinha…”
.
Foi só o que disse. Depois, ignorou-me, Era como se eu ali não estivesse.

Eu continuava aturdido. Lembrava-me como, quantas vezes!..., em conversas, na aldeia, com rapazes da minha idade, sentira uma espécie de inveja (e ansiedade, e temor) ao ouvir as suas experiências contadas com toda a naturalidade. E ouvira, calado, sem nada para contar em troca, rapazinho urbano, sem campos, palheiros, caminhos de escola com atalhos para outras brincadeiras…

Estava assim, absorto, quando os meus pais voltaram, carregados de sacos com vitualhas, para aquele dia e para a semana, até à quinta-feira da semana que a seguia a esta viria.

Tudo estava… normal. Larguei o livro, de que não lera uma linha, ajudei ao transporte das sardinhas e do resto, agarrei no jornal desportivo e voltei para o lugar que a Júlia me reservara na sua encenação.

“Não havia correio no ti’Xico?”. Era onde, então, a meio caminho da vila, se fazia depósito e distribuição do correio. ”Não, filho. Hoje não tinhas nada”, ” … o rapaz devia estar à espera de alguma carta perfumada…”.

Não me dei ao trabalho de responder. Tinha a sensação de que vivera um vendaval a que se sucedia a acalmia. Uma acalmia estranha porque ignorava todos os estragos feitos pelo que a antecedera, surpreendente por ser tão natural, por ter sido tão naturalmente instalada.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 7

“Ai a louça!... Olh’a louça!...”, como se a loiça tivesse alguma importância, como se fosse a coisa mais valiosa no mundo. “Quero lá saber da loiça… pode partir-se toda… quero-te é a ti!”.

Tentou (ou quis?) virar-se. Só afrouxei o abraço quanto bastasse para que se voltasse. Vi-lhe a cara afogueada, os olhos brilhantes, os lábios húmidos. Procurei-lhe a boca. Fugiu com a cara, simulou uma tímida resistência sem palavras.

Enquanto a apertava com um braço, procurava meter a mão dentro da blusa, já meio desabotoada, para chegar aos seios rijos e macios que saltavam do soutien. A toalha caiu-me aos pés, e o meu sexo em riste aninhou-se entre as coxas que, debaixo da saia, se entreabriam e apertavam.

Num cada vez mais estreito corpo-a-corpo, chegámos à minha cama, acabada de fazer, e mergulhámos numa confusão de roupa que se puxava, que se abria, se arrancava, desconhecendo botões, colchetes, molas.

Do silêncio sem palavras passámos às palavras sem sentido, às frases sem nexo, aos pedidos mordidos de boca a boca, às súplicas estranguladas, aos respirares ofegantes. A um ruído surdo.

Arranquei-lhe as cuecas já remendadas como farrapos velhos. Penetrei-a como quem rompe, como quem rasga. Era uma luta, uma batalha. Mas ela lutava comigo, não contra mim. E fincava as unhas nas minhas costas, acelerava com as mãos nas minhas nádegas os meus movimentos.

O meu orgasmo foi rápido, brutal, e inundou-a e à roupa da cama.

O nosso prazer parecia estar na corrida sem freio, não no prazer de correr. Estava no final da corrida. Ou talvez tivesse sido mesmo uma luta, uma batalha. Sem derrotados, mas em que a maior vitória seria a de quem começara por mostrar (ou mostrar-se) que resistia e, aparentemente vencido, se entregara. Mas qual de nós assim fizera? Ou tínhamo-lo feito os dois?

Aquele longo abraço, tão lutado e tão curto, durara a eternidade de uns breves minutos.

Ficámos de costas, lado a lado, olhando o tecto, vendo mais uma vez – mas com olhos diferentes – os desenhos dos nós da madeira.

“E agora?, e agora?”

A morte da adolescência - 6

Refugiei-me na casa de banho e no ritual do duche.

Mas chegava lá a voz que mais alto cantava e parecia perseguir-me.

Preparei o duche, com maior rapidez que o habitual, e deixei cair a água sobre o corpo suado que tremia. E não era de frio…

O cheiro bom ao fumo da lenha, que se misturara na quentura da água deu-me curtas tréguas na obsessão daquela voz, daquela mulher que adivinhava a fazer a minha cama.

Ensaboei-me todo, vagarosamente, e, esquecido do espelho, dos músculos, das poses “à Charles Atlas”, demorei-me a acariciar o sexo, deixando-o crescer, encher-me a mão. Comecei os movimentos que me levariam ao orgasmo, com a espuma do sabão a ajudar a fricção e a aumentar o prazer… Mas parei. Sem dificuldade.

Fiz escorrer o sabão, enrolei uma toalha à volta da cintura e regressei ao sol. Trouxe o espelho para o terraço e comecei, enquanto o sol me enxugava o corpo, a fazer as poses da “tensão dinâmica”, as duas mãos opondo-se e resistindo, torções do tronco em esforço, rodar a cabeça para os músculos do pescoço. Tentando concentrar-me. Não ouvir nada, não (pre)sentir nada.

Mas sabia que não estava só, que era observado pelo canto de uns olhos, através da porta da cozinha. Caíra um silêncio pesado em toda a volta. Ou só se ouvia o coração e as artérias batendo dentro dos corpos.

Era preciso dizer ou fazer alguma coisa, quebrar aquela crosta, sair daquele lago-pântano, saltar das areias movediças “ó! Júlia… há aí leite?”, “atão nã havera d’haver?... quer qu’aqueça?... com tantas ginásticas deve estar com fome… quer que lho leve?”, “não, não!... eu vou aí…”.

Em dois saltos, entrei pela cozinha adentro “ai, credo!, inté m’assustou… veja lá se lhe cai a toalha…”. Riu com os dentes todos. E os olhos. “Se calhar, vias alguma coisa que nunca viste…”, “… se calhar, via… se calhar, não...”.

Os nossos corpos estavam muito perto. Quase se tocavam. Ouviamo-nos as respirações. De costas para mim, a Júlia lavava a loiça do pequeno-almoço. Quando acabei de beber o leite, ao pôr o copo junto da outra loiça, deixei o meu braço roçar o corpo dela “olh’a louça!... ai a louça!”. E mimou um cuidado exagerado para que os copos, e os pratos, e as canecas, não se partissem, enquanto os nossos corpos se tocavam abertamente, o meu peito nu nas suas costas, sem mais palavras ou disfarces. O meu braço rodeou-lhe a cintura e apertou-a contra mim. Riu um riso outro, nervoso, e os nossos corpos moldaram-se. O meu sexo encostou-se ao redondo das nádegas bem desenhadas. As minhas mãos subiram até aos seios, e agarraram, e apertaram, e procuraram a carne quente e fresca, tensa.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A morte da adolescência - 5

Com a saída dos meus pais senti o ar da manhã (ainda) mais fresco, mais leve.

A Júlia já passara duas vezes. Para ir à lenha, para ir ao poço de onde trouxera os dois baldes a deitar por fora e a salpicarem-me as costas.

Os dois tínhamos acompanhado com aparente desinteresse, ou bem escondido..., as “negociações” sobre quem ia lá abaixo, â vila. Como se não fosse nada connosco, como se nos fosse indiferente.

Demorou pouco tempo a que a Júlia saísse da cozinha, com os dois baldes a caminho do poço. Naquela manhã a água gastara-se depressa…

Esperava-o. Pareceu-me ler-lhe um sorriso de desafio. Ou quis ler-lhe, no rosto, um sorriso de desafio.

Vieram palavras “em lugar de estar p’raí a fazer forças melhor era que m’ajudasse… isso é que valia a pena… tanta coisa, tantas forças, e se calhar nem é capaz d’acartar uns balditos d’áuga…”, “… até era capaz de te carregar a ti e mais aos baldes ao mesmo tempo…”, “… tamém q’ria ver isso…”.

Hesitei. Estava calor, de repente o ar pareceu-me pesado, tenso. Não, não era bem isso, seria mais a tensão inusitada dos sábados à noite do Vinicius de Moraes que eu “andava a descobrir”. Talvez tivesse parecenças…

Insisti nas flexões, que para isso servem, na expectativa dos pingos de água que viriam no regresso do poço. E não tardaram. Em vez do arrepio, a água escorreu no corpo quente. Fiz menção de lhe agarrar os pés descalços, os tornozelos, a perna forte, firme, de correr atrás dela e dos baldes e daquele riso galhofeiro.

Fugiu, com mais riso e mais galhofa, tudo mais vivo e mais alto que era costume. Fugiu para dentro de casa, numa corrida sem perseguidor. “Não tenho tempo p’ra brincadeiras… vou fazer as camas…”.

E começou a cantar, Com uma voz rouca, cheia de intenções no que dizia e como dizia. Ou como eu adivinhava ou inventava.

Nem me tinha levantado da posição de empranchado. Por terra. “Fiquei-me nas covas”, como se dizia na gíria do atletismo quando as partidas se faziam das covas… Mas ainda arenguei “qualquer dia hás-de pagar-mas todas…”.

A resposta foi um “ora, ora” como novo estribilho na cantiga não interrompida ora, ora… muito ameaça que pouco faz/ora, ora… pouco faz quem muito ameaça/ora, ora… se comigo queres casar vai pedir à nha mãe/ora, ora… se tens pressa em namorar nã no peças a ninguém/ora, ora...

A água fervia na enorme panela em cima do fogão de lenha. Dos quartos vinha ainda o calor dos corpos sacudido dos lençois e das cobertas. E a voz rouca, quente, provocadora ora, ora… vê lá nã te queimes nas brasas dessa lareira/ora, ora mais calor e menos ciscos tens no fogo da minha braseira/ora, ora...